Nacional

O Brasil precisa aproveitar as novas riquezas e com o pré-sal é possível garantir expansão econômica que aumente a renda e reduza a imensa desigualdade

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

Ilustração das camadas do pré-sal

Ilustração das camadas do pré-sal. Agência Petrobras

A história do pré-sal começa em um momento singular diante da experiência mundial, por dois motivos. Primeiro, é difícil encontrar outros exemplos de países que tenham ingressado no seleto clube de grandes produtores/exportadores e combinem tantas condições adicionais favoráveis: renda média, parque industrial relativamente diversificado, uma empresa do porte e da competência tecnológica da Petrobras. E, ao mesmo tempo, tenham uma democracia consolidada, com instituições que, embora estejam longe da eficiência e da excelência, podem ser consideradas estáveis e têm uma trajetória que aponta melhorias. Mas o Brasil é, sobretudo, um país em desenvolvimento, com grandes deficiências. Ou seja, um país que tem, de um lado, uma base para aproveitar as novas riquezas e, de outro, precisa delas para dar um salto de qualidade.

Segundo, a questão da energia está para sempre intrinsecamente vinculada à questão ambiental. Nas próximas décadas, o mundo vai enfrentar o desafio das emissões de gases de efeito estufa, o que exige uma transição rumo a uma economia de baixa intensidade de carbono. A tendência será, portanto, diminuir de forma gradual, mas consistente, o uso de petróleo. Sem dúvida a relevância do petróleo está diminuindo pela viabilidade de outras alternativas, até mais desejadas do ponto de vista da sustentabilidade. Pode então surgir a ideia de que o Brasil, ao optar pela exploração do pré-sal, estaria indo na contramão da história. Contudo, essa fase de transição dificilmente acontecerá em um horizonte que torne a exploração do pré-sal inviável, considerando o esgotamento de parte relevante dos poços existentes, de um lado, e o crescimento da demanda, em particular da China, mas também da Índia, de outro. As mudanças na matriz global de energia ocorrerão enquanto o petróleo, o carvão e o gás forem ainda as mais importantes fontes energéticas da economia mundial.

Em sua primeira mensagem ao Congresso Nacional, em 2011 a presidenta Dilma Rousseff resgatou a metáfora utilizada por seu antecessor – “o pré-sal, nosso passaporte para o futuro” –, enfatizando que acima de tudo sua descoberta “é em si mesma fruto do avanço tecnológico brasileiro e de uma moderna política de investimentos em pesquisa e inovação”. Afirmou que “a oportunidade que pela primeira vez se coloca para o Brasil de se tornar uma nação desenvolvida não pode ser desperdiçada”, mas reconheceu que isso depende da articulação “com políticas para o avanço científico e social e acompanhado por medidas de cuidado ambiental”.
Não há ainda um levantamento a respeito da quantidade de petróleo e gás que o pré-sal de fato representa, mas as estimativas variam entre 50 bilhões e 100 bilhões de barris. O Plano Decenal de Expansão de Energia 2020, implementado pelo Ministério das Minas e Energia (MME) em meados de 2011 e elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética, projetou um aumento da produção de petróleo, sem incluir o gás e a produção internacional, de 2,325 milhões de barris por dia em 2011 para 5,756 milhões em 2020, nas áreas já concedidas sob o regime de concessão e da cessão onerosa. O Brasil, até recentemente, um player pequeno e voltado para o mercado interno, pode chegar a ocupar na próxima década o quarto lugar, na hipótese de nenhum dos países produtores aumentar sua produção nesse período, ficando atrás somente de Rússia, Arábia Saudita e Estados Unidos. Em relação às reservas, dependendo do tamanho do pré-sal, ocuparia entre o quinto e o oitavo lugar, atrás apenas dos grandes e históricos players do Oriente Médio, da Rússia e da Venezuela, sendo que as reservas deste último são compostas, em larga escala, pelo chamado petróleo não convencional (óleo ultrapesado). Está previsto ainda um aumento expressivo do gás, que se refere principalmente ao gás associado, explorado junto com o petróleo.

Os expressivos cortes nas metas da Petrobras, anunciadas no final de junho de 2012 em seu Plano de Negócios 2012-2016, não questionam o potencial do pré-sal, mas ajustam a previsão do ritmo de exploração e produção à real capacidade do país, no que diz respeito a equipamentos e mão de obra exigidos.

