Cultura

Os bens e serviços culturais representam 7% no PIB mundial, com previsões de crescimento anual que giram em torno de 10% a 20%

Com uma nova secretaria de governo, a discussão sobre economia criativa ganha espaço no Brasil – enquanto grupos e coletivos descobrem novas formas de produzir cultura, viabilizada pelas dinâmicas da rede

 

Em sua viagem inaugural, o Ônibus Hacker

Em sua viagem inaugural, o Ônibus Hacker - case de iniciativas de crowdfunding. Foto: Revista Fórum

[nextpage title="1" ]

Na teoria econômica de Adam Smith aprende-se que o valor produzido em atividades culturais se esvai no mesmo momento de sua produção. O fato de não haver circulação de valor tangível em manifestações artísticas e culturais colocaria, portanto, a cultura em um espaço quase “à parte” da economia. Mas, apesar do conselho do velho Smith, a Organização Internacional do Trabalho realizou pesquisas para medir a participação dos bens e serviços culturais no PIB mundial – já representam 7% desse patrimônio, com previsões de crescimento anual que giram em torno de 10% a 20%. E, com números como esses a vista, traçar uma relação entre cultura e mercado torna-se quase inevitável.

A economia criativa trata dos processos de criação, produção e distribuição de bens imateriais e simbólicos. Na sua concepção original estava diretamente ligada à questão dos copyrights, os direitos de propriedade dos autores desses bens sobre aquilo que produziam, fechando um ciclo de geração e aproveitamento de valor.

Mas o conceito sofreu alterações de acordo com a transformação das cadeias produtivas de bens culturais. Num passado recente, a mudança vinha do estabelecimento de uma poderosa indústria cultural, que atua como intermediária (e muitas vezes concentradora) da circulação do valor produzido em torno da cultura. Hoje, vem também da multiplicação e do barateamento das formas de produção e distribuição de bens imateriais, baseadas nas tecnologias digitais e na internet.

Segundo a economista Ana Carla Fonseca, fundadora da consultoria Garimpo Soluções – Economia, Cultura e Desenvolvimento, a economia criativa usa o conhecimento dos processos econômicos para jogar luz sobre gargalos não resolvidos da atividade cultural: “A cultura, como outras atividades produtivas, tende a um fluxo de distribuição e circulação orientado pela demanda. O Brasil se caracteriza por uma produção muito vasta de bens culturais, mas com distribuição escassa e com demanda muito menor. Se você diminui a produção, perde em identidade e diversidade cultural. Então, é preciso melhorar a distribuição e ampliar a demanda”. Ela lembra que, com as mídias digitais, novos modelos de produção e distribuição são criados, o que não significa, necessariamente, que as pessoas vão consumir mais cultura. “É preciso resolver a ponta da demanda, e isso se faz com formação de novos hábitos, com a geração de consciência crítica. Existe diferença entre ter acesso às mídias digitais e conseguir decodificar informação em conhecimento.”

É fato que a cultura virou um mercado importante internacionalmente. Segundo dados da Unesco, o comércio mundial de bens e serviços culturais cresceu de US$ 39 bilhões em 1994 para US$ 59 bilhões em 2002. Por enquanto, esse fluxo está concentrado nos países desenvolvidos, responsáveis por mais de 50% das exportações e importações – e essa realidade aponta oportunidades a serem exploradas pelos países em desenvolvimento. Por outro lado, especialmente no Brasil, a questão da produção e distribuição de bens culturais está ligada à proteção da diversidade do riquíssimo patrimônico cultural do país, e também à ideia de fruição e de acesso a conhecimento e  cultura. De forma que as propostas advindas da economia criativa – principalmente por sua ligação com a lógica de mercado – inspiram discussões bastante acirradas.

Desde janeiro de 2011, quando Ana de Hollanda assumiu o Ministério da Cultura, a proposta de trabalhar a cultura como um vetor para o desenvolvimento ganhou espaço no governo, culminando na criação da Secretaria de Economia Criativa (SEC), sob o comando da secretária Cláudia Leitão. Apesar de já estar em funcionamento desde o começo do ano, a SEC necessita ainda de decreto presidencial para ser finalmente institucionalizada. “A institucionalidade é muito importante dentro do Estado, pois facilita a ação, o contato com a população, o relacionamento com outros ministérios e outros setores do MinC”, afirma Cláudia.

Em sua fase de estruturação, a SEC fez uma série de articulações com ministérios, instituições culturais, além de redes e coletivos: “Passamos cerca de cinco meses num grande planejamento estratégico, até chegarmos às diretrizes básicas da secretaria, estruturando suas parcerias fundamentais. O que aconteceu até agora foi a organização de um terreno institucional e político. Isso nos dá a possibilidade de haver maior rapidez nas realizações no próximo ano”. Como resultado desse período, a SEC criou seu primeiro planejamento de ações, a serem executadas entre 2011 e 2014, compiladas no documento do Plano da Secretaria de Economia Criativa.

