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Cabo Verde sofreu processo semelhante aos países centrais, sob o paradigma da gestão terceirizada da administração pública, sem que tivesse o mesmo “inchaço”

Algumas dificuldades se impõem na transição de um ponto de partida recém-descolonizado rumo ao modelo neoliberal, entre as quais a substituição de políticas públicas de Estado por atividades de ONGs. No contexto cabo-verdiano, por exemplo, como reduzir a ação estatal ou renunciar a políticas públicas quando estas nem sequer foram consolidadas no curto período de independência?

Estima-se que haja 1 milhão de cabo-verdianos morando fora do país

Estima-se que 1 milhão de cabo-verdianos estão morando fora do país. Foto: Ministério das Comunidades/Governo do Cabo Verde

Atualmente a metade da população mundial vive em áreas urbanas, ou seja, 3,5 bilhões de pessoas, segundo as Nações Unidas. Na última década, a África – ainda que o menos urbano dos continentes – registrou um ritmo acelerado de incremento de sua população em cidades, quase o dobro da média mundial no mesmo período (3,4% e 1,9% ao ano, respectivamente). Por sua vez, outras regiões apresentam elevada taxa de urbanização, como a América Latina (cerca de 80%), embora em um ritmo menos intenso de crescimento (1,6% ao ano). É nesse cenário de superurbanização, guiada por inovações tecnológicas e por desigualdades estruturais, que os processos de globalização se concretizam. É no espaço urbano que vive a maior parte da população mundial, com tendências crescentes de urbanização.O colonialismo foi a primeira globalização, caracterizada pela ocupação territorial, já nos alertava o geógrafo Milton Santos. A segunda globalização (a neoliberal), iniciada em fins do século 20, é marcada pela fragmentação dos territórios.

Importa destacar, nesse contexto de análise, a consolidação da matriz econômica em nível mundial sob os preceitos do Consenso de Washington, envolvendo novas formas de dominação social e política na geopolítica internacional, com profundos impactos nos territórios, em favor de maior controle do mercado sobre a economia. Entre as principais ações defendidas por esses governantes estavam as privatizações de empresas estatais e a diminuição da participação do Estado nas políticas de segurança social, em especial no que diz respeito às aposentadorias.

Em Cabo Verde, a onda neoliberal coincide com a denominada “abertura política” dos anos 1990. Essa década também foi marcada pela privatização e extinção de empresas estatais, favorecendo a ampliação do setor privado em diversas áreas da economia. No entanto, a história do Estado cabo-verdiano é bastante diversa daquela do norte global. Apenas após quinze anos de independência, com a estrutura estatal ainda em processo de consolidação e tendo um modelo administrativo de base colonial, há um desvio rumo à “desestatização”, completamente descolada da história da formação do Estado nacional.

Cabo Verde, um Estado arquipélago, está situado em meio ao Oceano Atlântico, entre Brasil e África. O país é formado por dez ilhas, das quais nove são habitadas. A população de quase 492 mil habitantes é majoritariamente jovem, marcada pelo desemprego, que pode chegar a 38% nessa faixa, conforme aponta o Instituto Nacional de Estatística. Além disso, a carência de recursos naturais simultaneamente aos ciclos de seca profunda tem expulsado grande parte da população para a diáspora. Estima-se que haja, hoje em dia, 1 milhão de cabo-verdianos morando fora do país, o equivalente a dois terços da população nacional.

Nesse cenário a onda neoliberal atingiu o país, de modo que nos anos 1990 o Estado cabo-verdiano atravessou um período de decomposição semelhante ao dos países centrais, sob o paradigma da gestão terceirizada das funções públicas, sem que a administração pública tivesse, em Cabo Verde, o mesmo “inchaço” que justificou medidas neoliberais no Norte. É fulcral considerar, ademais, as fragilidades existentes em uma sociedade recém-independente para a construção do sujeito pós-colonial e para a luta por direitos. O Estado colonial era baseado em privilégios e na violência. Achille Mbembe, importante pesquisador e intelectual africano, demonstrou em seu livro On The Postcolony que “em África, antes e depois da colonização, o poder do Estado foi construído através do estabelecimento de relações específicas de dominação. É preciso dizer-se algo sobre as relações entre dominação, distribuição de riqueza e privilégios e o problema geral da constituição do sujeito pós-colonial”.

