Sociedade

Direitos humanos surgem para garantir a espécie humana, para nos lembrar que nascemos e devemos ser livres e iguais em direitos

A afirmação de direitos fundamentais é uma resposta à falta de perspectivas e constitui uma fonte de esperança e garantias contra os horrores, barbáries e violências de que é capaz o ser humano. A concepção que temos hoje é de que existem direitos fundamentais a todos os seres humanos e tais direitos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados.

Direitos humanos nos lembram que nascemos e devemos ser livres

Direitos humanos nos lembram que nascemos e devemos ser livres. Foto: Marcelo Casal/ABr

Tratar de direitos humanos significa entendê-los como resultado de construção humana que possui dimensão histórica. São direitos afirmados e reafirmados cotidianamente. A concepção que temos hoje é de que existem direitos fundamentais a todos os seres humanos e tais direitos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados.

Esse entendimento viceja no contexto pós-grandes guerras do século 20. A afirmação de direitos fundamentais é, sem dúvida, uma resposta à falta de perspectivas e constitui uma fonte de esperança e garantias contra os horrores, barbáries e violências de que é capaz o ser humano, vivenciados não só nos grandes conflitos que assolaram o mundo como nas guerras coloniais, recentes e antigas, e nos demais conflitos que nos lembram que é preciso repensar o mundo, os seres humanos que queremos construir.

Não queremos mais conflitos como os vividos nos centros urbanos de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York, Mumbai, Paris. Tampouco queremos os conflitos rurais que retiram famílias de suas terras, que exterminam trabalhadores que reivindicam direitos na Amazônia, na Índia, no Nepal. Não queremos mais conflitos como os do Congo, Sudão, Bálcãs, Europa nazifascista, o apartheid sul-africano.

Os direitos humanos surgem, assim, como para garantir a espécie humana, para nos lembrar a todo tempo que nascemos e devemos ser livres e iguais em direitos, que vivemos em sociedade porque somos seres gregários, políticos. A vida em grupo dá sentido à existência humana, tornando-a mais feliz. É o mundo do que queremos e podemos ser.

Direitos humanos passam a ser entendidos como direitos civis e políticos, e também econômicos, culturais e sociais. São todos igualmente importantes para garantir a dignidade humana. Tão importante quanto garantir a vida impedindo que se morra assassinado é garantir que se tenha um prato de comida, um teto, um lar, uma vida digna. O direito à vida deve ser entendido e protegido em sua forma mais plena. De tal sorte que é tão importante garantir o direito de ir e vir como concretizar o direito à saúde, moradia, cultura e trabalho dignos e decentes.

É nessa medida que os direitos humanos devem, então, ser entendidos como universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados.
<--break->Essa concepção está preconizada e protegida em cartas de princípios, direitos e deveres históricas, como a Carta da ONU, a Declaração Universal de Direitos Humanos, a Declaração de Direitos Humanos de Viena. Também fundamenta diversos pactos e convenções, como o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, o dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial, a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, da Abolição da Tortura, dos Direitos da Criança, dos Trabalhadores Migrantes, da Pessoa com Deficiência, dos Povos Indígenas, contra os Desaparecimentos Forçados, entre tantos outros.

Esses documentos que integram os sistemas regionais e universais de proteção de direitos humanos garantem que estes sejam acionáveis e exigíveis. São direitos que demandam compromissos sérios por parte tanto dos Estados quanto de outros atores, como empresas e instituições, por exemplo.

A Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, é marco decisivo nesse processo. Com sua aprovação e a concepção contemporânea de direitos humanos se desenvolve o chamado direito internacional dos direitos humanos e são adotados diversos tratados específicos, como os anteriormente mencionados.

O direito ao desenvolvimento

Entre os documentos, a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, garante também o direito ao desenvolvimento, igualmente universal e inalienável. Em seu parágrafo 5º dispõe: “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais”.

A declaração traz ainda a ideia de que, para promover de fato os direitos humanos, é necessário consolidar um Estado democrático de direito. A democracia aparece como um direito de todos os seres humanos – mas é claro que devemos nos perguntar que modelo de democracia queremos. Essa tem sido uma das principais perguntas levantadas pelos movimentos, grupos e indivíduos que se somaram ao redor do mundo em praças públicas, ruas e espaços coletivos na Grécia, nos EUA, na Espanha, França, Inglaterra, Síria, no Egito, Brasil, Chile, entre tantos outros países, em 2010 e 2011.

É preciso lembrar todos os dias que direitos humanos são para todos e todas. Isso significa que independe de gênero, raça, etnia, idade, origem, classe, orientação sexual, condição física, presos ou livres. Não há e não deve haver distinção no gozo dos direitos. Todos os seres humanos nascem livres e iguais.
<--break->Uma Constituição progressista

No Brasil, esses direitos foram amplamente assegurados e protegidos por uma Constituição mundialmente reconhecida como progressista, cidadã, garantista, exemplar, protetora, e tantos outros adjetivos utilizados para descrever nossa Carta de 1988, promulgada após longos anos de ditadura militar.

