Cultura

A 23ª edição do maior festival de cultura da Europa, o Europalia, reverencia o Brasil. A presidenta Dilma inaugurou o evento que vai até 15 de janeiro

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

País é tema de maior festival de cultura na Europa

País é tema de maior festival de cultura na Europa. Foto: Ricardo Stuckert Filho

O leitor já ouviu falar do megaevento que neste momento representa o Brasil na Europa? Provavelmente não, graças ao silêncio ensurdecedor da mídia, expressando sua má-vontade em tudo que concerne ao PT.

Anteriormente, Lula estourou na cena internacional como estadista, entre outras coisas porque seu governo resgatou 40 milhões de cidadãos da miséria e evitou a crise que assola o resto do mundo mediante o desenvolvimento do mercado interno.

O interesse ou a mera curiosidade pelo país que tantas e tão grandes façanhas operou nos últimos anos são imensos. Os outros querem saber de tudo que nos diga respeito. Desde nossa mistura interétnica, que inspira soluções para uma situação que esses países só agora enfrentam, devido à afluência de imigrantes indesejáveis despertando a hostilidade dos nativos. Até os brilhantes resultados na luta contra a pobreza. Sem esquecer a exuberância dos sons e cores de nossa cultura.

O Brasil recebeu convites de cerca de trinta países, entre eles Japão, Alemanha, Austrália, Dinamarca... Tantos que nem há possibilidades de atender a todos. Decidiu-se privilegiar os apelos da União Europeia, no âmbito da Europalia (Europa + alia = outros, em latim), para que nosso país se dê a conhecer nesse fórum ampliado.

O outro desse diálogo fecundo é atualmente o Brasil.

Depois de um período de consultas e negociações, fechou-se uma programação de magnitude,  desdobrada no tempo, cobrindo vários meses. Tudo sob o comando do comissário-geral Sergio Mamberti, há oito anos exercendo sua expertise no Ministério da Cultura. A envergadura do projeto é grandiosa, e financiada por vários parceiros. Teve-se o cuidado de convocar delegações de todos os cantos do país, do Oiapoque ao Chuí, para não cair no engodo centrípeto do Sudeste. Similarmente, os eventos não se limitaram à capital da União Europeia, sediada em Bruxelas, mas percorreram outras cidades.

Uma exposição de artes visuais, inaugurada no dia 4 de outubro, permanecerá aberta até o início do ano que vem. Localiza-se no majestoso espaço do Palace des Beaux Arts de Bruxelas.

O conjunto dos numerosos eventos cobre o espectro das letras e das artes, incluindo, afora essa exposição, ainda música, dança, teatro, cinema e literatura, isso sem falar na mesa-redonda sobre cultura que abriu os trabalhos, logo no dia seguinte, de manhã e à tarde. Nessa atividade, discutiu-se um pouco de tudo, entre os membros brasileiros e seus equivalentes europeus, provenientes de vários países. Um dos assuntos ventilados foi o projeto dos Pontos de Cultura, implantado pelo governo petista e hoje atingindo a cifra de 3 mil no país todo.

Os holofotes iluminaram os pontos altos de nossas realizações. Em música, em que os brasileiros são reconhecidamente fortes, houve shows individuais de Hermeto Pascoal e seu sexteto, de Naná Vasconcelos, de Yamandu Costa, dos irmãos Assad, e mais Guinga, Egberto Gismonti, o grupo Uakti com os instrumentos que fabrica, DJs e bandas de rock, mangue beat, violeiros caipiras, rappers, a Velha Guarda da Portela, o Cavalo Marinho nordestino, Dona Cila puxadora do Coco de Olinda. Realce foi conferido a uma de nossas modalidades típicas, o choro, capitaneado por Maurício Carrilho, descendente de uma dinastia de chorões, à qual pertenceu o maior deles, seu tio Altamiro Carrilho. O grande músico belga de jazz Toots Thielemans tocou com colegas brasileiros.  Embaixadas itinerantes percorreram os bares de Bruxelas, fazendo demonstrações de forró, axé, samba, reggae, bossa nova, gafieira. E muitas maravilhas mais.

Em música clássica, promoveram-se concertos do violoncelista pernambucano Antonio Menezes, a mais nova estrela desse instrumento. A Camerata Aberta e o Quinteto de Câmara da Paraíba exibiram seu virtuosismo. Em contrapartida, a Orquestra Nacional da Bélgica apresentou-se com repertório brasileiro sob a batuta de Roberto Minczuk, regente da Orquestra Sinfônica Brasileira.

