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Vitória de Horacio Cartes, do Partido Colorado, é resultado direto do golpe de Estado que uniu partidos conservadores para destituir o presidente Fernando Lugo

A novidade política destas eleições poderia ser a combinação de dois movimentos: de um lado, os atores conservadores do “terceiro espaço” vão se extinguindo, a tempo de a esquerda surgir como um fator forte; de outro lado, um dos polos do bipartidarismo tradicional se debilita, entra em crise e sofre uma ruptura orgânica

A eleição foi uma reedição do bipartidarismo conservador tradicional

A eleição foi uma reedição do bipartidarismo conservador tradicional. Foto: Jorge Adorno/Reuters

Em 21 de abril, as eleições nacionais no Paraguai para o período 2013-2018 foram ganhas de forma contundente pelo Partido Colorado e seu candidato presidencial Horacio Cartes. Esse partido volta ao governo após um intervalo de cinco anos (2008-2013), que interrompera uma hegemonia de mais de seis décadas (1947-2008).

O resultado foi consequência direta do golpe de Estado parlamentar de 22 de junho de 2012, que uniu todos os partidos conservadores para destituir o presidente Fernando Lugo e marginalizar a esquerda no cenário político. O fato de os liberais se aliarem aos demais para o golpe contra um governo do qual faziam parte foi nefasto para seu candidato Efraim Alegre. Agregue-se a isso a péssima gestão governamental de Federico Franco, o liberal que fora vice de Lugo, assumiu a Presidência e foi incapaz de convencer os eleitores de que a continuidade do seu partido seria desejável.

Duas coalizões progressistas esboçaram tentativas para se tornar uma alternativa ao bipartidarismo tradicional. Uma delas, a Frente Guasú (Frente Grande, em guarani), teve um bom resultado na eleição para o Senado com a chapa encabeçada pelo ex-presidente Lugo, mas para se constituir em polo aglutinador de uma terceira opção tem muito por fazer ainda.

A disputa presidencial

No Paraguai o voto é obrigatório, mas a participação foi baixa em muitas eleições. Derrubando alguns prognósticos iniciais, nestas o comparecimento foi de 69%, por cima da média das eleições desde o retorno da democracia em 1989. O fato é ainda mais marcante se considerarmos que desta vez tinham direito a voto 1 milhão de pessoas a mais em relação há cinco anos.

Os quatro primeiros candidatos obtiveram os seguintes resultados (dos votos válidos): Horacio Cartes (Partido Colorado), 48,5%; Efrain Alegre (Partido Liberal Radical Autêntico), 39,1%; Mario Ferreiro (Avança País), 6,2%; Anibal Carrillo (Frente Guasú), 3,5%.

A eleição foi uma reedição do bipartidarismo conservador tradicional. Os partidos Colorado e Liberal governaram o país desde 1887, quando foram fundados, exceto por breves intervalos (1936-1937, 1940-1947 e 2008-2012). Seus candidatos presidenciais somaram quase 88% dos votos válidos. Diferentemente, em 2008, a candidatura independente de Fernando Lugo reuniu progressistas e liberais, alcançando 41% dos votos. Para ganhar, a coalizão contou com a deserção de uma parte do eleitorado colorado descontente com a fraude na convenção interna do partido. A candidata colorada teve apenas 30% dos votos. Na época, a candidatura do general Lino Oviedo (morto aos 69 anos em fevereiro de 2013) ficou em terceiro lugar, com mais de 20%.

Cartes agiu de maneira a agregar votos de jovens sem vínculo partidário, de oviedistas dispersos com a morte de seu líder e de eleitores que queriam punir os liberais pelo golpe de 2012 ou por sua gestão desastrada e corrupta no governo de Federico Franco. Ao mesmo tempo, conseguiu unificar todos os setores do Partido Colorado, mostrando não só que era o único candidato eleitoralmente viável, mas que seu dinheiro podia sanar as dificuldades de um partido acostumado a se financiar de forma irregular com o dinheiro público e que agora sofria de “crise de abstinência” por estar fora do poder desde 2008.

