A expansão do financiamento deve atender também as empresas menores, as mais inovadoras, voltadas à recuperação da infraestrutura e ao pré-sal
A expansão do financiamento deve atender também as empresas menores, as mais inovadoras, voltadas à recuperação da infraestrutura e ao pré-sal
A queda dos juros e a redução do spread terão efeitos positivos no médio e longo prazos que se espraiarão sobre a elevação do crédito, a redução da inadimplência, o crescimento econômico e o financiamento de longo prazo. No entanto, alguns problemas de natureza mais estrutural do financiamento do desenvolvimento continuarão presentes e exigirão um olhar voltado para o horizonte e o projeto de nação que queremos construir
O desafio do financiamento do desenvolvimento (em volume, qualidade e prazos) talvez seja em conjunto com o da (re)industrialização, um dos maiores da atualidade.
Depois da crise da dívida e do domínio das ideias neoliberais, o Brasil encerrou os anos 90 do século passado com regressão da estrutura industrial, deterioração da infraestrutura, descompasso frente aos avanços globais da inovação e da tecnologia, forte atraso no campo educacional e ampliada desigualdade social.
A partir dos anos 2000 abre-se uma nova etapa. Uma nova visão do desenvolvimento começa a se esboçar e se expressa mais intensamente a partir de 2006 e frente à crise internacional. Nessa etapa, pouco a pouco se deixou de pensar a indústria e o crescimento econômico sob a lógica das exportações, valorizando-se a expansão do mercado interno e iniciando-se um processo de expansão do crédito, da inclusão e da distribuição de renda. Nesse processo, também se deixou de considerar o câmbio como determinado exclusivamente pelo movimento de capitais e reconheceu-se que o agronegócio e a mineração têm vantagens competitivas.
No entanto, o financiamento do desenvolvimento permaneceu submetido a uma lógica adversa. Impediram seu crescimento fatores como os juros ainda elevados, a continuidade da lógica de “curto prazo” do setor financeiro, a ainda reduzida dinâmica do mercado de capitais e a ausência de instrumentos capazes de congregar e alavancar os recursos de diferentes origens destinados ao financiamento de longo prazo.
Desde 2003 o Brasil fez um esforço considerável na expansão do crédito e do financiamento. Os investimentos cresceram mais intensamente que o PIB a partir de 2004. O saldo total das operações de crédito em 2003 alcançava 24,6% do PIB; em 2011 saltou para 49,1%. Nesse último ano, 17,7% do PIB correspondeu ao crédito direcionado (FAT, FGTS, Tesouro etc.), 15,9% ao crédito livre pessoa física (PF) e 15,5% ao crédito livre para pessoa jurídica (PJ).
O crédito voltado à PF teve um extraordinário desempenho, iniciado com a criação do crédito consignado, das contas simplificadas e pela ampliação do crédito ao consumo. Em 2011, pela primeira vez o crédito à PF ultrapassou os destinados às PJ (no total do crédito livre). Embora correspondendo a financiamentos individuais e de menor prazo, seu dinamismo foi determinante para a aceleração do PIB (responsável por cerca de 30% do crescimento econômico desse período) e para a elevação da demanda de financiamentos de mais longo prazo.
O financiamento habitacional e à agricultura
O financiamento habitacional e à agricultura cresceu de maneira extraordinária nos anos 2000, graças sobretudo à contribuição da Caixa Econômica Federal ao primeiro (cerca de 75% do total) e do Banco do Brasil ao segundo (em torno de 55% do total).
O financiamento habitacional deslanchou acentuadamente a partir de 2003 e mais intensamente de 2005 para cá, alcançando 25% do total do crédito direcionado em 2011. Mesmo durante a crise manteve seu crescimento, graças às estratégias anticíclicas dos bancos públicos e ao programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV).
Também se retomou o caráter social do FGTS, criou-se o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e ampliaram-se os recursos orçamentários para compor subsídios diretos às famílias – de modo a alterar sua destinação para as camadas mais pobres da população –, assim como as garantias jurídicas aos contratos (alienação fiduciária e patrimônio de afetação).
O crescimento foi extraordinário, tanto do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), que tem por base os recursos do FGTS, quanto do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), com recursos da poupança. O FGTS executou recursos de R$ 2,5 bilhões em 2003; em 2011, mais de R$ 35 bilhões. O SFH financiou R$ 2,34 bilhões em 2003 e nada menos que R$ 79,1 bilhões em 2011.
