Internacional

Partidos socialistas e socialdemocratas precisam mostrar que estão dispostos a enfrentar os setores especulativo e financeiro, na lógica de quem polui tem de pagar pela limpeza

 

Logo depois do colapso do Lehman Brothers e de seu impacto sobre a economia real, várias lideranças governamentais expressaram publicamente a necessidade de domesticar o setor financeiro, no intuito de colocá-lo novamente a serviço do setor produtivo.

Hoje, é óbvio que houve uma milagrosa conversão, particularmente na Europa, no sentido de que o setor financeiro conseguiu pressionar o setor público com a ajuda das agências de rating, as mesmas que não tiveram nenhum escrúpulo em dar AAA para ativos financeiros que se tornaram podres da noite para o dia. Isso fica particularmente evidente na União Europeia (UE), onde o Estado de bem-estar foi colocado no banco dos réus.

Sem dúvida há problemas estruturais que obrigariam os países da UE a buscar novos caminhos, sobretudo para se adaptarem à nova configuração do capitalismo global com a transferência do eixo dinâmico para o Pacífico e à estrutura demográfica no continente cada vez mais velha. Mas basta olhar o fato de que, até 2008, todos os países da zona do euro, com exceção da Grécia, tinham um déficit público abaixo do limite estabelecido de 3% do PIB e, em seguida, houve uma explosão do déficit com gastos para resgatar o setor financeiro e defender a economia contra os efeitos da crise. Ao mesmo tempo houve uma pressão dos mercados sobre os juros dos títulos soberanos de vários governos, que tornou a rolagem da sua dívida estressante.

Ficou evidente a fragilidade da experiência do euro, primeira moeda sem Estado no capitalismo moderno, em especial diante das assimetrias entre os países da zona do euro: a Alemanha é superavitária com praticamente todos os demais países, sem que esse superávit gere pressões sobre seu câmbio. A “troika”, formada pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional (FMI), estabeleceu uma política de austeridade que acaba matando o doente em nome da estabilidade, além de dar continuidade à política de concentração de renda. Isso não significa, porém, que a volta às moedas nacionais seja uma solução. Na verdade, aumentaria ainda mais o poder de pressão dos setores financeiros e especulativos.

O esvaziamento do poder de regulação e do pacto social pós-guerra não foi fruto da unificação, mas resultado da internacionalização do capital e, em particular, do capital financeiro. É difícil imaginar que uma rerregulação possa se dar a partir de países isolados. As populações mais atingidas pelas políticas de austeridade, na forma de perda de emprego, renda e perspectiva de vida, têm grande desconfiança em relação às instituições europeias e descrença na perspectiva de que pode haver uma disputa democrática nesse nível.

De outro lado, o clima político é de questionamento e rejeição à política de austeridade, inclusive porque esta, embora tenha aparentemente contribuído para diminuir os riscos dos setores financeiros, não provocou melhorias na economia real. O caso de Portugal, que tentou implementar o receituário de austeridade completo, evitou a necessidade de pedir um segundo pacote de ajuda, mas está com 17,6% de desemprego e uma previsão do PIB de 2013 entre -2,5% e -3,5%.

A centro-esquerda, identificada com o modelo de bem-estar social no pós-guerra – dos partidos socialdemocratas, os socialistas, ao atual Partido Democrático na Itália –, tenta convencer o eleitorado sobre a necessidade e possibilidade de repactuar um novo modelo em nível europeu. Seria preciso não menos, mas mais Europa. Diante da descrença da população, esse discurso tem dificuldade de mobilizar o descontentamento generalizado com a política de austeridade, dando margem a votos para partidos que buscam a solução em menos Europa ou, na ausência destes, em aumento do absenteísmo. As últimas eleições na Itália são emblemáticas. Os partidos que se colocaram, por oportunismo (caso de Silvio Berlusconi) ou por convicção, contra a política de austeridade alcançaram não menos de 90% dos votos, diante de uma participação nas urnas ainda muito expressiva de 75%, considerando que o voto é facultativo. O que Beppe Grillo, Berlusconi e Luigi Bersani, apesar de todas as suas diferenças, tinham em comum em suas campanhas era um discurso sobre a necessidade de diminuir o poder do capital financeiro e especulativo.

A centro-esquerda está consciente de que, para reconquistar a confiança de uma parcela maior da população, é preciso mostrar sua capacidade de se posicionar contra os interesses dos setores financeiros e especulativos, em uma lógica de que o poluidor deve pagar pela limpeza. É nessa linha que, a partir da iniciativa da França, onze países da União Europeia conseguiram, no início de 2013, aprovar a autorização para coordenar uma taxação sobre os fluxos financeiros. Outro exemplo é a proibição do uso dos chamados naked CDS, aprovada no final do ano passado, ou seja, a proibição de especular com títulos de seguro contra default por parte de quem não tem a dívida original, decisão criticada pelo FMI.

Nessa linha, também estão se dando medidas contra a evasão fiscal, estimada em seu conjunto na União Europeia superior a € 1 trilhão. Isso implica pressões sobre os paraísos fiscais, a começar aqueles da própria zona do euro, em particular Luxemburgo, Malta e Chipre. Esse tema ganhou particularmente urgência para a credibilidade do discurso de centro-esquerda após a renúncia, na França, do ministro do orçamento, Jérôme Cahuzac, por evasão fiscal, com contas não declaradas na Suíça.

É nesse contexto que deve ser visto o discurso do recém-empossado presidente do grupo de ministros de Finanças da zona do euro, do partido de centro-esquerda holandês1, Jeroen Dijsselbloem, sobre um novo paradigma a respeito de Chipre. Trata-se de um país com ativos financeiros cerca de oito vezes seu PIB que se tornou um verdadeiro paraíso fiscal, atraindo, entre outros, recursos dos oligarcas russos, em volume estimando entre € 20 bilhões e € 23,5 bilhões. Impor uma perda a investidores com mais de € 100 mil (mais de R$ 250 mil) em conta bancária e, pela primeira vez na história do euro, um controle para impedir fuga de capitais são medidas que implicam perdas aos setores financeiros e especulativos.

Infelizmente, houve uma enorme e inexplicável confusão criada quando, no primeiro anúncio do plano, estavam previstas também perdas aos correntistas comuns. Essa confusão influenciou inclusive as análises a respeito do plano de resgate em Chipre.

Na verdade, o colapso de Chipre como porto seguro bancário é positivo para a própria economia russa ao desestimular a fuga de capitais e a evasão fiscal no país.

Sem dúvida, essas tentativas de reposicionamento diante dos setores financeiros e especulativos, em uma perspectiva de centro-esquerda, estão longe de constituir uma alternativa à política de austeridade, mas merecem atenção na análise a respeito da evolução da crise europeia.

Giorgio Romano é coordenador do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC)