Sociedade

O trabalho de base é fundamental para estimular o protagonismo político e conquistar aqueles que são de direita ou não têm opinião formada

Os partidos políticos estão muito desacreditados e estigmatizados na sociedade. O meio juvenil assimila em maior ou menor medida essa compreensão. Os de esquerda, algumas vezes, aparecem associados à ideia de que são movimentos extremistas e pouco democráticos. Nessa aversão há muito de desinformação e exagero

Transformação social passa pelo protagonismo das juventudes organizadas

Transformação social passa pelo protagonismo das juventudes organizadas. Foto: Valter Campanato/ABr

Muito já se escreveu sobre trabalho de base. Nosso objetivo aqui não é resgatar nem mesmo sistematizar esse acúmulo. O intuito é mostrar, em termos de tarefas concretas, as reflexões que apresentei no artigo “Juventude e socialismo: questões fundamentais”, publicado em agosto de 2012, no Portal da Fundação Perseu Abramo. De modo mais específico, pretendo retomar alguns dos propósitos básicos do trabalho de base, refletir sobre sua aplicação no meio juvenil e discorrer sobre alguns desvios da prática militante que precisam ser evitados.

O primeiro passo para avançarmos no debate sobre as possibilidades do trabalho de base com a juventude consiste em entender a importância e a necessidade desse esforço. Independentemente da orientação política que se possa assumir em termos de estratégia de superação do capitalismo, uma coisa é certa: nada acontecerá sem uma correlação de forças mais favorável à revolução.

Na prática, isso quer dizer que, num primeiro momento, não importa se o Estado tem de ser enfrentado e derrubado, se pode ser de alguma maneira transformado por dentro ou se as reformas desempenham papel preponderante na revolução. Um fator, entre outros, é imprescindível: vamos precisar de gente suficiente do nosso lado para resistir e avançar no rumo das transformações sociais profundas.

A ideia do trabalho de base chama atenção para essas tarefas essenciais, que são estimular o protagonismo político e conquistar aqueles que são de direita ou não têm opinião formada, convencendo-os a contribuir de modo protagonista – ainda que  esporadicamente – para a construção de uma nova sociedade, na qual a satisfação das necessidades da maioria seja o critério elementar de distribuição de riqueza e poder – em outras palavras, uma sociedade socialista.

A quem se dirige o trabalho de base

O segundo aspecto sobre o qual devemos nos deter em relação ao trabalho de base é seu exato significado. A ideia de fazer trabalho de base pode parecer simples, mas existem maneiras distintas de entender seu conteúdo. Tais diferenças giram, basicamente, em torno da noção do termo “base”.

Para muitos, “base” designa a base da pirâmide social das formações capitalistas, e portanto entendem trabalho de base como articulação política que se empreende naquele amplo segmento da sociedade que ganha a vida com o suor do próprio rosto. Para outros, designa genericamente aqueles setores politicamente não organizados da sociedade, contrapostos de alguma forma às noções de militantes ou dirigentes. Esta é a acepção que empregaremos neste artigo.

Nesse sentido, as condições efetivas para o exercício da experiência de ser jovem, ou pelo menos as expectativas de alcançar essa possibilidade, incluem setores tanto materialmente privilegiados quanto oprimidos na sociedade que podem e devem ser organizados enquanto jovens por outros setores que – jovens ou não – acreditam na possibilidade e na necessidade da transformação social.
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Tarefas do trabalho de base no meio juvenil

Definir os objetivos a partir de um processo contínuo de formação política de si mesmo. Na execução do trabalho, uma primeira questão a ter em mente é que tal esforço, por meio do qual pretendemos estimular o protagonismo político de amplos setores da sociedade – da juventude, inclusive –, consiste em uma característica central da sociedade radicalmente democrática que queremos construir. Isso significa que, ao realizar o trabalho de base, realizamos também parte de nossos objetivos maiores.

Mas não podemos perder de vista que nosso objetivo maior não se reduz a estimular o debate e a participação. Nosso objetivo maior, para o qual o trabalho de base é também um meio, coincide com o esforço para transformar a sociedade que temos e fazer vingar uma nova maneira de organização da vida coletiva, na qual a satisfação de nossas necessidades e o desenvolvimento das potencialidades humanas sejam o critério de distribuição de riqueza e poder. A questão é que pensar nessa outra sociedade e no modo como chegaremos a ela implica avançar em um debate controverso, que é de programa e estratégia.

É importante que o militante que realiza o trabalho de base procure se informar continuamente sobre essas discussões controversas, definindo para si um norte. Pois de nada adianta caminhar se não souber, mais ou menos, para onde vai. Ao mesmo tempo, não se deve pensar que essa compreensão política mais aprofundada evolui de modo linear ou virá somente do estudo ou do trabalho prático. A formação política é um processo de idas e vindas no qual a teoria sistematiza e responde a elementos postos no nível da prática. Prática e estudo devem, portanto, caminhar juntos.

Planejar a implantação do trabalho, aplicando os recursos de forma produtiva. Outra questão a considerar no trabalho de base com jovens é avaliar os espaços onde pode render mais frutos. Nossas forças são poucas ainda, então vamos aplicá-las de forma planejada e produtiva, identificando os segmentos juvenis em que o tempo e o esforço despendidos podem gerar mais movimento real e maior impacto na sociedade. Para isso, precisamos avaliar o modo como os elementos econômicos, sociais e culturais da experiência juvenil se traduzem em estímulo ou obstáculo ao engajamento.

A possibilidade de alguma autonomia financeira e advinda de uma atividade profissional realizada em tempo parcial – permitindo algum tempo livre – são condições que potencializam expectativas de realização pessoal, oferecendo condições objetivas favoráveis ao engajamento. Nesse contexto, por exemplo, o trabalho de base tem maiores chances de se consolidar. Ao contrário, a falta de tempo por conta de longas e desgastantes jornadas de trabalho ou a ausência de autonomia financeira são condições objetivas que desfavorecem o engajamento. Por outro lado, geram frustrações que podem ser canalizadas para modalidades menos regulares de engajamento, e o trabalho de base pode dar consequência a isso.

A possibilidade de participação em grupos juvenis proporcionada pelo tempo livre é outra condição que favorece o trabalho de base. No encontro com pares, o jovem reelabora suas experiências e frustrações, consolida-as em práticas e valores compartilhados que podem assumir um caráter progressista. Por outro lado, certos valores atrasados, reproduzidos inclusive no meio familiar (machismo, racismo, homofobia e dogmatismo religioso, por exemplo), podem dificultar essa participação. Mas também isso gera frustrações que podem e devem ser canalizadas politicamente em modalidades menos regulares de engajamento.

Potencializar as “tribos” juvenis, condição primeira ao engajamento. Outro aspecto a considerar na realização do trabalho de base no meio juvenil é a tendência do jovem a estabelecer grupos de pares, bem como a importância dessa aglutinação para a conformação de movimentos juvenis e para o processo de politização.

A juventude é um segmento que tenta encontrar e assumir um papel próprio na sociedade, já que esse papel não lhe é reservado, o que gera insegurança e ansiedade. Isso provoca uma tendência à aglutinação na qual os jovens se agrupam em torno de afinidades. Formam o que chamamos de “tribos” juvenis, buscando a legitimação social dos valores e práticas que estão experimentando e vivenciando um processo de amadurecimento da própria personalidade numa relação que é, também, de demarcação com o diferente.

Tal tendência à aglutinação e à afirmação distintiva, típica da sociabilidade juvenil na modernidade e base dos movimentos de juventude, pode e deve ser aproveitada como impulso inicial em trabalhos políticos organizados. Na prática, isso implica considerar aqueles elementos inicialmente agregadores – de caráter estético, emocional, comportamental etc. – como catalisadores de interesses e práticas que não são politizados desde um primeiro momento, mas podem e devem servir de estágio inicial de politização, em um processo em que o diálogo e a prática ocupam papel central.
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Politizar as “tribos” juvenis a partir de uma atitude “dialógica” e prática. Não se pode esperar que os jovens, uma vez organizados em grupos, se politizem por conta própria. A politização é um processo de alargamento da compreensão do mundo que ocorre em determinadas condições. Entre essas, duas se destacam: a existência de expectativas e frustrações em relação à vida e um espaço no qual elas possam ser reelaboradas (entram aqui a importância da “tribo”, do diálogo e da ampliação do universo de experiências pessoais).

As tarefas do trabalho de base frente a isso são entender as frustrações e expectativas dos jovens, traduzindo-as em valores e práticas progressistas, e perceber os valores e práticas progressistas já existentes, reforçando-os e imprimindo-lhes consequência política. Nesse caso, evite leituras num primeiro momento. Prefira o debate e o estímulo a situações concretas que suscitam reflexões. Ambas as tarefas indicadas impõem o desafio de entender que o jovem, não dispondo ainda das ferramentas para expressar-se racional ou teoricamente, manifesta seus valores, expectativas e frustrações de maneira que um militante “bitolado” pode acabar não compreendendo.

Vejamos alguns exemplos. Uma jovem pode se identificar com uma personagem de novela que foi vítima de machismo. Esse reconhecimento pode legitimar uma indignação represada por vergonha antes mesmo que a jovem possa conceituar teoricamente aquele ato odioso como “machismo”. Nesse caso, uma visão progressista do mundo se manifestou por meio de produtos da indústria cultural, que é a ferramenta de que a jovem dispõe para despertar e expressar suas aflições. Outro exemplo: o estudante que entra na faculdade, ao frustrar-se com a formação, reivindicará uma reforma do currículo por motivos que são, primeiro, de melhor inserção no mercado de trabalho. Uma reflexão mais abrangente só aparecerá com o aprofundamento do debate e da participação.

A politização é um processo que começa, necessariamente, em bases e linguagens despolitizadas –por meio, por exemplo, da apropriação de elementos da indústria cultural ou da expectativa frustrada de ingresso no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, mostra que essas manifestações expressam um certo nível de entendimento do mundo, uma experiência e uma linguagem que o militante precisa dominar se quiser entender e organizar politicamente a juventude, além de se fazer entender por ela também.

Os limites do trabalho de base

A autonomia impossível dos movimentos de juventude. Frente a tudo o que foi colocado até aqui, uma primeira dificuldade se impõe: os jovens dispõem das condições materiais e subjetivas necessárias à compreensão da sua situação social? E mais: dispõem eles de condições, mesmo com o apoio do trabalho de base, para planejar e executar ações coordenadas em larga escala? A resposta a essas questões é não.

As razões são várias, a começar pelo fato de a condição juvenil corresponder a um momento de amadurecimento que é também de ordem psicológica. Isso dificulta muito a projeção e a compreensão de si mesmo num contexto social mais amplo. Além disso, o jovem encontra-se submetido a pressões de diversas ordens (na família, no trabalho ou na escola), o que não lhe permite concentrar-se no esforço por compreender o mundo, e se compreender nele também. Por fim, vale lembrar que a condição juvenil é transitória. Essa transitoriedade está diretamente relacionada com seu potencial político, mas é também uma de suas maiores limitações: os jovens não dispõem do tempo de experiência necessário para compreender-se no contexto em que se inserem.

Por conta disso, os movimentos juvenis são particularmente suscetíveis à manipulação e à tutelagem de agentes externos, sobretudo dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural. O que nos impõe um duplo desafio: habilidade para empregar instrumentos como a mídia e a indústria cultural para precipitar movimentos coletivos de caráter progressista e o reconhecimento do papel indispensável que instrumentos externos aos movimentos juvenis, como os partidos políticos, desempenham em sua viabilização como movimentos transformadores.
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A estigmatização dos partidos políticos na sociedade. Os partidos políticos são ferramentas muito desacreditadas e estigmatizadas na sociedade. O meio juvenil, como é de esperar, assimila em maior ou menor medida essa compreensão. Os partidos políticos são geralmente associados àquilo que a política tem de pior (troca de favores, personalismo, carreirismo etc.). Tais impressões negativas, algumas vezes, aparecem associadas ainda à ideia de que os partidos – nesse caso, os de esquerda – são movimentos extremistas e pouco democráticos, afeitos à manipulação de uma “massa de manobra” desinformada de seus reais e ocultos interesses.