O Partido Colorado detectou mudanças em curso no eleitorado paraguaio. Do eleitor tradicional acostumado ao clientelismo e ao fanatismo por uma cor, viu-se um setor crescente sem preferências partidárias e propenso a votar de acordo com o candidato, não com o partido. A imagem de Cartes de megaempresário de sucesso, de dirigente esportivo vitorioso no futebol, além de ele vir de fora da política (filiou-se ao partido somente em 2009, sem jamais ter participado de nenhum outro ou de eleições), foi a matéria-prima ideal para o resultado esperado e obtido.

Nesse contexto, pouco importou a nuvem de maus antecedentes envolvendo o candidato. Isso inclui acusações e condenações judiciais por evasão de divisas nos anos 1980; denúncias de contrabando e lavagem de dinheiro nos anos 1990; e as revelações recentes no site Wikileaks de que, em janeiro de 2010, a DEA - agência antidrogas americana - reuniu uma grande equipe de agentes em Buenos Aires para analisar as supostas atividades ilícitas de Cartes na região.

Seria possível supor que a quantidade de acusações de corrupção surgidas contra os liberais por sua gestão em ministérios ainda no governo Lugo, mas sobretudo no “governo-tampão” de Franco (22/6/2012 e 15/8/2013), havia “empatado” o jogo de acusações. O desempate foi dado pela mística colorada de querer voltar ao governo versus a desmoralização dos liberais por terem traído sua aliança com Lugo, e a imagem de Cartes que projetava um ar vitorioso mesmo entre seus adversários diante do perfil anódino do liberal e suas tentativas desastrosas de voltar a juntar aliados de última hora para tentar vencê-lo.

A disputa eleitoral e a esquerda

Não se pode escrever a história retrospectivamente. No entanto, meses atrás, as pesquisas mostravam como seria potente uma combinação da candidatura presidencial de Mario Ferreiro com a candidatura de Fernando Lugo encabeçando a lista nacional de senadores. Alguns analistas achavam inclusive que essa junção teria condições de tirar os liberais do posto de principais adversários dos coloradosVer a exaustiva análise do especialista Ruben Juste em http://ea.com.py/cartes-supo-aprovechar-el-desgaste-de-la-izquierda-y-del-liberalismo-segun-especialista-en-opinion-publica/.

No universo disperso de pequenas organizações políticas de esquerda que povoam o cenário paraguaio, cada ator pode contar a própria versão sobre a razão de não ter havido tal unidade, e sim a distribuição em duas coalizões, Frente Guasú e Avança País. Anteriormente, uma corrente de feministas socialistas, o Movimento Kuña Pyrenda (MKP, “Plataforma das Mulheres”, em guarani), já tinha se lançado sozinho com candidaturas de mulheres para quase todos os cargos.

O fato é que não se priorizou a construção de um sinal unitário de resposta de todas as forças progressistas antigolpistas contra as forças conservadoras que deram o golpe. Foi assim que votos destinados a punir a traição liberal migraram para os colorados. Muitos outros, que queriam evitar a vitória destes, optaram pelo candidato liberal. Uma alternativa progressista ampla e convincente teria reunido os próprios simpatizantes e esses dois segmentos.

A prioridade de cada uma das coalizões de esquerda foi participar das eleições para se constituir em uma força delimitada não só em relação aos setores conservadores, mas também, e talvez sobretudo, em relação às outras ofertas progressistas. A conjuntura e a opinião dos cidadãos não foram objeto primeiro de disputa, pois o que se queria disputar eram sobretudo os espaços dentro do território já conquistado.

Por fim, a Frente Guasú, potencializada pela figura de Fernando Lugo encabeçando sua lista nacional para o Senado, passou de dois senadores eleitos em 2008 para cinco atualmente. Reelegeu ainda uma bancada no Parlasul e conquistou um deputado por Itapua ao sul do país ao mesmo tempo que perdeu uma deputada no Departamento Central. O Avança País elegeu dois senadores (não tinha nenhum) e duas deputadas (tinha um). Tudo somado, os progressistas ocuparão sete cadeiras das quarenta do Senado e três das oitenta na Câmara.

Os resultados nacionais para senadores (considerando votos válidos) foram os seguintes: Partido Colorado, 38%; Partido Liberal Radical Autêntico, 26%; Frente Guasú, 10%; Avança País, 5%.

A disputa pelo terceiro espaço

Na votação para senadores os dois partidos tradicionais somados tiveram ainda uma porcentagem importante de votos, 64%, mas bem menor que a obtida com a polarização bipartidarista na disputa presidencial. A movimentação numérica de ambos, porém, foi inversa – os colorados passaram de quinze senadores para dezenove e os liberais caíram de catorze para treze.

O que sobrou de ofertas em nível parlamentar fora dos partidos tradicionais? Como está a disputa pelo “terceiro espaço”? As esquerdas somadas obtiveram 16% dos votos para o Senado. Se descontarmos os votos colorados e liberais, a soma da votação para o Senado da FG, AP e MKP foi 45% do restante, pouco menos da metade dos votos do que sobra entre os dois partidos conservadores tradicionais.

Os dois partidos conservadores que ocuparam esse espaço em eleições passadas, o Unace do falecido general Oviedo e o Pátria Querida formado por empresários, estão em vias de extinção. O Unace reelegeu dois de seus nove senadores, e o PPQ, que tinha quatro, não elegeu nenhum.

Dois grupos de origem progressista aliados ao liberalismo, o Democrático Progressista e o Encontro Nacional, completam o quadro. O primeiro tinha um senador e passou para três, e o segundo, que não tinha representação no Senado, elegeu um.

Tudo indica que o PLRA passa por uma crise interna. Afinal, foi duplamente desmoralizado por sua traição ao governo Lugo e pelo estilo vale-tudo nas eleições. A duras penas manteve alguns redutos, mas perdeu terreno em quase todo o país e irá governar apenas quatro dos dezessete departamentos.

A novidade política destas eleições poderia ser a combinação de dois movimentos: de um lado, os atores conservadores do “terceiro espaço” vão se extinguindo, a tempo de a esquerda surgir como um fator forte; de outro lado, um dos polos do bipartidarismo tradicional se debilita, entra em crise e sofre uma ruptura orgânica. Nesse cenário, o progressismo poderia substituir um dos polos e provocar a transformação do cenário político mais importante em mais de 130 anos, com um bloco progressista democrático como a alternativa ao partido Colorado. Mas qual é o jogo desse partido?

Quem é Horacio Cartes?

A ficha policial do candidato colorado foi amplamente divulgada na imprensa paraguaia e internacional, além de ter sido atualizada com as revelações do Wikileaks sobre investigações realizadas pelo governo dos EUA. Seu projeto político, porém, foi pouco analisado. Vejamos alguns pontos.

Desde o fim da ditadura, em 1989, diversos esquemas se empenharam para dominar o Partido Colorado. Primeiro, foi um grupo empresarial tendo à frente Wasmosy (presidente do país em 1993-1998), depois um grupo militar liderado pelo general Oviedo e, ao mesmo tempo, um setor de políticos tradicionais populistas, com Luis María Argaña. O conflito entre os dois em 1997-1998 anulou-os mutuamente, terminando com o assassinato de Argaña e o exílio de Oviedo (que posteriormente fez o próprio partido).

Desta vez, um esquema empresarial armado por Cartes tomou o partido e o obrigou a mudar seus estatutos (para permitir que fosse candidato, já que não tinha o tempo de filiação exigido), lhe impôs um estilo de campanha (o comando de campanha foi paralelo e alheio ao partido) e obteve o resultado esperado, ganhando por ampla margem nas urnas. Como esse esquema empresarial irá se conciliar com um partido acostumado a um funcionamento tradicional clientelista? Alguns esperam que, como em outras ocasiões, setores colorados importantes lhe imponham condições ao governo para obter vantagens econômicas e políticas. Veremos.

