Internacional

Uma ação que visava bloquear o inédito processo de integração regional em curso, além de estabelecer limites às ações de governos progressistas na região

O golpe de Estado consumado em junho de 2012 no Paraguai tem uma dimensão internacional que foi pouco analisada. Essa ação visava bloquear o inédito processo de integração regional em curso, sobretudo por meio do Mercosul e da Unasul. Além disso, havia o intuito de estabelecer limites sobre as experiências de governos progressistas da região

Golpe no Paraguai bloqueia o processo de integração regional em curso

Golpe no Paraguai bloqueia o processo de integração regional em curso. Foto: Jorge Adorno/Reuters

Com a chegada de Fernando Lugo à Presidência da República, em 15 de agosto de 2008, os setores conservadores paraguaios mudaram sua orientação sobre a política regional. Lugo, um ex-bispo progressista, sucedeu Nicanor Duarte Frutos (2003-2008), eleito pela Associação Nacional Republicana (ANR-Partido Colorado). Vale mencionar que o Colorado é um dos dois partidos conservadores tradicionais do país. Fundado em 1887, como o Liberal, foi pilar de sustentação civil da maior e mais sinistra ditadura de direita no Paraguai, do general Alfredo Stroessner (1954-1989).

Com base nessa plataforma, Duarte Frutos buscava claramente alinhar seu governo com o rumo progressista verificado na região. Assim, por exemplo, em novembro de 2005, quando a Cúpula das Américas em Mar del Plata discutiu o acordo para a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), o governo colorado não teve problemas em juntar-se ao pessoal do Mercosul e da Venezuela para sepultar o projeto norte-americano de integração hemisférica, confrontando diretamente George Bush. Em contraste com essa atitude, a política internacional tradicional de seu partido foi o alinhamento com os Estados Unidos desde os tempos do auge da guerra fria. A guerra civil de 1947 que instalou os colorados no poder por mais de seis décadas é tratada na mitologia partidária como uma vitória contra o comunismo internacional, embora fosse de fato uma confrontação de colorados contra liberais e “febreristas"1.

Igualmente, quando foi preciso decidir sobre a inclusão da Venezuela no Mercosul, um passo transcendental para ampliar o alcance econômico, energético e geopolítico do projeto integrador, o governo de Duarte Frutos deu seu voto necessário para a “unanimidade” na aceitação do novo sócio. Aquele país solicitou seu ingresso em 2005 e o pedido foi aceito por todos os países do Mercosul (incluindo o Paraguai), com a Decisão 29/05 e a assinatura do Protocolo de Adesão.

Indo ainda mais longe e tratando de mostrar sua sintonia com os rumos progressistas do contexto regional, o presidente Duarte Frutos se deixou fotografar com uma boina “bolivarianista” e, em abril de 2007, e definiu, durante uma convenção do partido, o programa como “socialismo humanista”.

No entanto, com a crise do governo Duarte Frutos e a eleição de Fernando Lugo à Presidência após mais de seis décadas de domínio colorado, houve mudanças importantes na orientação da política internacional da ANR. Os colorados convergiram com outros setores conservadores tradicionais (como o segmento do liberalismo de Federico Franco, então vice-presidente de Lugo) e novos (como o Partido Pátria Querida, que propunha uma direita “moderna”), todos demonstrando grande inquietação com o avanço progressista na América do Sul que, com Lugo, passa a ter um real interlocutor interno.

Os setores conservadores fizeram um grande escândalo em cima de convênios de cooperação Paraguai-Venezuela assinados quando o presidente Chávez estava no Paraguai para a posse de Fernando Lugo, em 15 de agosto de 2008. Um acordo petrolífero firmado por Duarte Frutos para aproveitar melhores condições de fornecimento de combustíveis para o país (preços mais baixos, financiamento a longo prazo e taxa baixa de juros) não pôde ser implementado sob o governo Lugo devido à férrea oposição de todos os setores citados anteriormente. O que significou um grande prejuízo econômico para o país e para a estatal de petróleo paraguaia.

Desde o começo do governo Lugo os setores conservadores se empenharam em criar um ambiente político típico da guerra fria, substituindo a “ameaça do comunismo”  pela “ameaça do bolivarianismo” e a ameaça de uma guerra (quente!) com a Bolívia governada por Evo Morales, que seria o representante mais próximo do chavismo e acusado de estar em uma corrida armamentista. Para entender como se deu tal manipulação, é preciso considerar a sangrenta Guerra do Chaco (1932-1935), entre Paraguai e Bolívia pelo domínio desse território, ainda hoje muito presente na memória nacional.

A ratificação da adesão da Venezuela ao Mercosul, aceita primeiro pelos Parlamentos argentino e uruguaio e depois pelo brasileiro, virou tabu no Congresso do Paraguai. O governo Lugo retirou o pedido de acordo para evitar o rechaço iminente. Para justificar a negativa diante dos três sócios, os setores conservadores passaram a definir os três governos (que não podem ser tachados de “bolivarianos”) de cúmplices de Chávez.

Posteriormente, quando o Mercosul e a Unasul aplicaram sanções ao governo surgido do golpe de Estado, os setores conservadores paraguaios desencadearam uma campanha pública buscando definir a existência de uma “Nova Tríplice Aliança”, tratando de manipular a memória nacional sobre a Guerra da Tríplice Aliança, conhecida no Brasil como Guerra do Paraguai (1864-1870). Nesse rumo, lançaram a campanha “Paraguai é soberano”, algo cômico vindo desses setores, já que o governo surgido do golpe é tudo, menos nacionalista: o presidente Federico Franco é um antilopizta ferrenho2. Em sua gestão foi rapidamente anulada a aplicação da lei do cinturão de segurança de fronteiras, acabou qualquer perspectiva de aprovar o imposto sobre a soja, foi dada rédea solta a uma negociação com a multinacional Rio Tinto Alcan, cujo projeto é muito desvantajoso para o país, foram violadas regulamentações para a aceitação de novas sementes transgênicas multinacionais etc.

Na noite de 21 de junho, quando teve início o julgamento político contra Lugo na Câmara de Deputados e na véspera de sua condenação pela Câmara de Senadores, chegaram a Assunção os onze chanceleres da Unasul, enviados do Rio de Janeiro por seus respectivos presidentes, que se encontravam na Conferência Rio+20. Sua missão era inteirar-se da situação e buscar uma saída para a crise. Reuniram-se na manhã do dia 22 com os dirigentes de vários partidos conservadores. Nessa ocasião, graças à intervenção de um alto dirigente do Partido Colorado, os chanceleres do Chile e da Colômbia que integravam a delegação foram informados de que “a Unasul é um projeto castro-chavista” (sic).

A suspensão da participação do Estado paraguaio no Mercosul resultou de uma cláusula democrática nesse âmbito aprovada em 1998 a pedido do Paraguai, que se viu ameaçado por um golpe de Estado em 1996. Suspensa sua participação, a resistência dos setores conservadores que dominam o Congresso paraguaio foi anulada, abrindo caminho para a entrada da Venezuela no Mercosul. Pouco tempo depois, com o apoio do presidente Franco, que enviou novamente o pedido de acordo, os mesmos senadores que participaram do golpe em 22 de junho se apressaram em “rechaçar” o ingresso da Venezuela no Mercosul, a fim de colocar uma “trava” no retorno do Paraguai a essa instância regional.

Entre as acusações de “mal exercício da função” lançadas contra o presidente Lugo estava o apoio ao protocolo Ushuaia II, que visa consolidar a democracia na região e travar qualquer tipo de intenção golpista. Como disse um chanceler na missão da Unasul em Assunção no dia do golpe, “então os doze presidentes da América do Sul deveriam ser julgados, porque a proposta foi incentivada por todos eles!”

Por mais absurdas que pareçam algumas atitudes e afirmações dos setores conservadores paraguaios, o sentido geral é um só: desacreditar o Mercosul e a Unasul. Criar na “psicologia da opinião pública” do país a percepção de uma nação rodeada de inimigos e perigos que, portanto, deve pedir ajuda aos... Estados Unidos. E em termos comerciais tais setores propõem uma adesão ao acordo do Arco do Pacífico (Chile, Peru, Colômbia e México), onde se encontram os três países sul-americanos que têm acordos de livre-comércio com os Estados Unidos.

Alguns parlamentares mais apressados inclusive já disseram ter feito ofertas para que o governo norte-americano instale uma base militar no Chaco, o que foi desmentido pelo governo paraguaio. Isso não significa que não haja avanços em outros tipos de acordo militar e estratégico com os Estados Unidos...

