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Em 2005, 21% da população de Camaçari estava em situação de extrema pobreza. Hoje o desafio é tirar os 11,34% que ainda se encontram nessa faixa

O plano Camaçari Sem Miséria, lançado em julho de 2011, é pioneiro entre os municípios e segue as diretrizes do Brasil Sem Miséria, plano nacional de superação da pobreza extrema. Para viabilizá-lo, um novo arranjo institucional, com a criação da Secretaria de Cidadania e Inclusão, dá autonomia às frentes de trabalho e privilegia a intersetorialidade das ações do governo municipal

 

Prefeitura petista gera inclusão produtiva, desenvolvimento social e combate à m

Prefeitura petista gera inclusão produtiva, desenvolvimento social e combate à miséria. Foto: Agnaldo Silva

[nextpage title="p.1" ]Com um Produto Interno Bruto de R$ 10 bilhões, o segundo da Bahia, Camaçari é conhecida internacionalmente por abrigar o maior complexo industrial integrado do Hemisfério Sul, bem como por sua exuberante natureza. São 42 quilômetros de praia, no litoral norte do estado, com rico relevo e vegetação que inclui dunas, manguezais, restingas, mata ciliar e Mata Atlântica, além de três áreas de preservação ambiental.

A população da cidade, até a década de 1970 de pouco mais de 33 mil habitantes, está em 243 mil pessoas, de acordo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O crescimento populacional na última década foi de 50,23% e há tem se mantido acima dos índices estaduais. A busca por melhores condições de vida levou milhares de imigrantes para a cidade, mas nem todos tiveram a ascensão social esperada. Hoje, 11,34% da população, segundo o IBGE, vivem em situação de extrema pobreza, com renda per capita de até R$ 70. São 8.390 famílias, em torno de 27,5 mil pessoas.

O prefeito da cidade, Luiz Caetano, em seu segundo mandato pelo Partido dos Trabalhadores (PT), aposta no investimento em políticas públicas sociais para reverter a situação. O orçamento municipal tem mais de 60% dos recursos direcionados a investimentos como construção de moradias e melhorias de escolas e unidades de saúde. Tal diretriz contribui para a redução da extrema pobreza em Camaçari, que em 2005 abrangia 21% da população.

Experiência administrativa

Luiz Caetano ingressou na vida política pelo movimento estudantil e chegou a Camaçari em 1979. Em 1985 venceu a primeira eleição direta para a prefeitura da cidade, antes realizada apenas nas capitais e áreas de segurança nacional. “Não havia literatura sobre gestão municipal para a esquerda. Ainda assim, apostamos no desenvolvimento social”, conta. Hoje, o PT acumula experiência administrativa nos âmbitos municipal, estadual e federal. “A partir dessa vivência, construímos uma agenda positiva e investimos em um arranjo institucional que privilegia a intersetorialidade, o diálogo com a base e a convergência de ações com os governos da Bahia e federal.”

Caetano diz que o plano Camaçari Sem Miséria, lançado em julho de 2011, é pioneiro entre os municípios e segue as diretrizes do Brasil Sem Miséria, plano nacional de superação da pobreza extrema. Para viabilizá-lo foi proposto um novo arranjo institucional com a criação da Secretaria de Cidadania e Inclusão (Secin), formatada para permitir a autonomia das várias frentes de trabalho, privilegiando a intersetorialidade para potencializar as ações do governo municipal.

Foto: Secretário Carlos Silveira/Arquivo

O titular da pasta é Carlos Silveira, fundador do PT de Camaçari, que já passou pelas Secretarias de Administração e de Ação Social da prefeitura e foi assessor especial na Secretaria de Desenvolvimento Social estadual. Para ele, a criação da Secin e o Camaçari Sem Miséria são motivos de comemoração. “Fomos o primeiro município do Brasil a aderir ao programa federal, um arranjo que veio em momento oportuno”, destaca. Segundo ele, o diálogo entre governo e sociedade civil facilita a identificação de famílias que se encontram na extrema pobreza. “Nos primeiros meses nos empenhamos em organizar e sistematizar os espaços de diálogo e participação, garantindo maior integração entre os gestores do plano e os demais atores sociais.”

