Internacional

O evento em Porto Alegre debateu ações de apoio à causa palestina no momento em que o Estado palestino foi admitido como observador na ONU
 

O Fórum Social Mundial Palestina Livre, em Porto Alegre, debateu ações de apoio à causa palestina no momento em que o Estado palestino foi admitido como observador da ONU, sob a pressão de entidades israelitas e instituições conservadoras

Nas ruas de Porto Alegre e no mundo, resistência só tende a aumentar

Nas ruas de Porto Alegre e no mundo, resistência só tende a aumentar. Foto: Cíntia Barenho

Quando Porto Alegre recebeu o primeiro Fórum Social Mundial, em janeiro de 2001, a retórica conservadora regional reavivava o medo do comunismo para atacar a realização de um evento que traria movimentos sociais, ativistas e personalidades de todas as partes do mundo para debater um outro mundo possível. Era o medo do comunismo redivivo, mas não funcionou. E a capital gaúcha, administrada à época pelo PT, assim como o governo do estado, tornou-se referência internacional para o debate de alternativas e a construção de utopias.

Passados pouco mais de dez anos, Porto Alegre sediou o Fórum Social Mundial Palestina Livre, no final de novembro de 2012. A exemplo do que acontecera na primeira edição do FSM, o conservadorismo local esbravejou contra a realização do evento. Só que, dessa vez, encontrou eco em uma cidade que abandonou o papel de vanguarda que conquistara ao acolher a diversidade mundial.

Pressionadas por entidades israelitas do Rio Grande do Sul, instituições públicas retiraram apoio ao fórum, ameaçando sua realização. Entre as alegações, chegou-se até a dizer que o evento traria terroristas à capital dos gaúchos, mas a maioria centrava-se, sobretudo, na carta de intenções que defendia o boicote comercial a Israel. De última hora, o Ministério Público estadual desistiu de ceder seus espaços para atividades do evento. Houve pressões sobre a Prefeitura de Porto Alegre e o governo estadual. O governador Tarso Genro afirmou, em nota, que “o apoio ao evento foi aprovado por se tratar de uma atividade vinculada ao Fórum Social Mundial, sem compromisso com as posições políticas que ali serão sustentadas pelos diversos integrantes do fórum”, e ainda promoveu um culto ecumênico no Palácio Piratini como forma de aplacar a tensão. O encontro, no final das contas, acabou ocorrendo.

Apesar das dificuldades organizativas, a importância do Fórum Social Mundial Palestina Livre se deu em função do momento histórico. Uma semana depois do cessar fogo entre Israel e o Hamas, após os conflitos que deixaram dezenas de civis palestinos mortos na Faixa de Gaza, ativistas se reuniram para discutir formas de se somar à luta pela criação do Estado Palestino. No dia 29 de novembro, o segundo do evento e Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino, a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu, com 138 países a favor, nove contra e 41 abstenções, a Palestina como Estado observador não membro. Um passo que, embora simbólico, sinaliza novas tarefas na luta pela efetivação do Estado palestino.

Entre 28 de novembro e 1º de dezembro, em diferentes pontos de Porto Alegre, ativistas de mais de trinta países participaram de aproximadamente 160 atividades, além de uma marcha que reuniu, segundo os organizadores, 6 mil participantes nas ruas da cidade. “O fórum é a principal atividade de solidariedade ao povo palestino já realizada no Brasil e uma das mais importantes realizadas no mundo, pelo caráter, pela participação e pela qualidade da representação”, disse o secretário de Relações Internacionais do PCdoB, Ricardo “Alemão” Abreu. Entre as personalidades mais proeminentes estavam o embaixador da Autoridade Nacional Palestina no Brasil, Ibrahim Al Zeben, o secretário de Relações Internacionais do Fatah, Nabil Shaath, o diplomata brasileiro Arnaldo Carrilho, com larga atuação no mundo árabe, tendo sido representante brasileiro junto à Autoridade Palestina, e o político sul-africano e judeu Ronald Kasrils, ativista contra o apartheid no país de Nelson Mandela.

“A comunidade internacional terá de enfrentar a verdade. Estão querendo que a Palestina seja um Estado independente? Nas últimas semanas fomos forçados a não ir às Nações Unidas, estão nos pressionando para não irmos aos tribunais internacionais”, denunciou Nabil Shaath durante a abertura do evento. Ex-ministro de Yasser Arafat na ANP, Shaath conclamou a sociedade civil latino-americana. “Esta reunião é o local mais importante para a luta da liberdade da Palestina”, declarou. Para Shaath, a “primavera latino-americana”, que levou democracia e justiça social aos países do continente, deve inspirar a incógnita que ainda é a Primavera Árabe. O secretário do Fatah pediu também, mais de uma vez, a participação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na liderança de um comitê internacional de solidariedade à causa palestina.