O plano se orienta pela ideia de que a economia criativa segue quatro eixos essenciais: a organização flexível da produção; a difusão das inovações e do conhecimento; a mudança e adaptação das instituições; e o desenvolvimento urbano do território. Em suas etapas de criação, contemplou a construção de marcos conceituais e princípios norteadores para uma política nacional da economia criativa; o levantamento de demandas dos setores criativos; o encontro com parceiros institucionais dentro e fora do governo; e o planejamento de produtos e ações da SEC para os próximos anos.

Segundo Cláudia, alguns dos produtos planejados pela SEC devem ser entregues até o fim de 2011. Os Criativas Birô – escritórios de apoio aos profissionais e empreendedores criativos, com cursos de capacitação, consultoria gratuita de modelos de negócios, assessoria técnica e jurídica, entre outros serviços – devem ser implantados nos estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Goiás, Pernambuco e Acre. O Observatório Nacional da Economia Criativa começará a desenvolver metodologias e processos para a pesquisa e divulgação de números e indicadores do setor no país. “Tentamos colocar o carro na frente dos bois, para não perder mais tempo, ter clareza do escopo dessa nova secretaria, entendendo para quem  deve priorizar suas políticas”, afirma a secretária.

Repercussão na sociedade

Na opinião de Ana Carla Fonseca, o caminho de articulação seguido pela secretaria é interessante para a economia criativa no Brasil: “A SEC tem a postura correta de privilegiar a circulação entre as pastas. Também apresenta propostas interessantes de marcos regulatórios e indicadores”. Segundo ela, esse é o papel mais importante do Estado em prol da economia criativa: “Existem países em que as pessoas são empreendedoras graças à política pública, enquanto no Brasil parece que as pessoas são empreendedoras apesar do governo. O poder público deveria oferecer as bases para que esse ambiente criativo possa vicejar”.

A posição da economista tem a ver com o entendimento de que, com marcos regulatórios mais adaptados às questões da produção de cultura – caracterizada por processos menos formais e com menos garantias tangíveis para o retorno de investimentos –, seria possível criar, no mercado, condições de sustentabilidade para os negócios culturais, sem a necessidade de investimento direto do Estado.

Ela afirma que, na França, desde 1983 existe uma organização mista (mantida tanto pelo Ministério da Cultura francês quanto pela federação dos bancos) que mensura e cria indicadores para negócios criativos. Por isso, hoje é possível comprovar que a taxa de inadimplência para empreendedores da cultura naquele país é igual à da maioria das outras áreas de negócio, de forma que as possibilidades de crédito e investimento para empreendimentos criativos se ampliaram. “No Brasil, se você tem uma pequena editora e vai a um banco em busca de investimento, é diretamente encaminhado à área de patrocínio. Existe uma visão de que o artista e o produtor cultural precisam de ‘ajuda’, e essa visão tem de mudar.”

Do outro lado da discussão, há quem acredite que o entendimento da produção de bens culturais como atividade estritamente econômica pode ser uma ameaça à diversidade da cultura brasileira. No artigo Economia Colaborativa e Solidária, a historiadora Andrea Saraiva afirma: “A criação da Secretaria de Economia Criativa indica a escolha do governo federal em empreender um tipo de desenvolvimento econômico na cultura mais preocupado em impactar o PIB do que propriamente criar mecanismos de impactar o desenvolvimento local. Pois que sim, a cultura, se houver investimento e acompanhamento técnico adequado, poderá ser grande vetor de geração de renda e de desenvolvimento local. A questão é escolha de modelos”. Andrea também critica a participação pouco expressiva dos Pontos de Cultura no plano da Secretaria de Economia Criativa. No mesmo artigo, ela menciona: “Há uma miopia do Ministério da Cultura de não perceber que os Pontos possam gerar renda, que os relega a um ‘social’ dentro do cultural. Nada pode ser mais errado”.

Os Pontos de Cultura fizeram parte da política cultural do governo Lula. O Programa Cultura Viva reconhecia o potencial de centenas de organizações e movimentos culturais em todo o país, oferecendo fomento às suas ações e colocando-as em rede por meio de estratégias de cultura digital. Desde o começo da gestão de Ana de Hollanda existem divergências em relação à continuidade do projeto. A secretária Cláudia Leitão afirma que os Pontos estão contemplados nos planos da SEC, inclusive com a possibilidade de se tornarem um tipo especial de Criativa Birô, difundindo conhecimentos de empreendedorismo cultural em sua região.