Orçamento enxuto e autonomia

O orçamento da Secin para 2012 é de R$ 1,2 milhão, mas já estão garantidos R$ 6,5 milhões, por meio de projetos, parcerias e convênios. “Investimos na elaboração de programas e projetos voltados ao desenvolvimento local sustentável”, afirma. O montante será aplicado em ações como a estruturação do Centro Público de Economia Solidária, transferência de tecnologia e capacitação. Outra, em convênio com a IBM do Brasil, destina-se a capacitar duzentos jovens oriundos de famílias com renda per capita de até R$ 70 que estejam inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal.

Silveira explica que a formatação da Secin resulta de anos de experiência no trabalho social. “Não havíamos criado a secretaria institucionalmente, mas desde 2007/2008 abrangemos temas como igualdade racial e inclusão produtiva em nossas políticas”, conta. Além disso, a aproximação com lideranças e representantes dos diversos segmentos da sociedade é efetiva, como a indicação, no início da atual gestão, da babalorixá Ivonete Mota Reis para a coordenação de Igualdade Racial. Era a primeira vez que um representante de religiões de matriz africana assumia um cargo público em Camaçari, localidade com mais de trezentos terreiros.

A Secin conta com três coordenações: de Promoção da Igualdade, de Promoção à Livre Orientação Sexual e de Economia Solidária e Inclusão, mais um Núcleo Executivo de Projetos. Todas dialogam entre si e com a estrutura administrativa da prefeitura, encaminham as demandas dos movimentos sociais e dos cidadãos, assessoram no desenvolvimento de programas e projetos, sobretudo os vinculados aos objetivos do Camaçari Sem Miséria. O compartilhamento de responsabilidades e o envolvimento do público de cada coordenação são marcos da Secin. [/nextpage][nextpage title="p.2" ]

Ações intersetoriais

O município de foi o primeiro da Bahia a aderir ao Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), lançado em outubro de 2011 pelo Ministério do Trabalho e Emprego e desenvolvido em parceria com os estados e municípios. A Secin atraiu a inscrição de 2,3 mil cidadãos. “Levamos o Pronatec para terreiros de candomblé, comunidade LGBT, igrejas evangélicas e população quilombola”, comemora Silveira. Para ele, a diversidade de público beneficiado pelo programa é fundamental para garantir a inclusão produtiva.

A Secin propõe uma atuação integrada, que supere o relacionamento passivo entre Estado e população. “É um conceito novo, de sair do gabinete, ir para a comunidade, e promover a integração entre as secretarias”, afirma Silveira. O coordenador de Promoção de Igualdade, Ives Pires, destaca a atuação com vistas a garantir o respeito à diversidade no município, com a promoção de políticas públicas de combate às desigualdades raciais. “Dialogamos com as secretarias e a sociedade civil, além de acompanhar mais de quinhentas entidades que reúnem religiões de matriz africana, o povo cigano e comunidades quilombolas”, diz.

Pires destaca algumas ações intersetoriais promovidas pela Secin, como a inclusão da anemia falciforme no prontuário do SUS, permitindo o levantamento de estatísticas e o melhor tratamento da doença, que é crônica e acomete em sua maioria os negros. Como 70% da população de Camaçari é negra, a ação é fundamental. A coordenação promove ainda o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI) e desenvolve um atividades com esse segmento, respeitando as individualidades.

O Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, conta com calendário que envolve negros das igrejas evangélicas (show gospel), palestras nas escolas, além da Marcha dos Povos de Terreiro, com o objetivo de dar visibilidade aos adeptos de religiões de matriz africana, combater o preconceito racial e a intolerância religiosa. “O Povo Santo, que não era reconhecido como autoridade religiosa, hoje vem à secretaria com suas demandas”, conta.

Inclusão produtiva e economia solidária

A Coordenação de Economia Solidária e Inclusão atua em iniciativas importantes na área da economia solidária e comércio justo, fomentando a inclusão social e produtiva em Camaçari. Responsável pela criação do Fundo Municipal de Desenvolvimento e Inclusão Produtiva (Fumdip), já regulamentado e com orçamento de R$ 1,2 milhão em 2012, está empenhada em viabilizar projetos como a estruturação do Centro Público de Economia Solidária, a criação da incubadora pública e do núcleo de acolhimento a catadores e catadoras de resíduos sólidos recicláveis.

