Cultura

Exposição, que está no Memorial da Resistência de São Paulo até 14 de julho, reúne trabalhos artísticos dos presos políticos pela ditadura entre 1969 e 1979

Alipio Freire procura uma instituição pública para abrigar a coleção que está sob sua guarda, para preservar e divulgar a memória da resistência à ditadura militar. “Isso é parte da história do povo brasileiro, da classe trabalhadora brasileira, e é deles”

Alipio Freire ao lado de autorretrato: expressões artísticas da resistência

Alipio Freire ao lado de autorretrato: expressões artísticas da resistência. Foto: Daniel Garcia

Insurreições, exposição das manifestações artísticas dos presos políticos durante a ditadura militar é uma faceta dos tempos de rememorar e contar as lutas do período. Abrigada no antigo prédio do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), hoje Memorial da Resistência de São Paulo, a exposição é o testemunho do tempo da privação de liberdade, da dor da separação e do horror da tortura. São 76 obras distribuídas entre os temas Terror de Estado, Brincadeiras, Cartas, Solidariedade – Ioshia Takaoka e Ateliê de Radha Abramo, Ateliê de Xilogravura  e Rostos e Retratos.

Alipio Freire, jornalista, escritor e artista plástico e também curador e guardião da coleção, percorre os dois corredores em que estão os quadros, as cartas e as peças, explicando e relembrando para quem quiser saber a história de cada uma.  Histórias que Alipio viveu e conhece muito: como militante da Ala Vermelha – dissidência do PCdoB ­–, foi preso em 1969  e ficou confinado até 1974, percorrendo o presídio  Tiradentes e a Penitenciária do Estado. Alipio, nascido na Bahia, foi editor da revista Teoria e Debate e atualmente integra o conselho editorial do jornal Brasil de Fato e da editora Expressão Popular, e preside o Núcleo de Preservação da Memória Política.

A exposição é visitada por grupos de estudantes jovens e o bem-humorado anfitrião não deixa passar: "Os tempos mudaram mesmo, antes essa moçada entrava aqui presa, apanhando pra falar... Agora eles entram e saem, rindo, e nada acontece. Esse mundo tá perdido".

Essa é a 13ª exposição do acervo, que já esteve em outras cidades e atravessou os mares, parando em Portugal, ao lado de trabalhos artísticos de presos pelo regime salazarista. A primeira foi em 1984, instalada na sede da seção paulista da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e marcava os cinco anos da Anistia.

A história dessa coleção começou na cadeia: Alipio passou a juntar todo o material que era produzido pelos presos, há mais de quarenta anos. "Sempre gostei de juntar as coisas e guardar. Depois, conversando com Sérgio Ferro, ele me falou de uma exposição que tinha visto na Alemanha, ou em outro país da Europa, sobre o Holocausto. Falou de uma pilha de sapatos, e aquilo pegou na minha cabeça. Passei  a ter ainda mais cuidado (com esse material). Como eu ganhava muito desenho, porque eu também desenho, fui mandando para casa." Com a contribuição da Rita Sipahi, quem conheceu no Presídio Tiradentes e é sua companheira até hoje, Alipio foi construindo o legado que hoje está em torno de trezentas peças.

São bilhetes trocados entre os presos, desenhos riscados com os mais diversos materiais – nanquim, lápis, canetinhas, giz de cera –, quadros feitos com sucata encontrados nas celas e nos pátios dos presídios, colares, caixas, roupas, rascunhos de livros. Todo esse memorial está em uma mapoteca na casa do jornalista. Em todos esses anos, a coleção é levada de um lado para outro, exposta em parte e preservada com muito cuidado, mas ainda em condições precárias. Alipio procura agora um local adequado para abrigá-la. Um museu, arquivo público, um lugar que tenha mais recursos para preservar e sobretudo divulgar adequadamente a memória de quem resistiu na prisão. "Esse material está comigo porque eu colecionei, mas não me sinto dono dele, não é propriedade. Isso é parte da história do povo brasileiro, da classe trabalhadora brasileira, e é deles. Então o seu lugar não é na minha mão."

Com os debates em torno das histórias resgatadas pela Comissão Nacional da Verdade, as atividades das comissões estaduais e a paulatina abertura de arquivos policiais e governamentais do tempo da ditadura, promovida por governos, pode haver uma sensibilização maior das "autoridades" para preservar esse material.