Segundo Tarciana Portela, que foi superintendente do MinC para a Região Nordeste na gestão anterior, dos três pilares em que se sustentava a política pública dirigida aos Pontos – a dimensão simbólica e intangível da cultura; a questão da cidadania e dos direitos de expressão e fruição cultural; e a sustentabilidade das ações –, de fato foi nesse terceiro nível, ligado à autonomia econômica dos Pontos, que houve menor avanço. “A questão da sustentabilidade foi a mais frágil dentro da política de Pontos de Cultura. Mas isso não muda o fato de que essa foi a política cultural mais bem concebida, até hoje, no Brasil, mesmo que não tenha sido totalmente bem executada. Foi um grande diferencial implementado por Gilberto Gil e Juca Ferreira, e o primeiro marco para uma política de economia criativa no país.” A capacidade dos brasileiros de “realizarem muito com tão pouco”, de acordo com Tarciana, por diversas vezes causou admiração em representantes de organizações estrangeiras ligadas à economia criativa. Maximizar recursos e driblar dificuldades de forma inovadora são quesitos importantes em qualquer atividade econômica, e podem representar os maiores potenciais dos brasileiros na área cultural.

Entre os motivos da fragilidade econômica dos Pontos, a ex-superintendente do MinC cita o despreparo das organizações culturais para lidar com a burocracia do Estado – que, de um lado, sinaliza a necessidade de capacitação desses atores e, de outro, demonstra a urgência da criação de novos modelos de gestão e fomento para os agentes da cultura, respeitando a característica diversa e informal de suas atividades. Sobre a criação da SEC, o plano da secretaria e a atuação de Cláudia Leitão no governo, Tarciana é otimista: “É possível perceber que o plano tenta ficar num meio-termo. Fala de sustentabilidade, mas também de diversidade e inovação, sendo que inovação artística é sempre ruptura com o status quo, então deve ser apoiada pelo Estado. Quando afirma que ‘assumir a economia criativa como vetor de desenvolvimento, como processo cultural gerador de inovação, é assumi-la em sua dimensão dialógica, ou seja, de um lado, como resposta a demandas de mercado, de outro, como rompimento às mesmas', na verdade não está respondendo nada. Mas o plano de fato não poderia fechar essa discussão, porque esse é o nosso desafio”.

[/nextpage]

[nextpage title="2" ]

Cultura em rede

Além de possibilitarem um aumento radical das formas de produção e distribuição de bens e serviços culturais, as redes digitais inspiram transformações nos modelos econômicos que existem em torno da cultura.

Yochai Benkler, autor de The Wealth of Networks (“A Riqueza das Redes”, não publicado no Brasil), estuda os modelos de produção colaborativa entre pares, motivados por lógicas totalmente alheias à do mercado – onde a inspiração para produzir bens simbólicos não vem do dinheiro nem de grandes instituições, mas da própria lógica de cooperação entre os agentes. Em seu livro mais recente, The Penguin and the Leviathan – How Cooperation Triumphs Over Self-Interest (“O Pinguim e o Leviatã – Como a Cooperação Supera o Interesse Próprio), ele trata de uma das atividades ligadas à economia criativa: o desenvolvimento de softwares livres, baseado prioritariamente no trabalho de comunidades. “A cooperação está na origem das formas mais interessantes e promissoras de criação de prosperidade no mundo contemporâneo. E na raiz dessa cooperação estão vínculos humanos reais, abrangentes, significativos, dotados do poder de comunicar e criar confiança entre as pessoas”, comenta o economista Ricardo Abramovay, numa resenha do novo livro de Benkler.

Essas mesmas lógicas cooperativas e autênticas motivam diversas trocas culturais que não se encaixam no ciclo de produção, circulação e demanda que a economia criativa tenta descrever. Em seu livro Cultura Livre, Lawrence Lessig, jurista e criador das licenças Creative Commons (que flexibilizam os direitos autorais, mencionados no começo deste texto), se preocupa em diferenciar a cultura que é produzida pelas práticas comuns da sociedade, à parte da lógica econômica. “Por cultura comercial entenda-se aquela parte de nossa cultura que é produzida para ser vendida. Por cultura não comercial, entenda-se todo o resto. Quando os velhos se sentam nos parques ou esquinas para contar histórias aos jovens, e eles as ouvem, isso é cultura não comercial.”