Inovadora, estabelece um verdadeiro mapa da proteção dos direitos fundamentais para assegurar a dignidade humana no país, tudo em conformidade com a normativa internacional. Acolheu direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, neles incluindo os direitos de grupos vulneráveis, como os indígenas, quilombolas, idosos e crianças. Incorporou também, em caráter pioneiro, direitos ambientais e do consumidor. Nossa Carta inovou ainda ao afirmar, por emenda constitucional adotada recentemente, que tratados de direitos humanos têm força de lei constitucional, com aplicação imediata e independentemente de decisão judicial.

Todavia, apesar dessas garantias e de tantas outras aqui não mencionadas, persistem os desafios de promover efetivamente a dignidade humana. Infelizmente vidas precárias, pobres, sofridas, torturadas, curtas, desiguais, violentas, racistas, sexistas, e tantos outros “istas”, ainda são numerosas. É preciso avançar mais.

Pobreza ainda é desafio

A pobreza continua sendo um desafio generalizado. Em fala recente, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, afirmou que a desigualdade econômica e social entre os países e nações ainda é muito grande e potencializa a escassez de serviços básicos e a dificuldade de acesso a eles. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) noticiou há pouco tempo também que cerca de 1,75 bilhão de pessoas vivem na pobreza, quase um terço da população mundial atual. Apesar dos avanços, ainda há crianças mal nutridas e fora da escola.

A tortura, a execução sumária de meninos e meninas pobres e não brancas, o encarceramento em massa, a necessidade premente de conhecer verdades e memórias sobre nossa história, a sociedade dividida por classe, raça e gênero também permanecem, infelizmente, caracterizando muitas sociedades.

<--break->O trabalho escravo contemporâneo corre solto, escancarado à luz do dia dos grandes centros urbanos do Brasil, dos EUA, de países do sudoeste asiático, entre outros.

Florestas que se tornaram campos de gado, que se ampliam a cada dia. Rios que se transformam em barragens. É preciso gerar luz para a sociedade da tecnologia, de 24 horas de informação, sete dias por semana.

Mundo no qual muitas empresas são mais poderosas e ricas que muitos Estados e assumem ou deveriam assumir responsabilidades por seu papel e ações.

Esses dados melhoraram muito se comparados aos horrores do século 20. Mas não são bons, nem satisfatórios. Certamente poderíamos estar melhor.

Como avançar na tão aclamada globalização ética, solidária, que se tentou construir a partir dos variados espaços de discussão e efetivação dos compromissos internacionais assumidos? O direito ao desenvolvimento sadio, digno, anda de certa forma capenga. Parece que continuamos produzindo Ruandas, Congos, Brasis violentos, onde milhares são mortos de forma sumária. Violência contra mulheres, racismo, estupros em massa, doenças endêmicas, educação sem qualidade, moradia inadequada persistem apesar das iniciativas globais.

Especialmente países latino-americanos, como lembrado pela relatora especial das Nações Unidas contra a pobreza extrema, Magdalena Sepúlveda, conseguiram avançar e assegurar mais direitos fundamentais que países desenvolvidos, por terem adotado políticas sociais mais adequadas. Foram avanços consideráveis, tanto no âmbito de programas, ações e leis que garantem direitos iguais a todos e todas quanto em programas sociais como o de combate à pobreza. No Brasil, principalmente, pode-se mencionar programas sérios e comprometidos de combate à fome e à pobreza, de geração de renda, assim como o incentivo à participação cidadã nas tantas conferências. A crise que abala os países do norte é generalizada, abrindo espaço para que surjam novos movimentos e grupos clamando por emprego, outra forma de democracia, mais real, maior participação cidadã, de fato.

<--break->Governos progressistas conseguiram avançar e criar espaços importantes de participação e tomada de decisão por parte da população. Precisamos de mais espaços como esses para reinventar nossas democracias e eleger as prioridades em termos de políticas que promovam de fato direitos fundamentais de homens e mulheres.

Tomando como inspiração os comentários da relatora especial das Nações Unidas contra a pobreza extrema em recente relatório, é preciso garantir que mesmo, e talvez especialmente, em momentos de crise os Estados continuem adotando políticas sociais estruturantes, que possibilitem a participação daqueles a quem essas políticas se destinam.

Direitos humanos são o que queremos e podemos ser, mas precisamos que sejam aqui e agora.

Júlia Mello Neiva é advogada graduada pela PUC-SP, especialista em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e mestra (LL.M) e Human Rights Fellow pela Law School da Columbia University-NY. Coordenadora internacional da Rede Global LogoLink (Learning Initiative on Citizen Participation and Local Governance)