No entanto, mesmo com o desempenho inaudito do financiamento habitacional, que ultrapassou em 2011 os R$ 114 bilhões no país e teve um papel importante no financiamento e no crescimento econômico, com elevado impacto positivo sobre o emprego e a dinâmica das cidades –, sua participação no PIB ainda é relativamente baixa (cerca de 5%).
Os recursos com origem no FGTS e na poupança são reconhecidamente finitos e poderiam alcançar seus limites proximamente. O FGTS, devido à inevitável redução do crescimento do emprego formal nos próximos anos (vis-à-vis sua extraordinária expansão nos últimos anos). A poupança, que ainda é responsável por nada menos que 49,9% dos investimentos dos brasileiros com renda acima de R$ 4 mil, tem pela frente o desafio do surgimento de outras formas de aplicações, ainda mais intenso se confirmada a continuidade da política do Banco Central de redução dos juros.
Por isso, tentou-se sair do uso exclusivo do SBPE e do SFH no financiamento habitacional e da infraestrutura urbana com a valorização do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI). Criaram-se novos instrumentos de financiamento, como a securitização ou os CRIs, CCIs, LCIs e, mais recentemente, os covered bonds, de maneira a buscar a sustentação do financiamento em um prazo mais longo. Os FIIs e FDICs também se desenvolveram e mostram uma migração de recursos da renda fixa para os fundos imobiliários.
Embora o SFI só tenha deslanchado a partir de 2008, teria alcançado R$ 37 bilhões em 2011. Mesmo assim, representou, em parte, uma repaginação dos recursos do SBPE e do SFH, e até hoje não conseguiu substituir o FGTS e, sobretudo, a poupança na velocidade requerida, fazendo com que sigam por mais algum tempo como fontes de recursos dominantes.
O financiamento à agricultura continuou desenvolvendo-se em paralelo ao crescimento da Embrapa e das exportações. Alcançou 14% do crédito, em 2011, direcionado e assegurando não somente a expansão da produção agrícola em meio ao boom das commodities, como a elevação da produtividade (com introdução mais intensa da inovação e elevação do valor agregado) e uma maior integração com segmentos da indústria.
O financiamento de longo prazo
O financiamento de longo prazo destinado às empresas também deslanchou. Em 2011 respondeu por cerca de 60% do crédito direcionado. No entanto, apresentou ritmo mais modesto e manteve três de suas características históricas:
•O mercado de capitais, embora tenha avançado nos dois anos que antecederam a crise internacional, ainda não forma parte relevante do financiamento das empresas, salvo em determinados segmentos;
•O setor financeiro privado continuou – como na história do desenvolvimento brasileiro – voltado ao curto prazo e mais restrito ao financiamento do capital de giro das empresas, à concessão de crédito ao consumidor e ao repasse de recursos externos e dos fundos de poupança compulsórios administrados pelo setor público;
•Como resultado das duas primeiras e da maior responsabilidade adotada pelo governo federal, o BNDES – tendo por base recursos do FAT e do Tesouro – assumiu o desafio e continuou amplamente dominante nesse tipo de financiamento, alcançando 58% do crédito direcionado.
Em 2010, visando viabilizar um mercado privado de financiamento de longo prazo, foram adotadas medidas de estímulo pelo governo federal, com desonerações tributárias e alterações institucionais. Apesar dos avanços, com impactos positivos sobre o mercado de títulos privados de renda fixa, pode-se dizer que o viés de “curto prazo” dos investidores financeiros manteve-se e os desafios ao financiamento de longo prazo continuam presentes.