Cartes também fez uma campanha atípica. Começou muito antes do período eleitoral por fora do partido, através de uma fundação empresarial e um trabalho com setores jovens, projetando a imagem do Grupo Cartes que reúne mais de vinte empresas Ver a página de divulgação: http://www.grupocartes.com.py/. E conseguiu captar boa parte do voto jovem, daqueles que votaram pela primeira vez, o que pode significar que o coloradismo cartista tem condições de se projetar no futuro.

Definiu uma agenda de governo apropriada a seu perfil empresarial conservador bem no estilo de Sebastián Piñera no Chile, que é sua referência internacional. Segundo Cartes, os problemas sociais do país seriam solucionados com o avanço de negócios empresariais que darão emprego e pagarão salários.

Esse enfoque vem justo no momento em que o país é visto por capitais estrangeiros (brasileiros em primeiro lugar) como um destino para investimentos industriais, a fim de produzir barato para vender no Brasil. A Fiesp vê o Paraguai como um espaço econômico dentro do Mercosul no qual se pode “produzir a preço mais baixo que os produtos importados da China”, devido à energia barata, à proximidade do mercado brasileiro, aos baixos encargos sociais e às modalidades de atração de investimento com isenção fiscal vigentes no país, além do que o produto está isento de impostos à importação por ter origem no Mercosul.

Por uma perspectiva histórica, Cartes concluiria a modernização conservadora iniciada pela ditadura de Stroessner. Foi sob seu governo que o Paraguai mudou o eixo geopolítico que o prendia a Buenos Aires e Inglaterra para se aliar à ditadura brasileira e Estados Unidos. O ditador introduziu o capitalismo no campo estimulando a expansão massiva da fronteira agrícola brasileira da soja no leste do Paraguai, gerando assim excedente de força de trabalho livre. Com a utilização da energia de Itaipu, deveria ter propiciado a industrialização do país captando a mão de obra resultante da expulsão dos camponeses de suas terras. Porém, em vez de promover a industrialização, os governantes e empresários da era Stroessner e seguintes se lançaram preferencialmente aos negócios ilícitos e o “comércio de triangulação” (trazer produtos fabricados na China para vendê-los no Brasil por meio das fronteiras Cidade do Leste-Foz de Iguaçu, Salto del Guairá-Guaíra e Pedro Juan Caballero-Ponta Porã), sem interesse nem necessidade de utilizar a energia abundante. Diante disso, o excedente de mão de obra se dedicou ao comércio informal ou migrou para Buenos Aires e, mais recentemente, para São Paulo, como força de trabalho barata.

Faltava então essa última etapa. Com a linha de 500 kV (viabilizada pelo acordo Lugo-Lula de 2009-2010) e investimentos adicionais em infraestrutura, mais as vantagens de baixos benefícios sociais e níveis tributários, o Paraguai entra como um espaço econômico que disputará com os atuais centros industriais brasileiros e argentinos, nos moldes da “guerra fiscal” que o neoliberalismo provocou entre os estados no Brasil nos anos 1990.

Assim, o projeto anunciado por Cartes seria o ápice da modernização conservadora iniciada por Stroessner nos anos 1970. Mas, que mix de atraso mafioso e modernidade excludente ele tentará ou será capaz de implantar? O empresário Cartes tem um pé em cada canoa. Não se conhece ainda a equação do político Cartes, mas isso dependerá de muitos fatores, inclusive dos interesses que se abrigam dentro de seu partido e do contexto regional e internacional no qual se insere seu quinquênio presidencial.

Enquanto isso, as forças de esquerda estão desafiadas a sair da disputa dentro de seu próprio terreno para buscar a hegemonia na sociedade. Perdeu-se uma oportunidade para isso nesta eleição. Não há por que reincidir no erro. A crise do bipartidarismo tradicional pelo lado do liberalismo abre novas possibilidades que podem ser aproveitadas.

Gustavo Codas é jornalista e economista, mestre em Relações Internacionais