Nacional

Desenvolvida em Contagem desde 2010, iniciativa é experiência inédita de cooperação internacional para reduzir a violência que atinge crianças e jovens entre 10 e 24 anos

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

Segurança e cidadania: fortalecimento de iniciativas populares

Segurança e cidadania: fortalecimento de iniciativas populares. Foto: Max Vianini

Fernando Henrique Sousa Azevedo, 17 anos, sonha ser jogador de futebol. Terceiro de cinco filhos, leva a sério os treinos realizados quatro vezes por semana no campo do bairro Estrela Dalva, na região do Nacional, em Contagem, na Grande Belo Horizonte. “Sei que não vai ser fácil, mas tenho me dedicado bastante”, conta, esperançoso. Caso o sonho não se concretize, o rapaz já sabe o que fazer. “Vou prestar vestibular para administração de empresas e, assim que puder, vou comprar uma casa para a minha mãe.”

O perfil de Fernando Henrique reflete o início da mudança do comportamento de jovens da região, uma das campeãs em vulnerabilidade social do município de Contagem. Ele é um dos beneficiados pelo programa da Organização das Nações Unidas (ONU) “Segurança com Cidadania: prevenindo a violência e fortalecendo a cidadania, com foco em crianças, adolescentes e jovens em condições vulneráveis”.

Desenvolvida em Contagem desde junho de 2010, a iniciativa é uma experiência inédita de cooperação internacional para a promoção de ações que auxiliem na redução da violência que atinge crianças e jovens entre 10 e 24 anos. Por meio do estímulo ao cumprimento voluntário de regras, da autorregulação do comportamento e da promoção de mecanismos de controle social, pretende fortalecer a capacidade dos indivíduos e as condições de governança local para assegurar a sustentabilidade das ações.

Fernando é beneficiado pelo programa da ONU, Segurança com Cidadania | Max Vianini

Seu diferencial está na evolução do entendimento sobre segurança pública. Ao invés de atacar as consequências, a proposta age sobre as causas do crime. Estudos da ONU indicam que a violência é um fenômeno multicausal, e, portanto, deve ser abordada com um enfoque integral de prevenção e controle. “Prevenir o crime significa trabalhar as questões socioeconômicas e de gestão de uma localidade, implementando políticas com foco num conceito mais amplo de segurança, o de segurança humana”, afirma a consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em Contagem, Cíntia Yoshihara.

Segundo ela, o conceito de segurança humana leva a uma mudança de paradigmas, criando uma preocupação com a vida e a dignidade das pessoas. “É um termo amplo, que inclui a segurança econômica, alimentar, ambiental, pessoal, comunitária e política. Nesse contexto, fatores individuais, domésticos ou sociais que têm efeito cumulativo e colocam as pessoas em condições e situações vulneráveis – aumentando o risco de se tornarem vítimas ou agentes da violência – são alvo de propostas construídas em conjunto pela comunidade e pelo poder público a fim de reverter o quadro de insegurança local.”

O Fundo Espanhol para o Desenvolvimento dos Objetivos do Milênio, da ONU, destina US$ 6 milhões ao programa, que também é executado nas cidades de Lauro de Freitas, na Bahia, e em Vitória, no Espírito Santo. Os recursos são aplicados por agências da ONU (Pnud, Unesco, Unodc, Unicef, OIT, UM-Habitat), responsáveis pela implantação das ações em parceria com o Ministério da Justiça e os municípios. A previsão é beneficiar 2 mil jovens, nas três cidades, durante os 36 meses do projeto.

Fortalecimento das ações sociais

Uma das frentes de ação do Segurança com Cidadania está no fortalecimento de iniciativas populares, como a escolinha de futebol do bairro Estrela Dalva. Iniciada há 17 anos pelo mestre de obras José Ferreira de Souza, conhecido como Zé Gordo, a escolinha atende atualmente 160 crianças e adolescentes com idade entre 7 e 17 anos. Para participar, o único pré-requisito é frequentar a escola. “Sempre morei na região e me incomodava a quantidade de menino que ficava solto na rua, sem ter o que fazer. Começamos com trinta crianças. Ainda me espanto com a repercussão que a escolinha ganhou”, afirma, orgulhoso.

A iniciativa envolve hoje outras pessoas da comunidade. Uma padaria fornece diariamente 240 pães com manteiga para o lanche dos pequenos atletas. Já os 32 litros de suco consumidos por dia pelo grupo são feitos pela esposa de Zé Gordo. Os coletes utilizados nas aulas são lavados pelo próprio treinador. E uma empresa da região ajudou a ampliar o campo, que hoje tem medidas oficiais.