A atual fase do desenvolvimento nacional exige não somente a expansão do financiamento, mas também que este atenda as empresas menores, apoiando aquelas mais inovadoras, voltadas à recuperação da infraestrutura e ao pré-sal. Esses desafios ainda são múltiplos e, em paralelo às políticas industriais, exigiriam:
•Continuar o processo de redução da taxa de juros e acentuar a pressão iniciada recentemente por meio dos bancos públicos sobre o nível dos spreads e, caso os privados se incorporem ativamente a esse processo, também de outras políticas, tributárias ou referentes aos compulsórios;
•Adotar o prazo como variável para a definição de alíquotas do IR para aplicações e ampliar o prazo mínimo de aplicação dos depósitos a prazo e das cadernetas de poupança;
•Dar continuidade às medidas adotadas ao final de 2010, com novas ações tributárias e financeiras, inclusive com a maior redução da indexação ainda existente;
•Preservar e consolidar a regulação do SFI de maneira a assegurar a continuidade de seu desenvolvimento sem riscos à la sub-prime e sabendo, também, que dificilmente ele dará conta do conjunto da demanda e desafios do financiamento imobiliário no futuro imediato;
•Assegurar que os recursos oriundos do pré-sal também sejam destinados à superação de distorções da estrutura tributária, do encarecimento dos insumos básicos e do financiamento de longo prazo, sobretudo da indústria e da infraestrutura, que verão ampliadas suas demandas pela exploração do pré-sal;
•Dar continuidade à utilização do crédito direcionado, mas com a criação em paralelo de um ou vários fundos (coordenados pelo BNDES e pela Caixa) capazes de compor os recursos de diferentes proveniências (FAT, Tesouro, pré-sal, setor financeiro privado nacional e estrangeiro, FGTS, poupança etc.), dirigidos ao financiamento de longo prazo, sobretudo para infraestrutura, inovação e tecnologia, setor imobiliário e saneamento.
Os PACs e o recente pacote de aprofundamento do Plano Brasil Maior pretenderam dar um estímulo à infraestrutura e ao setor industrial. Só as recentes medidas do PBM envolvem R$ 60,4 bilhões em 2012. Além da desoneração da folha de pagamentos e da renúncia fiscal, o governo aportou mais R$ 45 bilhões ao BNDES, visando alavancar o crédito e estimular a indústria. O banco passou a ter uma previsão de desembolsos para 2012 de cerca de R$ 150 bilhões.
Por outro lado, dando continuidade ao processo de redução dos juros, o Banco do Brasil e sobretudo a Caixa voltaram a exercer um papel positivo na tentativa de reduzir os spreads, ao baixar os juros de maneira mais acentuada em uma série de seus produtos. Tal postura tem potencial para favorecer a redução dos spreads, dado que cerca de 35% deles foram resultado da extraordinária lucratividade do sistema financeiro privado em 2010, segundo o Bacen (e, portanto, dos juros cobrados em suas operações).
O governo e as instituições públicas acertaram mais uma vez no enfrentamento das dificuldades conjunturais e na continuidade do uso do crédito direcionado para o financiamento de longo prazo. Mas agora também tivemos uma nova articulação de políticas visando reduzir os juros, assegurar uma taxa de câmbio mais favorável e a redução dos spreads. Os efeitos sobre os juros e o câmbio já se fizeram evidentes, mas sobre os spreads só poderão ser medidos mais adiante e, sobretudo, se os bancos privados seguirem ativamente as iniciativas dos bancos públicos. A queda dos juros e a redução do spread terão efeitos positivos no médio e longo prazos que se espraiarão sobre a elevação do crédito, a redução da inadimplência, o crescimento econômico e o financiamento de longo prazo.
No entanto, alguns problemas de natureza mais estrutural do financiamento do desenvolvimento continuarão presentes e exigirão um olhar voltado para o horizonte e o projeto de nação que queremos construir.
Suas demandas serão ampliadas pelo crescimento da produção das commodities, pelas dificuldades enfrentadas pela indústria, pela próxima exploração do pré-sal e pela ocorrência dos eventos internacionais previstos. Tal dinâmica tende a gerar ainda maiores demandas de financiamento à indústria, infraestrutura, educação e inovação e tecnologia.
Daí a importância e a urgência de – em paralelo à redução dos juros e do spread – se buscar fontes inovadoras de financiamento, capazes de congregar as diferentes origens dos recursos a serem direcionados ao financiamento de longo prazo do nosso desenvolvimento.
Jorge Mattoso é economista e consultor, com doutorado pela Unicamp e pós-doutorado pelo IRES, na França. Foi professor do Instituto de Economia da Unicamp (1985-2009), professor da Cátedra Celso Furtado da Universidade Complutense de Madrid, na Espanha (2010), secretário de Relações Internacionais da PMSP (2001-2003) e de Finanças de São Bernardo do Campo (2009) e presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2006)