Nessa aversão há um tanto de verdade e – no caso dos partidos de esquerda – muito de desinformação e exagero (em parte, difundidos pela grande mídia). Essa situação torna premente a tarefa de resgatar a definição e o papel dos partidos: nada mais são que um programa globalmente articulado de sociedade, materializado numa máquina organizativa – o que significa que são mais do que uma organização que começa com “p” e participa de eleições. O problema é que o que temos hoje, muitas vezes, são máquinas sem programa, ou programas que não são projetos de sociedade, e sim objetivos pequenos que visam somente à reprodução da própria máquina (algumas vezes disfarçados em roupagens revolucionárias).

Nosso problema, desse ponto de vista, não são os partidos. Mas a falta de um ponto de vista e de uma prática genuinamente partidários. Tais elementos são absolutamente indispensáveis para sustentar um trabalho de base que possa projetar estrategicamente, no rumo de transformações profundas, a energia dos movimentos juvenis (incluindo-se a articulação destes com outros movimentos sociais, bem como a ligação de suas lutas específicas com as lutas gerais), já que essa é uma tarefa que não têm condições de desempenhar autonomamente.

Os desvios da prática militante. A militância organizada é muito importante. Mas é bom estar alerta para uma série de desvios em que podemos frequentemente incorrer. O primeiro deles é o isolamento social. Quem milita em grupos organizados tende a restringir suas relações a esse círculo limitado de contatos já politizados. Isso impede o militante de estar em contato com um contingente maior de jovens e de compreender suas expectativas e frustrações, provocando assim um descolamento do discurso político em relação à experiência das pessoas, que acabam se afastando.

Outro desvio nos remete à relação entre base e liderança. Só se torna liderança quem admite a própria limitação, criando as condições para crescer politicamente. Quem se julga liderança formada, não evolui. E ofusca o protagonismo de todo um grupo, sentido-se ameaçado pelo crescimento dos outros. Mas a atitude oposta a essa consiste num outro erro que devemos igualmente evitar: o democratismo. Repartir o poder e delegar responsabilidades é importante, pois amplia o universo de experiência das pessoas e suscita reflexões. Mas, numa sociedade desigual como a nossa, não podemos antecipar completamente as formas de organização radicalmente democráticas que queremos construir no futuro.

A liderança, devendo existir, é um ponto de apoio e de referência para aqueles que desejam se engajar e se informar mais, mas não dispõem de condições para isso em função das desigualdades que queremos combater ou não estão se propondo a fazer da militância uma atividade central em sua vida. O papel da liderança é atender a essas necessidades e limitações, promovendo o protagonismo e repartindo responsabilidades sempre que as condições para isso estiverem dadas.

Carlos Henrique M. Menegozzo é sociólogo, bibliotecário, especialista em arquivologia. Dedica-se à história da esquerda e dos movimentos estudantis no Brasil nos anos 1970 e 1980. Trabalha no Centro Sérgio Buarque de Holanda/Fundação Perseu Abramo. Foi militante estudantil de 1999 a 2003

Saiba mais
ABRAMO, Helena W. Cenas Juvenis: Punks e Darks no Espetáculo Urbano. São Paulo: Scritta, 1996.

BOFF, Clodovis. Como Trabalhar com o Povo: Metodologia do Trabalho Popular. Petrópolis: Vozes, 1986.

COUTINHO, Carlos Nelson. “O partido como ‘intelectual coletivo’”. In: ______. Gramsci: um Estudo sobre Seu Pensamento Político. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 165-180.

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PAPA, Fernanda; JORGE, Flávio; MORAES, Rafael (Orgs.). Juventude em Formação: Textos de uma Experiência Petista. Fundação Friedrich Ebert, 2008.

PELOSO, Ranulfo (Org.). Trabalho de Base: Seleção de Roteiros Organizados pelo Cepis. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2012.