A retomada do projeto original do SUS é fundamental para repactuar a relação de confiança da população com seus direitos públicos à saúde
A retomada do projeto original do SUS é fundamental para repactuar a relação de confiança da população com seus direitos públicos à saúde
Retomar o projeto original do SUS é fundamental para garantir à população seu direito público à saúde. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
O propósito deste texto é contribuir para criar a linguagem pública, a vontade política e a possibilidade de se concretizar plenamente o projeto original do Serviço Único de Saúde (SUS) no próximo período da história brasileira.
Sem negar a dramaticidade da situação atual para os que defendem o projeto original do SUS, sem subvalorar o caráter estrutural de seus impasses, sem, por nenhum momento, subestimar a potência das razões privatistas, identificando visões parciais e corporativas que balcanizam a coalizão histórica do sanitarismo brasileiro e sua base social, pretende-se demonstrar que é possível, viável e incontornavelmente necessário construir plenamente o projeto SUS na próxima década.
A identificação dessa possibilidade histórica passa, em primeiro lugar, pelo diagnóstico de uma forte crise internacional das razões neoliberais, em particular da crise profunda do modelo privatista de saúde norte-americano, evidenciada no Brasil por quatro grandes vitórias nacionais do campo que se chama comumente de democrático e popular. São elas as duas eleições presidenciais com Lula, a de Dilma e a forma como o Brasil reagiu à crise financeira internacional de 2008, estabelecendo verdadeira clivagem da dinâmica brasileira em relação às que prevaleceram nos EUA e em grande parte da Europa. Isto é, politicamente nunca houve um período tão favorável à construção do projeto SUS.
A viabilidade da plena construção do SUS no próximo período se evidencia, em segundo lugar, pela nova dinâmica macroeconômica de desenvolvimento com distribuição de renda, que abre potencialmente a maior oportunidade histórica de superar o impasse de financiamento estrutural que o acompanha desde a origem. A descoberta da economia do pré-sal só vem a reforçar essa possibilidade.
Em terceiro lugar, as forças sociais que deram origem ao SUS – com seus valores generosos, com sua inteligência sanitária, com sua capilaridade nacional – resistiram aos duros anos neoliberais e conseguiram avanços decisivos no processo de implantação do projeto. Elas estão ativas e disponíveis ideologicamente a um novo grande ciclo de ascenso histórico a partir de suas razões públicas.
Por que, então, apesar de tudo isso, ronda-nos um sentimento de impotência frente à dinâmica crescente do aumento da clientela dos planos privados de saúde, tornando o gasto privado já bem maior que o público, sinalizando para o sistema de saúde brasileiro um risco crescente de repetir aqui as patologias típicas do privatismo típico dos serviços de saúde americanos? Por que esse paradoxo da ameaça de uma derrota histórica do projeto SUS em meio a grandes vitórias do povo brasileiro?
Falta uma linguagem política capaz de retomar historicamente a legitimidade do projeto SUS, derrotando as razões privatistas, promovendo a formação de uma vontade política capaz de transformar a viabilidade potencial do SUS no próximo período na realidade de uma das maiores conquistas da história do povo brasileiro. O que se argumentará a seguir é que uma linguagem política baseada apenas em programas de governo não é suficiente para responder aos desafios estruturais à construção do SUS. E pode até, ao contrário, incorporar a linguagem do pragmatismo político que, ao diagnosticar essas limitações estruturais como intransponíveis, fecharia o horizonte histórico ao projeto original do sistema.
Diferenciamos aqui a necessária pragmática de governo – isto é, o esforço de realizar um programa histórico nas limitações e possibilidades dadas de governo – da linguagem pragmática que acaba por dissolver a identidade política e de valores do projeto em um pretenso realismo de opções no horizonte fechado do possível.
A construção do SUS nos anos sombrios neoliberais foi feita a partir de uma rica e criativa pragmática, capaz de ir fazendo valer, nas brechas e na correlação de forças variáveis, dimensões estruturantes de seu projeto histórico. Ora, a linguagem do pragmatismo, fechando-se às novas possibilidades históricas abertas pelo novo período, quer fixar o horizonte do possível em um mix público-privado, em que as razões do privatismo na saúde emparedam a própria lógica de organização do provimento público da saúde. Ora, a linguagem política do SUS, de seu projeto histórico, é a linguagem que orienta e indica a necessidade de um novo Estado republicano e democrático no Brasil. Suas razões não cabem em uma pragmática de governo.