Sobre a construção da Comissão da Verdade, Alipio lembra que sua efetivação é resultado de um longo processo de luta das famílias dos desaparecidos, dos ex-presos e de todas as pessoas envolvidas com os direitos humanos no Brasil. “É a primeira vez que o Estado cria uma instância para apurar os crimes das elites brasileiras. Acho que temos de levantar material para alimentar a Comissão da Verdade, organizar pesquisas que deem instrumentos para ela trabalhar”, conclui.

A arte dessacralizada

Alipio percorre pacientemente a exposição e explica cada uma das obras. Recordou que havia conversas constantes entre os artistas plásticos que estavam presos, como Sérgio Ferro, Sérgio Sister, Takaoka e ele próprio, sobre dessacralizar a arte. Destacou ainda o trabalho dos presos que não eram artistas plásticos, muitos estimulados pelos companheiros de cela a se expressar com o material que havia disponível.  A seguir algumas obras descritas pelo curador, que podem ser vistas aqui.

O quadro que abre a exposição é de Sérgio Ferro, artista plástico, feito no Presídio Tiradentes em 1971. É uma pintura com tinta acrílica e nanquim sobre cartão. No centro da tela o artista pintou um grande quadrado negro; na parte superior no canto direito, desenhou uma letra vazada sobre pingos de tinta vermelha; e no rodapé da tela há um elemento: uma figura humana no canto direito, com os braços abertos. Alipio explica o significado da letra e da figura. “A figura abaixo foi crivada de balas e lanças (de bambu) amarelas, inspiradas nos zengakurens, movimento japonês contra a instalação do aeroporto de Narita, e explode como se tivesse sido ele que tivesse jogado um coquetel molotov ou uma granada.. E há uma letra do alfabeto hebraico (otsade) que , no tarô, está relacionada à carta da Lua, dos Arcanos Maiores. Eu adoro esse quadro. Ferro chegou na porta da minha cela e disse: 'Alipio, tenho um negócio aqui para você'. E me deu. É lindo.” Essa tela ilustra a capa da revista Teoria e Debate nº 27, de dezembro de 1994.

Na sequência são apresentados dois desenhos de pássaros, feitos por Carlos Takaoka  com guache sobre papel. Alipio destaca a importância desste trabalho por dois motivos: Takaoka fez os desenhos no Deops, durante o período de tortura e interrogatório, e é um dos mais antigos da mostra, de 1969. “O pássaro é símbolo da liberdade. Quem me deu esses pássaros foi a Elza Lobo. Ele (Takaoka)  tinha mandado para as meninas que estavam presas e ficou na parede das celas femininas, que ficavam no fundão (do prédio) naquela época, e a Elza terminou guardando.”

Alipio mostra mais dois desenhos abstratos feitos em dois momentos diferentes pela mesma pessoa: Ângela Rocha, arquiteta e artista plástica, militante do Partido Operário Comunista (POC). Uma composição foi feita com nanquim e lápis de cor em 1967, durante as aulas de Antônio Benetazzo. “Era uma discussão com base no livro do (Wassily) Kandinsky, Ponto e Linha sobre o Plano. Eu gostei tanto do trabalho que ela me deu.”. O desenho ficou guardado com um casal de amigos, não tendo o mesmo destino de outros papéis de Alipio que foram apreendidos pelos agentes do Dops.

A outra composição, com giz de cera, foi feita no Presídio Tiradentes. Alipio relembra as circunstâncias e o encontro com Ângela: “Um dia, em 71, acho, eu no pátio do Presídio Tiradentes recebendo visita, e a Ângela chega presa. Eu sabia que ela havia sido presa e violentamente torturada,  portanto vê-la ali foi uma alegria, a gente se abraçou muito. Poucos dias depois ela me manda esse trabalho  desenhado com lápis de cera. É uma alusão ao desenho anterior. Agora eu posso expor os dois juntos.”

Outro desenho que merece a atenção do jornalista é de José Wilson, preso como militante do PCdoB, que morreu em 1990. O trabalho é um retrato simbólico do julgamento dos militantes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) no Tribunal Militar. “Esse é interessante também, feito por José Wilson, que  não era artista plástico. Você está olhando de dentro da goela de um lobo, vê a língua e os dentes, e a plateia são os olhos. (Dentro da boca do lobo estão)  Jacob Gorender, Sérgio Sister, Valdizar Pinto do Carmo, Aytan Sipahi, irmão da Rita, e o Adilson Citelli. As flechas  significam o número de anos a que cada um foi condenado, e de quebra a gente ainda tem duas mãos de uma coisa parecendo lobisomem ou coisa assim, que são as garras da caterva”, explica Alipio.

