Cultura

Em depoimento a Walnice Nogueira Galvão, o professor Antonio Candido conta como se iniciou o estudo sobre o acervo de Mário de Andrade

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

Antonio Candido conta como se formou no IEB-USP o centro de estudos sobre Mário

Antonio Candido conta como se formou no IEB-USP o grande centro de estudos em torno de Mário. Foto: Letícia Moreira/FolhaPress

Dei um curso de análise do poema “Louvação da tarde”, de Mário de Andrade, em 1962, que acabou tendo muitas consequências. Desse seminário saiu a pesquisa em casa de Mário de Andrade, a cargo de Nites Teresinha Feres, Maria Helena Grembecki e Telê Ancona Lopez (leia O mundo de Mário de Andrade). Eu propus: “Vamos examinar a marginália do Mário de Andrade”. Então arranjei uma verba com a Fapesp, que não dava verba para literatura, só para ciência; mas mostrei a eles que pode haver pesquisa em literatura. A primeira foi para essas meninas e para Pérola de Carvalho analisar Machado de Assis. É preciso dizer que como minha disciplina de Teoria Literária e Literatura Comparada era nova, sem tradição nem hábitos adquiridos, foi fácil introduzir cursos sobre autores recentes, contrariando a norma. Encaminhei as três moças que mencionei para o estudo da obra de Mário e Vera Chalmers para a de Oswald de Andrade.

Mário tinha manifestado informalmente à família o desejo de distribuir seu acervo por várias instituições: Biblioteca Municipal, que hoje leva seu nome, Biblioteca de Araraquara, Pinacoteca, Cúria – o que seria uma pena. A família não deu andamento e ficou tudo na casa onde ele morava, à Rua Lopes Chaves, onde a irmã foi morar. Um dia o irmão dele, Carlos de Morais Andrade, me chamou e disse: “Nós estamos numa situação um pouco complicada, porque precisamos dar um destino a tudo isto. Além disso minha irmã está em situação difícil porque o marido morreu e ela precisa de dinheiro. Nós não queremos vender, porque o Mário não queria vender nada, mas queríamos ceder para alguma instituição que desse uma compensação pequena a ela. O que você acha?” Estavam reunidos Carlos de Morais Andrade, o sobrinho Carlos Augusto de Andrade Camargo e Airton Canjani, casado com a irmã deste. Eu disse: “Podemos transformar isto aqui numa Casa de Mário de Andrade ou incorporar à Universidade de São Paulo. Se vocês quiserem transformar isto numa Casa de Mário de Andrade a situação é boa porque, embora eu seja oposição, o atual governador do estado, que é o Roberto de Abreu Sodré, foi meu companheiro de luta política contra o Estado Novo. O secretário do governo é amigo meu, o Arrobas Martins, colega de turma na Faculdade de Direito. Eu sei que eles estão loucos para fazer uma Casa de Mário de Andrade”. Aí eles conversaram, pensaram um pouco, e com grande bom senso disseram: “Queremos incorporar à universidade”.

Fui falar com José Aderaldo Castello, que pegou fogo, encampou a ideia e promoveu tudo, depois de obter o consentimento da reitoria. Morais Andrade me disse: “Não quero um tostão para mim, mas quero uma compensação para minha irmã” – fixando duzentos não sei o que, mil ou milhões, porque esqueci qual era a moeda. A reitoria achou tão pouco que deu quinhentos, quantia quase simbólica em face da qualidade e quantidade do acervo: uma coleção de quadros que era um museu, esculturas, quatrocentas gravuras, inclusive algumas de Albrecht Dürer, coleção de partituras, coleção de arte popular, coleção de imagens, 15 mil volumes na biblioteca. E mais toda a papelada dele e a correspondência. Uma coisa monumental. Foi a partir daí que se formou no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) o grande centro de estudos em torno de Mário de Andrade.