Durante os quatro dias do fórum, ativistas condenaram o histórico descumprimento, por parte de Israel, dos acordos de divisão do território desde 1947, quando a ONU definiu a criação dos dois Estados. “Em 1969, tentamos estabelecer algo parecido com o que Nelson Mandela faria na África do Sul, uma solução nunca aceita por Israel. Em 1988 (quando foi proclamado o Estado palestino independente, determinando a retirada israelense dos territórios ocupados em 1967), aceitamos a divisão. Estamos nesse processo nos últimos vinte anos. Negociamos tudo. E nada foi implementado. Ainda somos um país sob ocupação, segregado, vivendo em um regime de apartheid”, disse Nabil Shaath.

Além da condenação à ocupação dos territórios, à violência contra a população civil, à violação de direitos humanos e do direito internacional e à política de segregação imposta aos palestinos, o fórum procurou pautar-se por ações concretas no rumo do reconhecimento pleno da Palestina. Nasser Al Reyes, integrante da entidade de defesa dos direitos humanos Al Haq, resumiu a questão: com tantas violações por parte de Israel, condenações públicas já não são suficientes. “Se observarmos as práticas de Israel, não contamos nenhum artigo da Convenção de Genebra (normas de respeito aos direitos humanitários em períodos de conflito) que não tenha sido violado pelo Estado de Israel. Eles não consideram os palestinos seres humanos, continuam cegamente com sua política ocupacional. Nossa luta tem de estar baseada no direito internacional. Temos uma oportunidade histórica de buscar instrumentos legais, sair dos discursos, da condenação, e trabalhar com a comunidade internacional para superar essa situação que só fica como tinta sobre o papel”, afirmou o ativista.

De um lado, discutiu-se a campanha global Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), cujo objetivo é atingir empresas que se beneficiam da ocupação ilegal dos territórios e da exploração de seus recursos hídricos, da expansão do muro que transforma em concreto o regime de apartheid, da produção de armas, entre outros produtos da violação. De outro lado, os movimentos sociais defenderam a realização de gestos concretos de solidariedade ao povo palestino. João Felício, secretário de Relações Internacionais da Central Única dos Trabalhadores (CUT), destacou as parcerias que vêm sendo realizadas com as centrais sindicais palestinas: “A CUT apoia a formação do movimento sindical em países como a Palestina, com solidariedade, parcerias concretas, que contribuam de fato, sem tentar impor nada às organizações locais”.

O documento final definiu um norte de ação dos movimentos sociais no próximo período, que será marcado por uma nova configuração da luta palestina, em virtude do reconhecimento da ONU. O boicote econômico a Israel foi um dos temas centrais do encontro, como expressou Ronald Kasrils, ex-ministro de Mandela: “O exemplo da nossa luta contra o apartheid na África do Sul mostra que precisamos atingir o inimigo onde dói mais: no bolso. A campanha de boicote vai ampliar o isolamento dessa política de terrorismo de Estado, inspirando a população palestina a fortalecer a resistência”.

Após o Fórum Palestina Livre em Porto Alegre e dias depois do acolhimento do Estado palestino como observador das Nações Unidas, duas notícias mostraram que a causa palestina ainda encontrará muitas dificuldades, apesar da vitória no campo diplomático. A ala mais conservadora do Likud, partido de direita do qual faz parte o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, saiu vencedora das primárias para a escolha dos candidatos para as eleições legislativas de janeiro. Além disso, o governo israelense anunciou um novo plano para a construção de assentamentos judaicos na Cisjordânia, no que foi condenado pela comunidade internacional. Agora, porém, a luta entra em outro patamar. A Palestina pode ingressar com ações no Tribunal Penal Internacional, por exemplo, para buscar a condenação de militares israelenses por crimes de guerra. Na primeira ação após a votação da assembleia geral das Nações Unidas, as autoridades palestinas pediram à ONU que atue contra o crescimento das colônias israelenses nos territórios ocupados da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental.

Foi ainda na abertura do evento que Nabil Shaath, militante histórico, resumiu por que a resistência só tende a aumentar, mesmo com o boicote à paz por parte do território de Israel. “O problema do povo palestino é que nunca desistimos. Temos essa doença crônica que se chama esperança. Ainda bem.”

Daniel Cassol é jornalista