O eixo de trabalho para a inclusão produtiva inclui assistência técnica, qualificação socioprofissional, economia popular e solidária e o envolvimento do cidadão. O administrador, Humberto Leite, 54 anos, é o primeiro cidadão de um município a ocupar uma das 37 vagas no Conselho Nacional de Economia Solidária. Único representante da Bahia no fórum, Leite era microempresário da área de alimentação e em 2003 começou passou a se articular com outros microempreendedores para tentar influir nas políticas públicas do município. Conheceu o conceito de Economia Solidária e fascinou-se. “Passei a trabalhar e estudar com outra perspectiva”, conta.

Resgate e inclusão

O projeto-piloto da Secin é o Floresta Solidária, desenvolvido na comunidade quilombola de Cordoaria. Segundo o antropólogo Eduardo Guimarães, consultor da secretaria, os resultados do projeto vão subsidiar a formulação de políticas de inclusão social e produtiva para as comunidades rurais e periurbanas de Camaçari. “A ideia é promover um trabalho que respeite as identidades culturais e étnicas e leve ao desenvolvimento sustentável a partir dos saberes e técnicas da comunidade”, afirma. Segundo ele, os quilombolas de Cordoaria herdaram a tradição africana de cultivo em floresta – agricultura com grande diversidade de cultivos integrada à floresta tropical.

O relatório técnico de identificação e delimitação da comunidade é um dos pontos de partida do projeto, iniciado em janeiro. A previsão é concluí-lo em seis meses. Com a titularização, além da posse do terreno, os cerca de 1,2 mil moradores serão beneficiados pelas políticas públicas voltadas para as comunidades quilombolas. A agricultura familiar é a principal atividade econômica local e a produção agrícola exerce papel fundamental no abastecimento alimentar do município. Para se ter uma ideia, 80% dos comerciantes da Feira da Agricultura Familiar, realizada às quintas-feiras na sede da prefeitura, são de Cordoaria. A Secin requalificará as instalações da feira e levará assistência técnica agroecológica aos produtores, com o objetivo de recuperar o solo e diversificar a produção.

Ives Piremo pontua alguns subprojetos do Floresta Solidária, como a Escola Quilombola. O novo currículo, a cargo da Secretaria de Educação, incorporará projeto pedagógico com referência nos saberes tradicionais – a identidade quilombola – e nas potencialidades dos ecossistemas locais. “Os alunos serão educados para se sentirem pertencentes ao quilombo”, afirma. A criação de um Conselho dos Sábios e Sábias da comunidade será outro passo importante na valorização da autoestima da população e no resgate da memória da localidade.

Ives Pires: alunos serão educados para se sentirem pertencentes ao quilombo | Foto: Marcelo Ferrão

No âmbito da saúde está sendo desenvolvido o projeto Saúde Integral: Prevenção das Doenças Através dos Alimentos. Está prevista ainda a assistência técnica e extensão rural, para valorizar a tradição agrícola, e a incorporação dos habitantes de Cordoaria aos programas e projetos de capacitação, geração de renda e oportunidade de trabalho do município. O projeto Quilombo Digital, de internet livre, será implementado logo após a licitação da torre, marcada para 15 de março. O projeto Fábrica de Ideias será implantado com o apoio do Centro Público de Economia Solidária, para o desenvolvimento de tecnologias sociais replicáveis. O destino da Casa de Farinha dos quilombolas, hoje desativada, será definido em consonância com a comunidade, assim como a promoção do turismo étnico, do turismo rural e do ecoturismo.

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Comunidade vislumbra melhorias

Para chegar a Cordoaria, basta se deslocar alguns quilômetros do centro de Camaçari. O presidente da Associação Beneficente Nossa Senhora Santana de Cordoaria, José Angelino de Santana dos Santos, 41 anos, diz que a entidade, fundada há mais de 40 anos, sempre buscou dialogar com o poder público e tem conseguido algumas conquistas a um ritmo mais lento que o desejado.