Novo marco regulatório

O presidente Lula fez questão de deixar tudo regulamentado antes de passar a faixa presidencial, com exceção do único assunto que de fato suscita grande polêmica: a alteração nas regras de distribuição dos royalties e participações especiais entre os entes federativos. Na cerimônia da sanção da lei, que introduz o modelo de partilha para as novas áreas do pré-sal, ele enfatizou que o novo marco regulatório coloca três variáveis sob controle nacional: o ritmo da extração e do refino, a capacidade da indústria brasileira de atender à demanda de navios e equipamentos e a destinação da renda petrolífera. Chama atenção que essa discussão em torno do novo marco regulatório não tenha entrado na agenda dos debates da campanha eleitoral 2010, apesar de sua importância vital para o país.

O modelo de partilha não permite somente maior capacidade de arrecadação, ou seja, da captura pública da renda petrolífera. Aumenta sobretudo a capacidade de o Estado exercer seu controle sobre a exploração e o gerenciamento das reservas, não menos importante, sobretudo quando se trata da magnitude do negócio envolvido no pré-sal. Nesse ponto, a discussão se concentra em torno do ritmo da exploração, pois pode haver diferenças entre os interesses privado e público, tal como definido no âmbito da contribuição que o pré-sal deveria dar ao desenvolvimento do país. Com a partilha, haverá uma repartição entre a União e o contratado do excedente de óleo, que consiste na diferença entre o volume total de produção menos os custos de investimento realizados pelo contratante (o custo óleo) e os royalties. Assim, a União fica com parte do petróleo, o que significa poder de decisão a respeito de para quem e em que condições comercializar, considerando com isso questões estratégicas em médio e longo prazo.

Observa-se que a partilha se aplica, em princípio, somente às áreas novas do pré-sal ainda não adquiridas nas rodadas de licitação já realizadas, enquanto permanece a concessão nas áreas já licitadas e nas áreas a serem licitadas fora do pré-sal. Ou seja, o governo optou por não propor mudanças nas áreas já concedidas no pré-sal1. Do total mapeado, 32% já estão concedidos para a exploração – dos 28% das licitações realizadas, a Petrobras possui pouco mais de 60%, e 4% por meio da concessão onerosa. Entre as empresas participantes estão: BG, ExxonMobil, Hess, Galp, Petrogal, Repsol e Shell. A propriedade da União será restabelecida, portanto, somente nas áreas não licitadas. Todas as projeções de produção até 2020 não incluem ainda a exploração de petróleo sob a modalidade de partilha. Importante frisar também que o início da entrada de rendas significativas ocorrerá somente daqui a dez anos. Mas aí estaremos falando de fato de números que podem fazer a diferença. Tomando um preço de US$ 75 por barril e um custo de produção de US$ 15, com excedente de US$ 60, geraria uma renda de US$ 150 bilhões por ano, sempre em dólares atuais.

Embora o governo tivesse rejeitado a ideia de que o pré-sal justificaria uma reestatização completa da Petrobras, houve, sim, no âmbito da busca do novo marco regulatório, um esforço para ampliar o controle estatal. O aumento da participação estatal na Petrobras, em particular, não foi colocado explicitamente como objetivo no processo de megacapitalização realizada em 2010. Mas, de fato, ocorreu. Ao comprar o equivalente a 66,5% das ações vendidas, sua participação saltou de 39,8% para 48,3%, enquanto a parcela detida pelos estrangeiros recuou de 37,4% para 31,8%. Mesmo assim, mais de 50% das ações, e portanto dos dividendos sobre os lucros do pré-sal, vão para o setor privado. A mudança do modelo de concessão para o de partilha representou um reposicionamento da Petrobras no mercado, que pode ser classificado como uma moderada reestatização do setor, pelo menos no que diz respeito às áreas ainda não licitadas do pré-sal. E isso é um dos motivos do mal-estar no mercado, que, focando na rentabilidade de curto prazo, jogou o valor das ações para baixo.

Conteúdo local

A literatura aponta como uma das características da produção e exploração de recursos naturais o baixo potencial de conexões e de externalidades para outros setores, longe de setores inovadores e de alto valor agregado. É, portanto, identificada com baixa tecnologia e poucas recompensas para a acumulação de capital humano. O pré-sal, porém, um empreendimento de grande volume que opera na fronteira tecnológica da indústria de petróleo, não se encaixa nessa avaliação desde que se criem as condições econômicas e institucionais que reconheçam sua importância estratégica para o conjunto da economia brasileira.

