Internacional

Ação dos Estados e mercado submetem pessoas às “políticas da dor”. Na Espanha, já são 5,3 milhões de desempregados (22,8% da população ativa)

Entrada na União Europeia e adoção do euro sanaria o atraso econômico e o complexo de inferioridade de um povo em busca de uma modernidade perdida e quase nunca encontrada. Agora todos afirmam que o padrão de crescimento era insustentável e dava para prever a crise

Crise financeira e "golpes" do mercado afetam cotidiano da população da Espanha

Crise financeira e "golpes" do mercado afetam cotidiano da população da Espanha. Foto: Juan Medina/Reuters

A depressão social e psicológica vivida hoje pelos espanhóis (fundamentalmente, suas velhas e novas camadas médias) só é explicável por um sonho coletivo que foi frustrado depois de mais de uma década de crescimento. Após quarenta anos de ditadura e da complexa e contraditória transição democrática, o ingresso naquilo que veio a se chamar União Europeia foi colocado em um horizonte ideal ao qual era fácil associar democracia, progresso econômico e direitos sociais. A Espanha como problema e a Europa como solução nunca pareceram tão claras para o conjunto da classe política e para uma parte majoritária da opinião pública. Pelo menos até recentemente.

O segundo ”milagre espanhol” (como se sabe, o primeiro foi o “desenvolvimentista” dos anos 60 do século passado, em plena ditadura de Franco) gerou não só uma gigantesca “bolha imobiliário-financeira” como um “senso comum” das massas que serviu de sólido fundamento para uma “coalizão pelo crescimento”, a qual agrupou uma maioria social sob a hegemonia (ideal e material) dos poderes econômico-financeiros. O “já somos como eles” e o “somos europeus” se confundiram: foram definitivamente sanados o atraso econômico e o complexo de inferioridade de um povo em busca de uma modernidade perdida e quase nunca encontrada.

Agora todos afirmam que o padrão de crescimento era insustentável e dava para prever a crise. Anteriormente, porém, o quadro era outro. Muito poucos, pouquíssimos, advertiram (no  final dos anos 90) sobre as debilidades e contradições; raríssimas forças políticas e sindicais (como a Esquerda Unida, e isso lhe custou uma grave crise interna) se opuseram ao tipo de integração europeia dominante e, sobretudo, à moeda única (o euro). Hoje é lugar-comum dizer que o euro foi mal planejado e houve um excesso de voluntarismo em sua concepção e execução, mas os que defenderam (defendemos) isso há quinze anos foram duramente hostilizados e condenados ao ostracismo político.
O modelo de crescimento “a crédito” ou a “prestação” foi definido como padrão. Há muita verdade nisso. A saída da crise dos anos 1990 se deveu a quatro circunstâncias: tipos de juros muito baixos, crédito abundante, ajudas da Comunidade Europeia e o ingresso no euro. Pode-se dizer que isso serviu para aproveitar as “vantagens comparativas” reais: geografia, turismo e desenvolvimento financeiro. O eixo organizador foi a construção de moradias e infraestruturas em estreita relação com o incremento do consumo privado impulsionado pelo capital financeiro e com a cumplicidade da classe política, ou seja, o Partido Popular (PP), o Partido Socialista Operário Espanhol (Psoe) e as direitas nacionalistas. Durante mais de uma década a utopia do alquimista de transformar pedras (ou tijolos) em ouro foi realidade. De 1997 a 2007 os preços de moradia subiram 220%. Entre 2002 a 2007 foram construídas na Espanha mais moradias que na Alemanha e na França juntas (as quais têm o triplo da população e território duas vezes maior). Em 2006 foi iniciada a construção de 900 mil moradias: mais do que na Alemanha, França e Itália juntas. Literalmente, ouro e loucura consentida e apoiada pelos meios de comunicação.

Conforme assinalado, o  euro impulsionou decisivamente o processo e o acelerou. Tratava-se de um caso claro de “doping” econômico. Por um lado, o euro dava à Espanha (e aos PIIGs, compostos pelos países periféricos Portugal, Itália, Irlanda e Grécia) a cobertura de uma moeda forte e minimizava a importância dos (recorrentes) déficits comerciais; por outro (a outra face da moeda), ia endividando-a cada vez mais fortemente e a obrigava a conseguir volumes crescentes de financiamento. Não estamos falando de miudezas. O déficit em conta corrente atingiu em 2005 o patamar de 7,4% do PIB: o maior, em termos relativos, do planeta. Em 2007 chegou a 10% do PIB: o segundo em termos absolutos, atrás apenas dos EUA.

O problema do  euro é o seguinte: a convergência em termos nominais, sem um banco central real, sem uma Fazenda pública comum, sem uma coordenação efetiva das políticas econômicas, sem uma seguridade social que englobe o conjunto, no mínimo, da Eurozona, consolida e fomenta as assimetrias entre países. Para ser mais preciso, o que ocorreu nesses anos é que os países centrais, fundamentalmente a Alemanha, puseram em marcha estratégias neomercantilistas que conseguiram abundantes superávits com os países periféricos do Sul. Esses excedentes foram usados para financiar (em troca de enormes benefícios, não se pode esquecer) esses mesmos países. Dá para manter um processo de integração projetado dessa forma?

É melhor não se enganar: o que se “resgata” não são os povos ou os Estados, e sim bancos, e se empobrecem os povos para assegurar que os credores cobrem. Quem são esses credores? Fundamentalmente, bancos alemães e franceses. Nós, dos países do Sul, somos cada vez mais “Estados sob intervenção” e “protetorados” da poderosa Alemanha. Será possível pagar a dívida?  Não parece muito provável, conforme é do conhecimento dos chamados “mercados” (a plutocracia internacional). Os dados mais recentes indicam que a economia espanhola tem uma dívida de 394% do PIB (uns € 4 bilhões), na qual 73% correspondem ao setor público e os restantes 321%, a entidades financeiras, empresas e famílias.

Vendo isso pela perspectiva da história, é preciso reconhecer, como Braudel (tão ligado ao Brasil), que não é concebível uma moeda sem um Estado soberano que a respalde. A política também tem grande papel nisso. A União Europeia não é um Estado – muito menos um Estado democrático. Na prática, a Espanha não é mais um Estado e, além disso, depois da crise está sem margem de manobra e à mercê da banca alemã (e de seu Estado).

Teoricamente, duas saídas parecem possíveis: que a integração se acelere rumo a alguma forma de Estado mais ou menos reconhecível ou aos Estados-Nação. Há ainda uma terceira: continuar como estamos, ou seja, aceitar o “golpe” dos mercados (e de seus Estados) e acabar com os direitos sociais e trabalhistas conquistados em um século de lutas de classes e em meio a duas guerras mundiais.
Enquanto isso, as pessoas são submetidas, como diz Krugman, às “políticas da dor”. Na Espanha já alcançamos a cifra de 5,3 milhões de desempregados (22,8%  da população ativa). Segundo o novo governo da direita (e em consequência das políticas de ajuste), chegaremos a perto dos 6 milhões (24,3% da população ativa). Vinte e dois por cento da população está abaixo da linha de pobreza e, pela primeira vez em décadas, as rendas empresariais superam as salariais.

Como vocês sabem, estamos em plena ”luta de classes superiores”. Um estado de exceção decretado pelos poderes econômico-financeiros. E os de baixo? Essa é uma outra história.

Manuel Monereo Pérez é do Conselho Editorial da revista Topo Viejo