Além do fortalecimento das possibilidades de criação e protagonismo para todas as pessoas, a rede traz oportunidades para quem produz cultura por vocação, mas não se enquadra necessariamente nas lógicas comerciais. A mais tangível delas é o crowdfunding – ou financiamento por multidão, numa tradução livre. Desde o começo do ano, várias plataformas de crowdfunding sugiram no Brasil. Basicamente, elas permitem que artistas e produtores culturais busquem, em vez de um ou dois grandes patrocinadores, centenas de pequenos para viabilizar seus projetos.

A primeira e mais conhecida plataforma de crowdfunding no Brasil, o Catarse, que existe desde janeiro de 2011, já possibilitou que 260 projetos tentassem se concretizar por financiamento coletivo. Desses, 110 foram bem-sucedidos (e vários ainda estão abertos para colaborações no site). Em menos de um ano, R$ 1,2 milhão foram investidos em cultura – por mais de 10 mil novos apoiadores de projetos culturais. Para Diego Reeberg, um dos fundadores do Catarse, o crowdfunding é parte de uma série de tendências que dão mais poder às pessoas: “É um modelo novo, descolado, cool, antenado e ligado a novas tendências sociais (virtuais ou não), com o qual o poder da multidão tem promovido cada vez mais mudanças”.

O jornalista Lucas Pretti, da Casa de Cultura Digital, é um dos autores de um projeto recentemente lançado no Catarse: o Baixo Centro, proposta de ocupação civil da região do centro de São Paulo, em um mês de atividades culturais autônomas e descentralizadas. “Uma coisa dessa natureza, coletiva e totalmente aberta durante o processo, só acreditamos que possa ser feita com o financiamento coletivo.”

Para Pretti, as outras formas de viabilização de projetos culturais possíveis hoje não atendem às características do projeto: “Não poderia ser captação via Lei Rouanet [que permite que empresas patrocinem projetos culturais em troca de isenção fiscal], porque não me vejo reunido com uma Nestlé ou com um Santander para propor um mês de descontrole no centro de São Paulo. Não poderia ser edital público, porque a gente teria de se adaptar, formatar o projeto, começar numa determinada hora, terminar em outra, e nós achamos importante ter a possibilidade de mudar de ideia. E não poderia ser empreendimento [venda de produtos relacionados e outras atividades de produção de renda paralelas], porque nós não achamos que seguraríamos um projeto desse tamanho”.

Reeberg ressalta que é justamente na diversidade de opções para o produtor de cultura que está a transformação do crowdfunding: “Trata-se também de uma questão de liberdade, em que o artista propõe o que bem entender, e a decisão se aquele projeto deve acontecer é do próprio público, das redes conectadas ao projeto. A rede é o mercado, ou pelo menos é boa parte dele”.

A economista Ana Carla Fonseca aponta algumas ressalvas em relação aos novos modelos de financiamento: “Ajudam, mas não resolvem o problema. É um processo incipiente, e precisamos ser cautelosos. Estamos chegando a um momento muito complicado, em que todos já recebemos uma série de convites para apoiar projetos, e não queremos dizer não para os nossos amigos, mas em breve não vamos mais dar conta”.

Reeberg, por sua vez, afirma que a intenção do crowdfunding não é substituir modelos antigos, mas sim trazer novas opções de financiamento para novos produtores de cultura. “Da mesma forma que é difícil enxergar um projeto de R$ 1 milhão sendo financiado por crowdfunding no Brasil hoje, também é evidente que o modelo abre portas para vários projetos pequenos que antes ficavam encurralados entre a burocracia de um edital, os riscos financeiros de um empréstimo bancário ou até os riscos artísticos de se vincular a um contrato que implica perda de autonomia”, afirma. Há inclusive uma relação do crowdfunding com a possível continuidade e autonomia dos projetos culturais: “O modelo também possibilita maior interação entre realizador e público, o que, se bem trabalhado, pode ser um fator importantíssimo para a sustentabilidade”.

A Secretaria da Economia Criativa montou uma diretoria especial de Redes e Coletivos e tem demonstrado interesse em mapear processos como o crowdfunding: “Precisamos conhecer para reconhecer, mapear para saber onde essas iniciativas estão, dar visibilidade a elas, apoio, articular e montar redes empreendedoras em torno dessas práticas”, afirma a secretária Cláudia Leitão.

Pretti, por sua vez, tem críticas a alguns conceitos da economia criativa. “Acho que essa visão mercantiliza a cultura, sim”, afirma. “Reconheço que estamos num bom momento para falar de economia da cultura, mas apenas como uma fase de um processo. Espero que daqui a trinta anos estejamos em outro ponto dessa discussão – que tenha mais a ver com uma verdadeira ocupação civil das atividades culturais. Com pessoas mais responsáveis pelo que estão realizando e apoiando, em todas as áreas, especialmente na cultura.”

Daniela B. Silva é jornalista[/nextpage]