No campo do teatro, abriu-se espaço para a apresentação tanto de clássicos quanto de alternativos, estes últimos um dos fenômenos mais estimulantes nos palcos do país. Entre os primeiros, Chékov, Eurípides, uma adaptação de Dostoievski. Entre os segundos, o Teatro da Vertigem, a Nau dos Ícaros e a Intrépida Trupe, as marionetes de Pia Fraus e do grupo internacional Das Marionette. Coroando tudo, a reprise da mais bela e ousada montagem da companhia de bonecos Giramundo, de Belo Horizonte: Cobra Norato, recriação do poema modernista amazônico de Raul Bopp.

Um festival mostrou o que há de saliente no Cinema Novo e no atual, com uma retrospectiva de Walter Salles Jr., filmes mudos e documentários de Eduardo Coutinho. Acrescentou-se uma seção para crianças, com animações e ateliês de criação. Um ciclo foi dedicado à curta-metragem.

A propósito de literatura, as bibliotecas da cidade voltaram-se para o Brasil, com encontros literários, palestras, exibição de filmes e de livros.

No campo da dança, um espetáculo mostrou a coreografia e os cantos dos Kayapó e dos Mehinaku, acompanhados por uma exposição especial dedicada aos índios da Amazônia, no Musée du Cinquentenaire: histórico e pluralismo, estilo de vida, arte plumária, cestaria, máscaras, cerâmica, instrumentos de música, cerimônias e rituais.

Apresentaram-se as companhias Corpo e Mimulus de Belo Horizonte, Membros de Macaé, Quasar de Goiânia, Cena 11 de Florianópolis, Marcelo Evelin e Demolition Inc de Teresina, o Balé Castro Alves e o Balé Folclórico da Bahia, Lia Rodrigues do Rio de Janeiro. Pelas ruas desfilaram as turmas de performance Club.Brasil, Mysterios e Novidades, os Barbatuques com sua percussão corporal.

Tudo foi colocado na internet, em programas especiais.

Enquanto se realizam esses numerosos eventos, a exposição de artes visuais continua aberta no Palais des Beaux Arts, em Bruxelas.

Trata-se de uma das mais amplas, e aliás raríssimas, dentre as exposições desse gênero que já se fizeram fora do Brasil. Atravessando o vasto saguão e subindo uma escadaria, o visitante é acolhido pelo São Jorge do Aleijadinho, proveniente do Museu da Inconfidência, de Ouro Preto. Para começar, recebe o impacto daquela escultura em tamanho natural, toda iluminada e sozinha na entrada.

Depois, através das enormes salas de exposição, vai tomando contato com todas as fases das artes brasileiras. A começar pelos pintores ou desenhistas da colônia e pelos testemunhos registrados pelas expedições que exploraram o território ainda ignoto do país.

Salões sucedem-se a salões, exibindo tesouros. Um dos ícones da pintura brasileira, o monumental óleo histórico A Primeira Missa, posta-se lado a lado com uma sala inteira da arte de Volpi, em retrospectiva bem completa. Estão todos lá: Portinari, Lasar Segall, Tarsila, Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, este assessorado pela beleza das urnas funerárias indígenas numa vitrine, acentuando seu parentesco com o gesto do pintor, que procurou incorporar a estética nativa a seu próprio ofício. Aos modernistas seguem-se Rubens Gerchman, Hélio Oiticica, Lygia Clark, tanto os construtivistas quanto os desconstrutivistas, até chegar aos contemporâneos; em meio a tudo isso, intercalam-se as instalações. Domina um dos ambientes a espetacular tela gigantesca e pouco vista de Victor Meirelles, cujo tema é Tiradentes esquartejado.

Muitas outras exposições, focalizando recortes específicos, oferecem-se em diferentes museus e demais instituições da cidade: a fotografia, a gravura, a arte indígena, o circuito do garimpo e dos diamantes (de que, como se sabe, Antuérpia é uma das capitais mundiais), o tripé Brasília-arquitetura-design, carnaval, arte afro, artistas de rua. Uma individual para Artur Bispo do Rosário. Várias delas entram em circuito cobrindo outras cidades.

Enfim, é um megaevento que oferece por vários meses, como diz seu subtítulo, uma janela para a diversidade cultural brasileira. Conseguiu-se sair do exótico tropicalista e mostrar coisa boa, sem cair no velho complexo de vira-lata que, é verdade, já perdeu sua razão de ser.

Por último, é ficar de olho e aguardar o resultado prático das palavras da presidenta Dilma, que cortou a fita inaugural lado a lado com o rei Alberto II da Bélgica: “Esta exposição precisa ir para o Brasil: os brasileiros merecem vê-la”.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate