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Índice de popularidade do governo Dilma indica tendências profundas e promissoras de mudanças favoráveis à esquerda na cena política brasileira

O mandato de Dilma Rousseff pode impulsionar um novo tempo de derrotas estratégicas do neoliberalismo, abrindo caminho para profundas transformações estruturais no Estado brasileiro. Uma consciência crítica das possibilidades para a esquerda brasileira não deve, de modo algum, diminuir as dificuldades colocadas à frente

Governo Dilma abre caminho para profundas transformações estruturais no Estado b

Governo Dilma abre caminho para profundas transformações estruturais no Estado brasileiro. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

[nextpage title="p.1" ]O que mais impressiona nos notáveis índices de popularidade alcançados pelo governo Dilma Rousseff, em seu segundo ano de mandato, não são propriamente as taxas recordes de aprovação para o tempo medido de seu governo, nem mesmo o sentido universal desses índices (em patamares muito elevados em todas as faixas de renda e em todas as regiões) e até mesmo sua tendência de crescimento. É o que eles indicam em relação às tendências profundas e promissoras de mudanças favoráveis à esquerda na cena política brasileira.

Com efeito, a pesquisa do Datafolha colhida nos dias 18 e 19 de abril revelou 64% de ótimo/bom para o governo Dilma, 5 pontos porcentuais acima do índice medido em janeiro. Se 29% consideram seu governo regular, apenas 5% o julgam ruim/péssimo. Na faixa dos que ganham mais de dez salários mínimos, houve uma elevação de 17%, de 53% para 70%; entre os que ganham até dois salários mínimos, passou-se de 59% para 64%.

Já a pesquisa do Ibope divulgada em março indicava 77% de aprovação da gestão de Dilma, marcando 82% para a Região Nordeste e 75% para a Sudeste, demonstrando sua tendência de universalização social e geográfica.

O Datafolha de abril testou indicativamente as intenções atuais de voto para presidente entre Dilma e Serra: 69% para Dilma, contra 21% para Serra. É como se a atração da liderança de Serra tivesse recuado para seu patamar mais baixo nas eleições de 2010, muito distante dos 43,95% obtidos no segundo turno das eleições presidenciais.

O que esses índices revelam além de flutuações das pequenas conjunturas? O que eles indicam para além dos acertos políticos da gestão Dilma Rousseff?

Para estudar as tendências políticas mais profundas em curso no Brasil seria necessário um olhar de maior capacidade de totalização e de mais longa perscrutação no tempo. Nos anos 1990, mais nitidamente a partir da vitória eleitoral de Fernando Henrique Cardoso nas eleições de 1994, a conjuntura política brasileira movimentou-se para a direita sob o impacto combinado de três dimensões históricas: as mudanças na conjuntura internacional, recepcionando o aprofundamento das vitórias neoliberais após a dissolução da URSS, que conferiam maior legitimidade aos programas do Estado mínimo; a conquista do centro do Estado brasileiro – não apenas no Executivo, mas no Congresso Nacional – de uma compacta coalizão dirigida por um programa neoliberal; o enfraquecimento social das classes trabalhadoras, com o aumento do desemprego e da cassação de direitos, com a simultânea escalada de poderes econômicos e políticos dos capitais financeiros. O que estaria ocorrendo nos últimos dez anos seria um movimento para a esquerda na conjuntura política brasileira, que funde organicamente essas três dimensões em um sentido dinâmico inverso àquele ocorrido nos anos 1990.

A componente internacional da crise neoliberal no Brasil

O mandato de Dilma Rousseff instalou-se em meio a uma gravíssima crise econômica, que veio abalar os próprios alicerces institucionais neoliberais da unificação europeia. Como o desdobramento e a extensão da crise de 2008, que teve seu epicentro nos Estados Unidos, a crise europeia evidencia seu sentido estrutural (é o próprio padrão de acumulação dominante desde os anos 1980 que está em crise agônica), geopolítico (na medida em que enfraquece um dos polos do centro do sistema capitalista), integral (atinge não apenas os circuitos financeiros da acumulação, mas as dinâmicas produtivas) e político (provoca profunda desestabilização das próprias instituições da integração europeia).

As tradições marxistas críticas, já desatreladas de qualquer determinismo econômico, sabem que essas conjunturas de mudança de período, nas quais ocorrem crises de paradigmas de dominação, são abertas a múltiplas possibilidades futuras, dependendo da formação e disputa das alternativas políticas. Mas seria correto prever que as forças liberais conservadoras, que se agigantaram no período neoliberal, estão sob forte pressão para serem derrotadas e recuarem, sendo mais provável que se vejam em dificuldade de reproduzir suas bases de legitimidade social.

Ora, o partido líder das coalizões neoliberais no Brasil, o PSDB, já se encontrava em posição difícil diante de uma terceira derrota nacional consecutiva nas eleições presidenciais. A nova dinâmica da crise internacional vem agravar suas dificuldades programáticas, de coesão e de identidade.

Em 2011, observamos um importante movimento de tentativa de recomposição do PSDB, através de um acordo entre Fernando Henrique e Aécio Neves, que tinha como centro exatamente a recomposição de um programa ultraneoliberal para o Brasil, a partir de um evento realizado no Instituto Fernando Henrique Cardoso, sob a direção de Edmar Bacha, Pérsio Arida, Malan, Gustavo Franco e André Lara Resende. Uma atualização da defesa do caráter sistêmico de equilíbrio das altas taxas de juros praticadas no Brasil, o centro em um ataque ao BNDES (visto como cidadela do desenvolvimentismo), a defesa de um novo programa de privatizações, o alento da mercantilização dos serviços nas áreas de educação, saúde e previdência compunham um leque programático assentado em uma nova e vigorosa defesa do caráter progressivo das heranças dos governos FHC.

Ora, o sentido “contraintuitivo” desse programa, sua marca antipopular em um cenário de franco descrédito internacional do neoliberalismo, estava na consciência de seus propositores. Mas esse caminho difícil de recomposição programática aparecia, então, como indispensável para uma recuperação da identidade perdida do neoliberalismo na cena política nacional, após as experiências exitosas e populares dos governos Lula.

Com a dinâmica da crise europeia, que acentua e legitima a necessidade de medidas antineoliberais mais profundas, a tentativa de repor o programa neoliberal do PSDB, em uma versão radicalizada, parece deparar com menos espaço público ainda para se desenvolver. Há uma frontal contradição com a consciência do povo brasileiro em sua progressão. O PSDB, o partido histórico do neoliberalismo brasileiro, encontra-se em um dilema programático sem solução à vista. E esse dilema ameaça tornar-se sua própria identidade, isto é, uma crise de desagregação, de incapacidade de coesionar forças políticas e econômicas e de gerar legitimidade pública.

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[nextpage title="p.2" ]A dinâmica social da crise do neoliberalismo no Brasil

A dependência estrita dos fluxos financeiros internacionais, a interdição dos sentidos desenvolvimentistas do Estado brasileiro na economia por meio da privatização e da desregulamentação, a maximização das vantagens do rentismo através de uma super-ortodoxia monetarista do Banco Central, o debilitamento do setor produtivo nacional e, principalmente, a corrosão das bases sociais das classes trabalhadoras, com a crescente marginalização social dos pobres, compunham o pano de fundo das vitórias políticas do neoliberalismo no Brasil nos anos 1990. No campo, os tempos foram de maximização dos poderes econômicos do agronegócio e de pressão sobre as bases produtivas da agricultura familiar, além da criminalização dos movimentos de luta pela terra.

Se bem avaliarmos, cada um desses itens, que compunham a crescente base social do neoliberalismo, encontra-se hoje submetido a uma dinâmica inversa. São as bases sociais de uma política de esquerda, em seu conjunto, que estão se fortalecendo.

O governo Dilma Rousseff vem trazer três grandes novidades a essa dinâmica. Em primeiro lugar, está claramente em curso um novo reposicionamento do Estado– de sua capacidade de regulação, de suas bases próprias de intervenção, de sua capacidade de planejamento – em relação aos capitais financeiros na macroeconomia brasileira. Se os governos Lula superaram a dependência financeira externa do país, a gestão de Dilma está gerando um novo enquadramento institucional dos capitais financeiros na democracia brasileira. A inserção da presidência do Banco Central na gestão macroeconômica liderada pelo Ministério da Fazenda, a redução da taxa Selic para um patamar aproximado das taxas internacionais e, agora, a vigorosa e vitoriosa campanha para forçar os bancos privados a baixar suas escandalosas taxas de juros através da concorrência dos bancos públicos estabelecem claramente um novo padrão. Ainda há decerto muito a construir para uma republicanização da gestão financeira da economia brasileira, mas seria insensato não reconhecer que um novo padrão de regulação está sendo implantado.

A segunda grande novidade é a gestação e implantação de uma política industrial, através de medidas que incentivam a inovação e de um ativismo que visa proteger a indústria local da concorrência predatória, seja da guerra cambial, seja da concorrência  chinesa. O primeiro ano do governo Dilma foi marcado exatamente pelo aumento das pressões sobre a indústria e pela formação de uma nova inteligência sobre os riscos colocados por uma dinâmica de desindustrialização. Desde o segundo PND, ainda nos anos da ditadura Geisel, o Brasil não pratica uma política industrial.

A terceira novidade, na verdade um aprofundamento das políticas de inclusão social anteriores, é a criação do Plano Nacional de Erradicação da Miséria, que visa superar os bolsões mais resistentes da pobreza através de políticas intersetoriais e planejadas. São 13 milhões de brasileiros beneficiados e apoiados para superarem condições sub-humanas de vida, de raízes seculares. O IBGE divulgou a redução da taxa de mortalidade infantil no Brasil, que caiu pela metade nos últimos dez anos e deverá experimentar nos próximos nova queda substancial, com as políticas postas em prática.

Em 2011, verificou-se um importante ciclo de greves nacionais, como a dos bancários, expressando novos potenciais de luta do movimento sindical. Há todo um campo possível de conquistas descortinado para os movimentos sociais nos próximos períodos. E tudo isso vai compondo as bases sociais do impasse do neoliberalismo no Brasil.

A dimensão política da crise do neoliberalismo brasileiro

A década de 1990 foi marcada pelo auge de expansão e legitimidade do PSDB, pelo fortalecimento dos partidos conservadores como o PFL e o PTB, pela força de coesão da coalizão liberal-conservadora (que incluía inclusive o PMDB) e pela suspensão do franco progresso dos partidos de esquerda e centro-esquerda, presenciado no Brasil nas conjunturas finais dos anos 1980.

Todas essas quatro dinâmicas têm sido invertidas nos últimos dez anos, embora não de modo equilibrado na geografia e em todas as camadas sociais do país. Em particular, o PSDB manteve sua força em São Paulo, em Minas Gerais, crescendo no centro-oeste e parcialmente no sul do país. Mas a grande massa da população brasileira que recebe até três salários mínimos, e compõe a maioria do eleitorado, tem criado uma nova e importante relação de confiança na liderança pública de Lula e, em uma medida importante, no PT.
A primeira grande novidade política do governo Dilma é o fato de se apoiar em uma vasta e bastante heterogênea coalizão parlamentar. Os partidos neoliberais e conservadores perderam capacidade de fazer oposição sistemática na Câmara e no Senado, embora em temas importantes como o Código Florestal mostrem capacidade de impor derrotas pontuais ao governo, em função da força da bancada ruralista.

A segunda é ter conseguido retirar das oposições neoliberais a iniciativa do uso instrumental da corrupção como modo de relançar a legitimidade do Estado mínimo e colocar as forças de esquerda na defensiva. O que poderíamos chamar de “trauma da crise de 2005”, a mais grave crise do governo Lula, parece estar sendo superado. As esquerdas estão tomando a iniciativa de ganhar a liderança na luta contra a corrupção e agora, com a CPI que investiga o sistema criminoso montado por Carlinhos Cachoeira, é todo um dispositivo do DEM, do PSDB, midiático que está vindo à tona.

A terceira parece estar sendo as iniciativas no campo da chamada Justiça de Transição, que implica estabelecer um novo padrão no reconhecimento dos crimes cometidos pela ditadura militar, cuja revisão e cuja punição democráticas foram paralisadas pela transição conservadora. Não se deve desprezar as profundas conquistas de consciência e legitimidade que a Justiça de Transição pode trazer para o povo brasileiro, em sua construção de memória, de dignidade e de defesa dos direitos humanos.

A primeira conjuntura de uma nova época histórica

As eleições municipais de 2012 realizam-se, portanto, em um cenário globalmente positivo para as forças de esquerda e centro-esquerda. É muito provável que as forças neoliberais e conservadoras saiam ainda mais enfraquecidas destas eleições. Em particular, os resultados eleitorais em São Paulo – onde Serra busca recompor sua liderança pública e o PT procura abrir uma nova conjuntura estadual – e em Minas Gerais, onde Aécio Neves busca consolidar as bases de sua pré-candidatura à Presidência, vão dar as dimensões políticas e simbólicas desse possível recuo.

Uma consciência crítica das possibilidades para a esquerda brasileira não deve, de modo algum, diminuir as dificuldades colocadas à frente. O triunfalismo já revelou ser na história das esquerdas, inclusive a brasileira, um péssimo conselheiro. Mas não é isso que se vê nesse ciclo pessoal, que o povo brasileiro acompanhou com a respiração suspensa, vivido dramaticamente por Lula: há ali um exemplo da humilde condição humana, em sua fragilidade, repondo, sabe-se lá com que esforço e sofrimento, sua presença central na história do país.

O tempo é de novas esperanças para a esquerda brasileira, mais fortes ainda porque sabidamente conquistadas com suor e lágrimas. E com muita alegria e felicidade também.

Juarez Guimarães é cientista político, professor na UFMG [/nextpage]