O modelo colonial de governo nunca favoreceu qualquer tipo de noção de “direito”, tendo até mesmo vetado, durante décadas, qualquer tipo de organização social, mesmo de natureza apolítica. Isto é, o modelo vigente nas colônias, inclusive as portuguesas, era o oposto daquele do debate e da luta por direitos. “Exceto quando usado na forma de arbitrariedade e do direito de conquistar, o conceito de direito sempre permaneceu um vazio”, afirma Mbembe. O exercício do poder implicava, necessariamente, a “domesticação” do colonizado, fosse pela via da violência, fosse, no caso português, pela assimilação com bases legais no Estatuto Indígena. De ressaltar que Amílcar Cabral, herói da independência da Guiné Bissau e de Cabo Verde, denunciou o Estatuto nas Nações Unidas, durante os anos 1960, por legalizar o racismo (sempre negado pelo regime salazarista) nas colônias portuguesas.

Em outras palavras, a principal característica do poder colonial era dar ordens e tê-las atendidas; os direitos diziam respeito apenas aos dominadores: direito de mandar, forçar, obrigar, autorizar, punir e ser obedecido. Não basta a assinatura de um tratado de independência para desconstruir o regime colonial impregnado nos corpos e nas ações do cotidiano. São necessárias algumas gerações para a construção de um sujeito pós-colonial livre da dominação à qual seus antepassados foram submetidos durante séculos.

Há de se analisar, portanto, a onda neoliberal inserida nesse contexto pós-colonial, cuja herança é uma série de noções construídas, ou melhor, distorcidas a partir da ótica da dominação, entre as quais direitos universais, luta por direitos e função pública. Por conseguinte, algumas dificuldades se impõem na transição de um ponto de partida recém-descolonizado rumo ao modelo neoliberal: a substituição de políticas públicas de Estado pelas atividades das ONGs, desde atendimento à saúde até escolarização (substituída pelas formações), cujo principal resultado tem sido a gradativa falta de alocação de recursos públicos para esses setores; a baixa escolaridade da população como obstáculo para atender à nova necessidade de elaborar “projetos” (e geri-los) para obtenção de recursos de toda natureza; a descontinuidade das “atividades” que passam a ter um horizonte temporal vinculado aos projetos, causando interrupções muitas vezes dramáticas num processo de desenvolvimento local; a imposição de uma agenda ex tempore, uma vez que o destino das verbas é predefinido pelas grandes agências internacionais, com pouca flexibilidade para demandas locais;  exigência para um “empreendedorismo” ou que a população seja mais proativa, desconsiderando o recente passado colonial e o alto grau de dependência resultante das políticas de dominação.

Dito de outra forma, observa-se, com essa “ONGnização” do Estado Nacional, a substituição da construção de políticas públicas e da universalização de direitos pelo universo dos “projetos”. Num contexto de globalização neoliberal há, ainda, maior complexidade do processo de formulação de políticas públicas, por estarem em jogo interesses internacionais, nos quais as ONGs são parte indiscernível.

Por conseguinte, os prazos de reconstrução, autonomia e emancipação em contextos pós-coloniais estão sendo assolapados. Em particular, no contexto cabo-verdiano, como reduzir a ação do Estado ou renunciar ao desenvolvimento de políticas públicas quando estas nem sequer foram consolidadas no curto período de independência? Como redesenhar o papel de um Estado que nunca foi imbuído da responsabilidade de distribuir as riquezas nacionais? Como tratar acesso a terra, direito a moradia e à cidade em contextos nos quais a estrutura de privilégios é diretamente herdada do sistema colonial?

O padrão de ocupação do território resultante da rápida urbanização das cidades africanas não pode ser analisado nem à margem da globalização neoliberal tampouco fora do recente (e violento) processo de descolonização. Nesse sentido, uma série de direitos tem sido constantemente negligenciada nas agendas nacionais, com forte impacto na configuração das cidades no continente.

Urge, portanto, problematizar conceitos como território, cidade e urbanidade, em tempos de globalização neoliberal, em especial para lidar com as urbanidades do continente africano e, por que não, latino-americano. Se a matriz funcional modernista tem sido pouco útil para estudar as cidades do final do século 20, tampouco a abordagem pós-modernista é operante para contextos urbanos dos países pobres. Mais especificamente, a urbanidade insular em Cabo Verde, em um cenário de economia globalizada, nos lança a enormes desafios epistemológicos.
Nota: Algumas das ideias aqui apresentadas foram inicialmente desenvolvidas no relatório Análise de Gênero nas Áreas Protegidas de Cabo Verde, realizado em coautoria com Miriam Vieira, para a Rede Parlamentar para o Ambiente, Luta contra a Desertificação e Pobreza, do Parlamento cabo-verdiano e Nações Unidas, em 2010.

Andréia Moassab é arquiteta e urbanista, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, coordenou pesquisa do Centro de Investigação em Desenvolvimento Local e Ordenamento de Território da Universidade de Cabo Verde (2009-2012). Autora de Brasil Periferia(s): a Comunicação Insurgente do Hip-Hop (Educ/Fapesp, 2011). Atualmente é professora adjunta e coordenadora na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila/Brasil)