Segundo ele, a expectativa em torno do Floresta Solidária é de que haja uma revitalização da atividade agrícola na comunidade e a nova geração conheça um pouco mais de sua tradição e história. “Desde a certificação da Fundação Palmares, em 2005, vivemos à espera da regularização fundiária, muito importante para as cerca de 400 famílias que vivem aqui”, afirma. Géo, como é mais conhecido, destaca que ele e os cinco irmãos foram criados com o rendimento da agricultura familiar. “Desde criança íamos com meu pai para a feira de São Joaquim, em Salvador, levando até 7 mil dentes de quiabo. Aliás, íamos para várias feiras da capital.”

Maria Cristina quer levar sabedoria para as crianças de Cordoaria | Foto: Marcelo Ferrão

Secretária da associação e irmã de Géo, Maria Cristina de Santana dos Santos, 38 anos, orgulha-se do patriarca. “Painho planta de tudo um pouco. Vende o que sobra: feijão de corda, mamão, mandioca. Minha irmã faz biju e bolo para vender na feira, todos aqui vivem da agricultura”, conta. Professora, Maria Cristina defende a criação da escola. “Sempre soubemos da história do quilombo pelos nossos pais e avós, mas não dávamos muita importância. Depois do reconhecimento é que fui buscar conhecer nossa história. Com certeza é importante levar essa sabedoria para as crianças de Cordoaria.”

Angélica Santana dos Santos, outra irmã, tem 40 anos e cria os três filhos com a venda de biju, pamonha e bolo de carimã, produzidos com matéria-prima vinda da plantação do pai. “Eu beneficio desde pequena, comecei lá pelos meus 11 anos. Aprendi as receitas com minha mãe”, diz. Seus quitutes são vendidos semanalmente na Feira Livre. “Antes fazíamos biju na Casa de Farinha. Ela acabou desativada e cada um faz seu trabalho no quintal.”

Mudança de cultura e combate à homofobia

A Coordenação de Promoção à Livre Orientação Sexual garante apoio e assistência ao cidadão que sofre discriminações de qualquer natureza. Para Paulo Paixão, coordenador, o maior desafio do município é mudar a cultura do preconceito contra essa parcela da população. Fundador do Grupo Gay de Camaçari, que atua há doze anos, Paixão traz na própria história de vida um exemplo de batalha contra o preconceito. O assistente social é homossexual, babalorixá e possui uma deficiência de voz. “Temos conseguido avanço na garantia de direitos humanos”, celebra.

Paulo Paixão acredita que prefeitura conseguiu dar visibilidade aos LGBTs da cidade. Foto:| Marcelo Ferrão

Segundo Paixão, há alguns anos, a população gay da cidade, estimada em 5 mil habitantes, ficava reclusa, com medo de aparecer. “O movimento não tinha acesso ao gabinete do prefeito e a outros órgãos públicos. Estamos conseguindo dar visibilidade a um segmento da sociedade.” O coordenador celebra o pioneirismo da Secin no Nordeste e na Bahia e destaca o decreto Camaçari Sem Homofobia, prestes a ser assinado, além do Conselho Municipal de Direito LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). Em 2008, a cidade promoveu a 1ª Conferência Municipal LBGT.

Cursos de capacitação LGBT, unidades habitacionais do Minha Casa, Minha Vida para um travesti, a criação de um observatório municipal contra a violência, além do fortalecimento de políticas de saúde na prevenção à doenças sexualmente transmissíveis e à Aids, são exemplos de ações que têm dado empoderamento a esse público. “Você percebe o crescimento da autoestima da pessoa e de sua família. Sua rotina de cidadão muda. Antigamente, tínhamos medo de deixar a sede do Grupo Gay aberta, por causa de violência e da retaliação”, conta Paixão.

O município é o primeiro do Brasil a ter um cidadão homossexual no Conselho Municipal de Saúde e a homofobia é discutida nas escolas municipais. “Também conquistamos direitos civis como a inclusão de homossexual como gênero no sistema de identificação da prefeitura e o decreto municipal que permite ao cidadão travesti ser chamado pelo nome social. São conquistas que contribuem para mudar a cultura da população”, enfatiza.

Katja Polisseni é jornalista[/nextpage]