O golpe de Estado no Paraguai é o último estertor de um reacionarismo herdado da guerra fria no continente ou um sintoma de rearticulação de setores conservadores na região? Vale salientar que pelo menos dois importantes segmentos no Mercosul saíram em defesa do golpe (como sendo apenas a aplicação da Constituição do país) e da legitimidade do governo Franco: os Partidos Colorado e Blanco, ou seja, a oposição de direita ao governo uruguaio, e o PSDB do Brasil. Não é coincidência que esses segmentos também façam oposição interna a Mujica e Dilma nas questões de política internacional. Para o PSDB a região é um estorvo: por que o Brasil deve buscar exercer uma liderança colaborativa com vizinhos “atrasados”, enquanto seu maior desejo é fazer alianças com os centros do norte capitalista? Para blancos e colorados uruguaios o Mercosul bloqueia o ansiado acordo de livre-comércio com os Estados Unidos. Como contraponto, destacamos que os setores conservadores da Argentina no Parlamento votaram pela condenação do golpe e nos demais países pouco se manifestaram sobre o tema. Em suma, considerando os doze países-membros da Unasul, não é muito o que conseguiram juntar, mas, contando com a presença do PSDB brasileiro e dos dois partidos tradicionais uruguaios, os conservadores têm um potencial que tampouco é desprezível. É preciso acompanhar os futuros passos.

Deve-se destacar que, em termos de bloco, a conduta dos onze países-membros da Unasul (o Paraguai é o 12°) tem se mantido articulada e razoavelmente unida, embora sua composição seja bastante heterogênea e vá muito além do campo progressista. Isso se verificou nas reuniões da OEA após o golpe, nas quais o secretário-geral Jose Miguel Insulza apresentou um informe claramente a favor dos argumentos golpistas, mas não conseguiu aprová-lo, devido à oposição dos países da Unasul e de outros de fora do subcontinente, a exemplo da República Dominicana. Ao mesmo tempo, a assembleia também não votou pela exclusão do Estado paraguaio, conforme foi proposto por países da Unasul. Podemos considerar esse “empate” um indício a mais da decadência e irrelevância da OEA? Evidentemente, quanto ao Paraguai, os debates e alinhamentos na OEA mostraram as pontos de tensão existentes no hemisfério entre o projeto liderado pelos Estados Unidos (que só tem assento na OEA) e aquele claramente liderado desde 2005 pelos países do Mercosul (agora com o Paraguai suspenso e a Venezula incorporada), que ganha espaços na Unasul e busca se estender além do subcontinente com a criação da Comunidade dos Países Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).

Os setores progressistas da região não deixaram de perceber que o golpe de Estado no Paraguai foi mais sofisticado do que outros dados ou tentados nos últimos dez anos. Houve um massacre, como em 2002 na Venezuela, que comoveu a opinião pública, mas, além disso, diferentemente no caso paraguaio, os aliados do governo foram neutralizados pela morte de onze camponeses sem-terra ao lado de seis policiais em Curuguaty; as instituições conservadoras que estavam fora do controle progressista foram ativadas, igual ao que houve em Honduras, com o Congresso e o Poder Judicial como instrumentos legítimos para expulsar o presidente, embora sem necessidade de raptá-lo, como no caso hondurenho. Foram pisoteados os direitos fundamentais (do presidente, que não teve direito a defesa e ao devido processo, e do povo que nele votou e o elegeu), com o argumento da “especificidade” da Constituição paraguaia (fazendo uma interpretação inconstitucional, confundindo intencionalmente o “juízo político” do presidencialismo paraguaio com o “voto de desconfiança” parlamentarista europeu), a fim de convencer sobre a legalidade do golpe.

Não é segredo que nossa região vive uma disputa entre rumos estratégicos. O golpe de Estado parlamentar em 22 de junho passado no Paraguai é apenas a manifestação mais dramática dessa disputa. Lá, as forças contrárias à integração regional estão na ofensiva. Veremos qual será a capacidade dos setores reacionários da região para estender essa política a outros países e, sobretudo, qual será a capacidade dos setores progressistas de reagir a esse desafio mediante o aprofundamento e o fortalecimento da integração regional.

Gustavo Codas é jornalista, economista e mestre em Relações Internacionais