Um conjunto de dois quadros com colagens de Alipio e Sérgio Sister representa as experiências na cadeia e da tortura. Sérgio usou adesivos, recortes de jornal com os slogans da ditadura – “Ninguém segura a juventude do Brasil”, “Brasil, ame-o ou deixe-o” –, e também usou fios elétricos e cores fortes, verde, amarelo, azul e vermelho, no trabalho. Já na tela de Alipio está sua visão da cela onde esteve preso com outros companheiros, representada nos materiais usados e na composição. Esse quadro recebeu o nome de RPTP1X3, que significa: RPT – Recolhido no Presídio Tiradentes; P1 – Pavilhão 1; X3 – xadrez 3. Para compor a tela, Alipio usou telas, tampa de caixas, pedaço de Eucatex, interruptor de luz, cabide velho, escova de dentes e um espelho, que tem um significado próprio. “A peça mais interessante pra mim é o espelhinho. Porque nas celas, quando não queríamos que os carcereiros ouvissem nossa conversa, ficávamos na grade. Conversávamos utilizando o alfabeto do surdo-mudo, mas, quando a pessoa estava  na cela ao lado, usávamos um espelhinhos para ver o que o ela estava dizendo.”

As duas telas, segundo Alipio, também são exemplos dos debates que os presos faziam sobre as artes plásticas, questionamentos sobre o suporte da obra – tela ou qualquer material poderia ser usado para tal fim –, quais eram os limites entre pintura e desenho.  Outra coisa que se discutiu muito na época foi a apresentação e a representação. “Apresentação tem vários elementos. Só que, quando você apresenta os elementos nesse contexto, você também representa, uma representação aqui é uma chave de luz, mas são símbolos. São colagens.”

Uma parte da exposição reúne xilogravuras feitas no Presídio Romão Gomes,  conhecido como Barro Branco, em 1976. O conjunto recebeu o nome de PPSP 76, que significa Presos Políticos de São Paulo 76 – essa era a assinatura coletiva das xilogravuras.  O grande mestre da xilogravura na cadeia, segundo Alipio, era Arthur Scavone, militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo), que cumpriu pena no Presídio Tiradentes, na Penitenciária do Estado e no Barro Branco. E mostra um trabalho de Scavone: um retrato de José Duarte, dirigente do PCdoB, que  fora maquinista na Estrada de Ferro Noroeste e liderou várias greves.  Nesse trabalho, Duarte está na locomotiva 418, gritando, com o punho erguido. “A xilogravura no Brasil sempre tem uma tradição de engajamento, crítica social, assumir posições, e essa técnica se presta bem a isso.” As xilogravuras dos presos serviam de propaganda da mobilização, dos maus-tratos na cadeia, e, assim como os demais trabalhos artísticos produzidos nas prisões eram vendidas para ajudar as famílias dos presos e pagar os advogados que faziam as defesas.  “O pessoal construiu uma rede de solidariedade aqui fora, e isso aqui não ia só pro Brasil, ia pro exterior também”, acrescenta Alipio.

Livros e bijuterias
Além das gravuras e desenhos, os manuscritos de livros feitos dentro das prisões, com as respectivas edições impressas, estão expostos. Como o Em Câmara  Lenta, de Renato Tapajós; Ensaio Geral, de Antônio Marcelo; o Milagre do Brasil, de Augusto Boal; História da Ação Popular – da JUC ao PCdoB, de Haroldo Lima e Aldo Arantes; e o Escravismo Colonial, de Jacob Gorender. Sobre este último livro, Alipio conta: “As primeiras anotações foram um curso que Gorender fez pra gente, lá na sala 3, Pavilhão 1, sobre a história política e econômica do Brasil. É todo um estudo sobre o escravismo, e as anotações foram a base para escrever esse livro.”

E, como desfecho da exposição, estão as bijuterias, bolsas, sandálias e peças de crochê, feitas por presos e presas. Alipio aponta um medalhão quadrado feito de couro que era usado para transportar os textos das organizações para o lado de fora. “Ninguém percebia”, diz.

A exposição Insurreições fica aberta ao público até 14 de julho, de terça a domingo, das 10h às 18h (entrada até as 17h30). Grátis.

Evelize Pacheco é editora assistente de Teoria e Debate