Os investimentos em petróleo e gás já têm o potencial de gerar uma demanda doméstica em torno de R$ 400 bilhões até 2015, envolvendo setores de máquinas e equipamentos, construção naval, mas também comércio e serviços. Diante desses números, entende-se por que o governo considera os investimentos da Petrobras, que responde por 80% do total, parte importante da política industrial para o Brasil.

No upstream, na fase de exploração e produção, existe um poder de compra enorme que pode implicar importações ou criação da capacidade produtiva nacional. Nessa escolha, é essencial a adoção de políticas públicas seletivas para aproveitar as oportunidades e garantir que o crescimento esperado qualifique a base produtiva. Estão em jogo não somente as compras do equipamento como as próprias plataformas e navios, mas também os serviços especializados necessários ao longo das décadas de exploração – por exemplo, na área de logística e manutenção.

Os contratos de concessão para a exploração, o desenvolvimento e a produção de petróleo e gás natural, firmados pela ANP com as empresas vencedoras nas rodadas de licitações, incluíam desde o início do modelo de concessão uma cláusula de conteúdo local que incide sobre as fases de exploração e desenvolvimento da produção. Até a quinta, os percentuais de conteúdo local eram oferecidos pelas empresas e considerados na pontuação para ganhar a licitação. A partir da quinta, realizada em agosto de 2003, já no governo Lula, entrou a exigência de um percentual mínimo2. Em 2005, o governo aperfeiçoou a forma de medição do conteúdo local, exigindo certificação emitida por uma empresa independente credenciada pela agência reguladora. Com isso, a média do percentual de conteúdo local aumentou, de acordo com os números da própria ANP, de 33,5% na exploração e 42,25% no desenvolvimento nas primeiras quatro rodadas para 79,6% e 85,3%, respectivamente, nas três rodadas seguintes.

O conceito de conteúdo local implica preferência à contratação de fornecedores brasileiros, mas somente em caso da existência de similares e quando suas ofertas apresentarem condições de preço, prazo e qualidade equivalentes às de outros fornecedores convidados a apresentar propostas3.

De outro lado, o governo entendeu a necessidade de preparar a indústria para que possa cumprir os elevados números de conteúdo local sem prejuízo em preço e qualidade e instalou, já em 2003, o Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural (Prominp), coordenado pelo MME. O objetivo é maximizar a participação da indústria nacional de bens e serviços, em bases competitivas e sustentáveis, na implantação de projetos de petróleo e gás natural no Brasil e no exterior.

O pré-sal aumentou essa preocupação e fez a Petrobras criar, em meados de 2011, o Programa Progredir, articulando a petrolífera com os principais bancos4, para ampliar o acesso a crédito em condições mais favoráveis e facilitar a implantação e o crescimento sustentável de sua cadeia de fornecedores. A vantagem do programa é que os financiamentos podem ser lastreados em recebíveis não performados dos contratos com a Petrobras, ou seja, os contratos da Petrobras entraram como garantia tanto para os fornecedores quanto para os subfornecedores. Além disso, há a expectativa de uma transparência que estimule a concorrência entre os bancos envolvidos e, com isso, possa reduzir o custo de financiamento5.

Ao final de 2011 também o BNDES intensificou seu esforço. No âmbito das diretrizes do Plano Brasil Maior, abriu uma linha de financiamento específico – o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia de Fornecedores de Bens e Serviços Ligados ao Setor de Petróleo e Gás Natural6 – destinada a fornecedores da indústria de petróleo e gás para ampliar a capacidade produtiva e, assim, o conteúdo local.

A oportunidade de alavancar um conjunto de setores industriais e de serviços relacionados com uma defesa firme do conteúdo local deve ser analisada, sobretudo, no contexto do tamanho do mercado e da duração da exploração e produção. É isso que permite trabalhar com a possibilidade de gerar uma massa crítica que, superada a curva de aprendizagem inicial, possa apresentar estrutura de custo e qualidade tecnológica não somente para atender à demanda interna, mas competir internacionalmente. A definição de políticas adequadas enfrentará o trade-off entre optar pelo fornecimento mais rápido a preços menores, de um lado, e de outro gerar capacidade própria, o que exige tempo e terá, pelo menos inicialmente, um custo maior. Os atrasos na entrega dos navios, por exemplo, muitas vezes divulgados para criticar a política de conteúdo local, mostram na realidade a situação geral da indústria naval, que contava com 1.900 trabalhadores diretos em 2000 e pulou para 80 mil em 2010, de acordo com dados do Sinaval. Entra, portanto, a defesa do infant industry7 para justificar arranjos legais que geram as condições para que esses setores possam nascer ou renascer com custo inicial, mas ganhos em médio e longo prazo para o desenvolvimento do país. O desafio é aproveitar a fase exuberante das encomendas do setor de petróleo e gás para criar uma capacidade industrial com estrutura de custo e tecnologia capaz de competir no mercado mundial.

