Discutir a dívida histórica de nosso país com a África não é atitude passadista, mas um direito da sociedade brasileira e de sua maioria afrodescendente
Discutir a dívida histórica de nosso país com a África não é atitude passadista, mas um direito da sociedade brasileira e de sua maioria afrodescendente
Assim como a “invisibilidade” dos negros e das comunidades quilombolas constituiu um traço histórico marcante da realidade racial no Brasil, a invisibilidade do crime de lesa-humanidade praticado por traficantes brasileiros permanece ignorada até o presente
Discutir a escravização de negros no país é direito de uma sociedade de maioria afrodescendente. Jean Batiste Debret/Reprodução
Essa impunidade fundadora das elites imperiais tem reflexos na estrutura social e em formas de dominação política que prevalecem até os dias atuais. Assim como a “invisibilidade” dos negros e das comunidades quilombolas constituiu um traço histórico marcante da realidade racial no Brasil, a invisibilidade do crime de lesa-humanidade praticado por traficantes brasileiros permanece grandemente ignorada até o presente. Nesses tempos em que se reconhece e se discute o direito à memória e à verdade acerca das violações de direitos humanos nos períodos ditatoriais recentes, a Nação precisa tornar-se ciente de que o tráfico abjeto e o regime escravista foram em larga medida obra de nossos conterrâneos.
Hoje, esse salto evolutivo em nossa memória histórica é não somente necessário, mas emergente, graças à amplitude e lucidez da nova política africana desencadeada pelo governo Lula, o “mais africano dos presidentes”, no dizer do ex-ministro de Relações Exteriores Celso Amorim. Em 2011, comemoram-se dez anos da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, realizada em Durban, na nova África do Sul, em agosto e setembro de 2001. Em sua memorável resolução final, a conferência reconheceu que “a escravidão e o tráfico de escravos, incluindo o tráfico transatlântico de escravos, foram tragédias terríveis na história da humanidade, não apenas por sua barbárie abominável, mas também em termos de sua magnitude, natureza de organização e, especialmente, pela negação da essência das vítimas”; reconheceu ainda que “a escravidão e o tráfico de escravos são crimes contra a humanidade e assim devem sempre ser considerados, especialmente o tráfico transatlântico de escravos, estando entre as maiores manifestações e fontes de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata...” Durban foi um marco que galvanizou em todo o mundo novos entendimentos e posturas, bem como movimentos sociais e políticas públicas sobre a problemática racial, particularmente com respeito aos afrodescendentes, como bem o ilustra a proclamação de 2011 como o Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes, da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Tudo isso é imensamente relevante em nosso país. Com efeito, segundo projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), devido à diferença nas taxas de fecundidade entre população branca e não branca, em 2050 três quartos da população brasileira será constituída por negros e pardos. O Brasil, este povo majoritariamente afrodescendente, tem o direito de conhecer toda a verdade sobre sua história. Ao fazê-lo, deverá reconhecer sua dívida com respeito à África, independentemente do colonialismo europeu, do qual os dois continentes foram vítimas, mas pela participação direta do Estado, pós-Independência, na pilhagem da África.
A longa abolição da escravatura
O Brasil foi o último país das Américas a libertar efetivamente seus escravos. No entanto, após a firma do tratado anglo-brasileiro de 1826, em troca do reconhecimento pelo Reino Unido da independência do Brasil, foi aprovada pela Câmara de Deputados do Império e promulgada em 1831, durante a Regência, uma lei que abolia o tráfico de escravos. Apesar dessa lei, que está na origem da expressão popular “para inglês ver”, os chamados negreiros brasileiros prosseguiram com o tráfico, servindo-se de uma rede de agentes instalados ao longo de toda a costa ocidental da África. Na verdade, com a abolição do trabalho escravo nos Estados Unidos, após a guerra da independência, o tráfico negreiro brasileiro ganhou inclusive um novo impulso, sem a concorrência de seus congêneres do Norte.
Além do tráfico, a lei de 1831 proibia a própria escravização, não somente assegurando plena liberdade aos africanos introduzidos no país após essa data como considerando sequestradores seus eventuais proprietários, sujeitos a sanções penais. Por “reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade”, o Código em vigor à época impunha aos infratores uma pena pecuniária e o reembolso das despesas com o reenvio do africano sequestrado para qualquer porto da África.
Pouco depois, em 1845, o governo britânico decretou o Bill Aberdeen, que proibia o tráfico de escravos entre a Europa e as Américas e autorizava a Marinha a aprisionar navios negreiros, mesmo, no caso, quando navegassem em águas territoriais brasileiras, provocando pânico, segundo se diz, em traficantes e proprietários de escravos e de terras no Brasil. Para a Grã-Bretanha, potência hegemônica no período, o tráfico tinha deixado de ser rentável, tornando-se um obstáculo a suas necessidades de expansão imperialista e de conquista de novos mercados, embora suas reais motivações se ocultassem sob o véu de razões filosóficas e humanitárias.
Apesar do forte sentimento antibritânico gerado na alta sociedade imperial, o governo brasileiro viu-se obrigado a aprovar uma nova lei em 1850, dita lei Euzébio de Queiroz, que extinguia o tráfico transatlântico para o Brasil e autorizava a apreensão dos negros “boçais”, assim chamados os escravos recém-chegados que não dominavam o português. Mas, em contrapartida, a lei ignorava os escravos que haviam chegado ao país desde o tratado de 1826 e a lei de 1831, concedendo, de certa forma, um indulto aos infratores.
Com esse gesto inaugural de impunidade, que se incrustaria a posteriori na sociedade brasileira, o governo “anistiava”, a partir de 1850, os culpados pelo crime de sequestro de africanos, fazendo vistas grossas ao crime correlato de escravização de pessoas livres. Com isso, os quase 800 mil africanos desembarcados até 1856 – e a totalidade de seus descendentes – foram mantidos ilegalmente na escravidão até 1888, ao mesmo tempo em que aumentava o tráfico interno em direção ao Sudeste e ao Sul, que ganhavam novo dinamismo econômico em detrimento do Nordeste. Assim, boa parte das últimas gerações de seres humanos escravizados no Brasil não era escrava de jure. Ou seja, o tráfico de escravos e a escravização de africanos durante o Império não eram somente condenáveis no plano ético: eram atos ilegais cometidos pelas elites brasileiras, que permaneceram ocultos e impunes nas dobras da história dos vencedores. Paralelamente, a elevada concentração fundiária ganhava por essa via uma sobrevida e se consolidava, reforçando os fundamentos da desigualdade racial no Brasil.