A escolinha deu origem ao time de futebol amador Recanto da Pampulha, para onde vão os principais talentos revelados no dia a dia dos treinamentos. Um deles é o atacante Fernando Henrique, que está fazendo testes para tentar ingressar na equipe de juniores dos principais times de Minas Gerais. Mas o que o idealizador do projeto mais comemora é o número de jovens que ajudou a tirar da criminalidade. “Perdi a conta de quantos meninos a gente conseguiu recuperar. Essa é a idade mais vulnerável da vida. Não podemos deixar que eles fiquem ociosos e tenham tempo de mexer com coisa errada”, ressalta Zé Gordo.

Vulnerabilidade social determinou escolha

A região do Nacional, em Contagem, não recebeu o programa por acaso. É lá que vivem cerca de 15% das 35 mil famílias cadastradas no programa Bolsa Família no município, o que indica uma grande concentração de pessoas com renda inferior a três salários mínimos. O desemprego atinge 75% dos moradores em idade ativa e 67% da população local não concluiu o ensino médio. Segundo a Polícia Militar, foram registrados 819 crimes na região entre 2007 e 2009. Área de divisa com a capital Belo Horizonte, a região tem cerca de 26 mil habitantes das classes C e D e uma população de aproximadamente 7 mil pessoas na faixa etária entre 10 e 24 anos.

Os indicadores socioeconômicos e os dados sobre criminalidade levaram a uma previsão ainda mais preocupante. Segundo o Índice de Homicídios na Adolescência, medido pelo Unicef em agosto de 2009, 460 adolescentes seriam assassinados até o final de 2012. Em abril de 2010, traficantes locais impuseram um toque de recolher nos bairros Estrela Dalva, São Mateus e Tijuco e nas Vilas Confisco e Francisco Mariano – área hoje atendida pelo programa da ONU. Foram nove dias de paralisação de serviços essenciais em retaliação à morte de dois jovens da comunidade.

“Os altos índices de criminalidade eram resultado dos anos de abandono aos quais a região foi submetida. Quando há ausência do poder público, um fragmento da população toma conta e dita as ordens”, analisa a prefeita de Contagem, Marília Campos. Ela diz que, antes mesmo da implantação do programa Segurança com Cidadania, a administração municipal já havia diagnosticado a gravidade da situação e determinado que todas as secretarias desenvolvessem ações voltadas para reverter esse quadro. As iniciativas, porém, esbarravam no distanciamento da própria comunidade. “Era necessário estabelecer um canal de diálogo com os moradores, promover a reflexão sobre a relação da comunidade com o poder público e compartilhar as soluções. Era como se todo mundo quisesse a mesma coisa, mas não falasse a mesma língua”, ressalta Marília Campos.

Plano é pautado pela cooperação mútua

Para o início das atividades em Contagem, o Pnud desenvolveu um diagnóstico situacional e institucional da região atendida. O retrato revelou os principais problemas existentes e as capacidades locais para enfrentá-los. Um comitê criado paritariamente por representantes da comunidade, prefeitura, Polícia Militar e ONU se dividiu em grupos de trabalho para elaborar um plano integrado de ações com o objetivo de reduzir os índices de criminalidade.

Os grupos de trabalho já identificaram quais resultados pretendem alcançar. Entre estes estão a potencialização do exercício da cidadania e a cultura de paz; a revitalização dos parques e praças, aumentando a participação da comunidade na discussão sobre o uso e o espaço urbano; a promoção da integração entre as políticas municipais e o sistema de segurança pública; e o fortalecimento das políticas de assistência às vítimas, testemunhas e adolescentes ameaçados de morte. As ações também incluem o fortalecimento e a ampliação das atividades culturais, esportivas e de lazer para os jovens.

Segundo a consultora do Pnud em Contagem, Cíntia Yoshihara, grande parte do sucesso do programa está na credibilidade conquistada na comunidade. Por ser encabeçada por um comitê formado por representantes do poder público e da população, a iniciativa contribuiu para quebrar preconceitos e unificou os esforços em prol do bem comum. Para ela, o fato de ser apartidário também contribui para a boa receptividade do programa por parte da população. “Existe uma questão maior, que são as pessoas e a coletividade. A chancela da ONU traz essa credibilidade porque não faz uso político da gestão pública”, afirma.

Empoderamento social é nova arma da comunidade

O ourives Ilton dos Santos, conhecido como Café, é uma das principais lideranças comunitárias da Vila Francisco Mariano. Morador da região há 28 anos, ele acompanhou de perto o desenvolvimento do local e o crescimento das demandas por infraestrutura, educação e saúde. “Por muito tempo, nós só tínhamos uns aos outros. Os políticos só vinham aqui em época de campanha e só faziam alguma coisa em troca de votos. Nossa região era marcada pelo clientelismo”, lembra.

Aos poucos, os moradores foram se organizando em associações, mas características territoriais e inclinações políticas dificultavam o relacionamento entre as lideranças. Segundo Café, que também coordena as ações de educação integral no território contemplado, essa realidade só começou a se transformar com a chegada do programa Segurança com Cidadania. “A criação e fortalecimento do comitê local e o início das ações das agências da ONU começaram a mobilizar a comunidade. Mesmo sem saber do que se tratava, as pessoas passaram a se unir, iniciando a formação de uma grande rede”, explica Café.

Um dos resultados mais concretos da mobilização em favor da coletividade pode ser conferido na Vila Nossa Senhora Aparecida, região conhecida como Sapolândia. Em dezembro de 2011, um mutirão comunitário transformou em jardim a área ao lado do córrego Muniz, que frequentemente transbordava nos períodos chuvosos. No entorno do campo de recreação foi criado um parquinho, com brinquedos construídos pelos próprios moradores.

Café, líder comunitário, mobilizando a população | Max Vianini

Todos os materiais foram doados pela comunidade, que compartilhou as experiências e colocou a mão na massa. “Da limpeza do córrego à construção dos mobiliários e do novo espaço público, cada um colaborou como pôde”, explica o líder comunitário. A prefeitura também participou do projeto, construindo uma barragem de contenção do córrego na área onde costumam ocorrer os alagamentos.

Para a consultora Cíntia Yoshihara, o fortalecimento das lideranças locais e a promoção da articulação entre elas são os principais ganhos proporcionados pela iniciativa. “O programa ajuda a mostrar para as pessoas de que forma a participação política deve acontecer. A população entende que existem outros caminhos para alcançar o desenvolvimento local sem ter de depender de favores políticos”, aponta.

Triste lembrança de um passado recente

O assassinato de dois jovens, em abril de 2010, levou ao mais longo toque de recolher verificado na região do Nacional, em Contagem. Traficantes locais determinaram o fechamento imediato de comércios, escolas e centros de saúde. Um ônibus incendiado indicava a disposição dos criminosos em retaliar quem desobedecesse o luto forçado. A onda de violência começou pelos bairros Estrela Dalva e São Mateus e rapidamente se alastrou pelo Tijuco e pelas vilas Confisco e Francisco Mariano. Durante nove dias, cerca de 60 mil pessoas foram diretamente afetadas pela suspensão da oferta de serviços essenciais, como transporte, saúde e educação.

O caso desafiou o poder público, que por várias vezes se reuniu para traçar estratégias urgentes que devolvessem o clima de tranquilidade à região. Uma operação conjunta das Polícias Militar e Civil chegou a colocar 240 homens nas ruas e becos à procura dos mandantes do toque de recolher. Mas nem a prisão de treze pessoas supostamente envolvidas com o crime organizado convenceu os comerciantes e a população a retomar a rotina. Apesar dos esforços da polícia, a vida só voltou ao normal após a suspensão do toque de recolher feita pelos mesmos traficantes, nove dias depois.

Segundo um dos policiais que atuaram no combate às ações criminosas, tenente Davidson Tavares, o episódio levou o comando da Polícia Militar a estabelecer uma nova diretriz de atuação no Nacional. “Passamos a nos encontrar frequentemente com os comerciantes para discutir os principais problemas da comunidade e trocar ideias que ajudassem a construir a paz na região.” De acordo com o militar, que também integra o comitê local do programa Segurança com Cidadania, a mesma aproximação foi feita com as oito associações comunitárias da região, contribuindo para quebrar barreiras entre a polícia e os moradores.

“Com isso, os índices de criminalidade caíram consideravelmente e chegamos a passar até três meses sem registrar nenhum homicídio. Precisamos consolidar cada vez mais essa integração, porque o programa da ONU um dia vai terminar, mas os postos de saúde, as escolas, os comerciantes, os moradores e a polícia vão permanecer. Todos precisam de uma convivência pacífica e cidadã”, ressalta.

Katharina Lacerda é jornalista