Tecnologia

O conceito de conteúdo local se torna ainda mais importante quando falamos da capacidade tecnológica. No geral, a discussão sobre o fortalecimento da base tecnológica no Brasil tende a subestimar uma particularidade essencial: a governança das principais cadeias/redes produtivas está nas mãos de multinacionais. E as decisões sobre investir ou não, como e quanto são, nesses casos, tomadas a partir de estratégias globais. Cabe ao país receptor, no âmbito de sua estratégia de pesquisa e desenvolvimento (P&D), pactuar com essas empresas no sentido de incentivá-las a considerar o país como locus estratégico dentro de sua rede global de P&D. O pré-sal abre essa porta no caso da indústria de petróleo e gás e, considerando tratar-se de fronteira tecnológica, há potencial de aproveitamento em outros setores e cadeias, por exemplo, em novos materiais, robótica e uso da nanotecnologia.

Tecnologia da Petrobras na retirada do primeiro óleo do pré-sal. Agência Petrobras

A regulação para a exploração de petróleo determina que as companhias invistam 1% de seu faturamento anual em P&D, dos quais metade por meio de parcerias com universidades. Somente no caso da Petrobras a expansão da produção já resultou em um aumento significativo dos investimentos envolvidos, de R$ 100 milhões em 2004 para R$ 500 milhões em 2008, e um total de R$ 1,8 bilhão no período de 2006 a 2009.

A perspectiva do pré-sal e as exigências de conteúdo local provocaram um movimento inédito por parte das empresas globais líderes em serviços de alta tecnologia para o setor petrolífero para instalar capacidade de P&D no Rio de Janeiro, como General Electric (GE), Schlumberger, IBM, FMC Technologies, Baker Hughes, Halliburton, Tenaris Confab, Siemens (Chemtech), entre outras8. O governo do Rio de Janeiro estimula esse movimento com benefícios fiscais, basicamente a isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) para compra de insumos e equipamentos. Mas foi o próprio pré-sal que colocou o Brasil entre as prioridades dessas companhias. Sem dúvida a atuação do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Leopoldo Américo Miguez de Mello (Cenpes), da Petrobras, na Ilha do Fundão, e a ampliação de suas instalações, concluídas em 2010, são fatores cruciais de atração. O Cenpes ocupará mais 300 mil metros quadrados, tornando-se um dos maiores centros de pesquisa aplicada do mundo. A seu lado, na própria Ilha do Fundão, há o parque tecnológico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Está-se criando, portanto, um polo de inovação tecnológica que coloca a cidade do Rio de Janeiro, junto com Houston, como um dos centros principais da tecnologia de ponta da indústria de petróleo e gás.

De outro lado, há o risco de aprofundar o processo de desindustrialização precoce, relativo e absoluto. Sem uma política macroeconômica atenta e contundente, a sobrevalorização da moeda local provocada pelos vários movimentos de entrada de dólares ligados à exploração do pré-sal, tanto diretamente, pelas exportações, quanto indiretamente, pela facilidade de captação de recursos externos por parte dos agentes privados, diminui a competitividade de todos os demais setores de tradables.

Contudo, o país, por meio de suas instituições, da presença da Petrobras e consciente dos riscos, pode usar o pré-sal para garantir uma expansão econômica que coloque em bases sólidas o aumento da renda e operar a redução real da imensa desigualdade. As alterações no marco regulatório permitem um direcionamento nesse sentido, subordinando o ritmo da exploração às estratégias de política industrial e à capacidade de absorção da economia em termos fiscais e monetários.

Entre os riscos e as oportunidades surge a necessidade de maior participação da sociedade em torno das escolhas a serem tomadas e fiscalização de seu cumprimento em prol do desenvolvimento sustentável e sustentado do Brasil, evitando assim que se descubra tarde demais que o “passaporte para o futuro” tenha sua validade expirada precocemente.

Giorgio Romano Schutte é coordenador do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC