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Seja uma reforma por plebiscito ou lei de iniciativa popular. A pressão que vem das ruas põe em causa a natureza do sistema político e o modo de fazer política

A reforma política é a luta pela justa representação, deve propor mudanças estruturais que preveem a inclusão de todos os setores sociais, colocando em dia a soberania popular. Por esse caminho possibilitará a remoção do lixo autoritário ainda tão presente na nossa democracia, o que afasta o risco de a atual democracia vir a ser mais um breve ensaio registrado pela história política do país

Juramento do Salão do Jogo de Péla, marco da Revolução Francesa

Juramento do Salão do Jogo de Péla, marco da Revolução Francesa: reinvenção das instituições representativas continua presente. Reprodução

Não é nada fácil escrever sobre um tema que ganhou centralidade em meio a tantos outros que foram levados às ruas pelas manifestações ocorridas no último mês em várias cidades do país, acontecimentos próximos demais para qualquer análise certeira. Ainda estamos tomados por sentimentos diversos e confusos, ora de euforia, pelas possibilidades de mudanças, ora de incerteza, pelo mesmo motivo. A visibilidade pública que o tema da reforma política ganhou, tornando-se um assunto de preocupação nacional, estendeu o debate a todos os lugares da vida social, agora não é mais assunto para ser discutido apenas por políticos e só pelo mundo acadêmico. Caiu na boca do povo brasileiro, está nas ruas, excitando os corpos em luta e convocando todos para o debate. Em meio à polifonia, as muitas vozes que têm atravessado as ruas em tom dissonante, um sentimento converge para um lugar comum: o país precisa fazer uma reforma do sistema político.

Antes das recentes manifestações populares, a reforma política não fazia parte das preocupações imediatas e emergenciais dos parlamentares (com algumas exceções, sejamos justos); por diversas vezes, foi discutida no Congresso sem que se chegasse a um acordo que possibilitasse a votação. Muitos interesses em jogo dificultaram o alcance de um entendimento comum. Agora, com a pressão popular, ganha um lugar de destaque, com maior visibilidade pública, torna-se um problema em busca de solução imediata, capaz de reverter a insatisfação popular frente à atual política.

Ao longo desses anos em que esteve na agenda do Congresso, a reforma política não foi tratada como assunto para a sociedade pensar, discutir e propor mudanças que de fato promovessem a democratização das regras do jogo político. Esteve ausente da vida dos cidadãos e restrita ao Congresso, que pouco (ou nada) mudou. Entretanto, desde 2004, esteve presente na vida de alguns movimentos sociais que procuraram mobilizar a sociedade em torno desse tema, resultando na construção de uma plataforma para a reforma política com participação popular. Neste ano, o Partido dos Trabalhadores convocou seus militantes para a mobilização e adesão ao tema da reforma política. Tanto o PT (2013) quanto a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política (2011) lançaram projeto de Lei de Iniciativa Popular pela Reforma Política e estão em busca de aproximadamente 1,5 milhão de assinaturas para atender às exigências constitucionais, o que significa um grande desafio diante de um tema pouco visitado pelos anseios cívicos dos brasileiros. Agora, o novo cenário político exige pressa, mudar as regras do jogo é condição para assegurar a boa saúde da democracia.
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As manifestações populares e a política

As recentes manifestações populares retomam a rua e devolvem a ela sua condição de espaço da política. As motivações iniciais deixaram claro que o cidadão tem direito à cidade como um lugar comum a todos, um espaço de produção de vida, e por isso não pode ser privatizado pelo capital como se fosse uma cidade-empresa da qual somos funcionários. A cidade se tornou um espaço-vitrine que expõe os objetos de desejo em que o jogo da sedução opressora impõe a todos a realização por meio do consumo sem limites e infeliz.

Nas ruas, as vozes múltiplas e dissonantes não se precipitaram em fazer consensos nem acordos, mas expressaram, mesmo soando confusas e ambíguas, a recusa ao modelo político vigente que contraria o espírito republicano, esse modelo de governança que prescinde da vontade dos habitantes da cidade. Recusa traduzida na prática pela reação de muitos manifestantes às bandeiras partidárias. É esse sentimento de recusa que põe em evidência a crise das instituições da democracia representativa. Instituições que encenam em um cenário de atores alheios e distanciados dos anseios da população, obstruindo os caminhos da democracia.

As instituições representativas precisam ser reinventadas para estar em consonância com as atuais transformações da realidade social. As tecnologias de informação e comunicação fazem parte da vida ativa dos cidadãos no mundo globalizado, são as redes sociais constituindo-se em espaço da palavra, da opinião e da interação comunicativa, e isso tem de ser levado em conta. Os partidos políticos deixaram de ser espaço de ressonância das vontades populares, contraíram um autismo político e só conseguem representar a si mesmos. O PT, que se originou das lutas dos trabalhadores, é criticado pelos próprios militantes por ter abandonado sua base de luta e se transformado em uma máquina burocrática e eleitoral. Nesse cenário, são as redes sociais que assumiram o papel de agente mobilizador e catalisador dos anseios populares.

Os partidos políticos não foram capazes de atribuir outra racionalidade à disputa política. O PT, em nome da governabilidade, estabeleceu um governo de coalizão, abrindo mão da autonomia política e da democracia interna. Por esse caminho, não fez a diferença, reproduziu as práticas tradicionais e conservadoras do jogo político de alianças. Essa prática se mostrou suicida, anulou as possibilidades do partido de promover mudanças radicais nas atuais estruturas políticas do país.

A crise das instituições representativas, diferentemente do que apontam algumas conclusões apressadas, não significa a falência dessas instituições. Sua concepção e estrutura caíram no anacronismo em decorrência das transformações das relações do poder global e local, que estabeleceram mecanismos jurídico-políticos da nova fase do capitalismo. As formas operacionais predominantes de representação, principalmente aquelas do sistema eleitoral, têm revelado limites e inconsistência em relação às novas exigências postas. Mas, como esclareceram Toni Negri e Michael Hardt em entrevista à revista Novos Estudos (“O que é multidão?”, nº 75, julho, 2006), isso não deve nos levar a buscar a abolição imediata de todas as formas de representação – ou até, em termos práticos, exigir que os esquemas representativos existentes estejam inteiramente de acordo com suas promessas. Somente poderíamos caminhar para além da representação, se isso for um projeto factível, ao fazer pressão nas formas existentes e experimentando novas formas de representação.

A revitalização das instituições representativas passa pelo reconhecimento das mazelas presentes. Entre tantas está a crescente presença do poder econômico nos processos eleitorais, que vem há décadas ocorrendo nos momentos eleitorais brasileiros. Os altos custos das campanhas têm sido uma das fontes da corrupção da administração pública e promovido um sistema de trocas e negociações espúrias que irriga as velhas práticas do nosso passado autoritário.

O alto custo das campanhas vem deixando fora da disputa eleitoral vários setores sociais, que passam a ser sub-representados, acentuando a crise política. O enfrentamento das desigualdades e a inclusão das mulheres, negros, índios, população LGBT, jovens, entre outros, na disputa política criam oportunidades para o surgimento de novos direitos, que serão traduzidos em políticas públicas e estabelecem condições para a elaboração e encaminhamento de um projeto de transformação política capaz de combater a desigualdade social.
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Reforma política é muito mais

A reforma política é a luta pela justa representação, deve propor mudanças estruturais que preveem a inclusão de todos os setores sociais, colocando em dia a soberania popular. Por esse caminho possibilitará a remoção do lixo autoritário ainda tão presente na nossa democracia, o que afasta o risco de a atual democracia vir a ser mais um breve ensaio registrado pela história política do país.

É preciso, no entanto, entender a natureza processual da reforma política, que não se limita a um único momento – são muitos. Tem de ser pensada no plural, seu alcance vai além das mudanças das regras do jogo eleitoral e da reestruturação do sistema partidário, estende-se à regulamentação e democratização dos meios de comunicação, para que todos tenham direito à informação de qualidade e se estabeleçam regras que sociabilizem os veículos de comunicação, concentrados nas mãos da elite brasileira. Busca-se a democratização dos meios de comunicação por intermédio de uma legislação que garanta e estimule a mídia alternativa para que a comunicação e a informação sejam democratizadas.

A reforma política também passa pela democratização e transparência do Poder Judiciário. É preciso uma nova legislação que permita o controle social e a participação da sociedade na escolha daqueles que devem ocupar cargos nessa esfera de poder. Este não pode concentrar poder da forma como tem sido. Tem sido comum à Justiça a prática de legislação, ficando nas mãos dos magistrados muitas das decisões legislativas. Principalmente em situações em que a emergência se tornou a regra, essa intervenção põe em xeque a própria noção de Estado de direito.

A reforma política é muito mais. É a criação dos espaços da democracia direta, que assegura o direito do cidadão de participar da agenda pública e decidir sobre ela, exigir soluções, propor mecanismos institucionais de fiscalização da administração pública e dos mandatos políticos. O fortalecimento e a desburocratização das instituições da democracia direta presente na Constituição de 1988 é que garantem a soberania popular: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Essas instituições têm sido pouco usadas nas decisões da vida política do país. O poder de decidir permanece nas mãos dos parlamentares, diminuindo as chances de ampliar a participação popular. São muitos os entraves burocráticos para que essas instituições da democracia direta se tornem prática usual. Para isso é necessária nova regulamentação, que não apenas remova os entraves burocráticos, mas crie mecanismos que aumentem e assegurem, de fato, a participação direta da população.

A reforma política é a resposta à lacuna normativa do sistema político deixada pela Constituição de 1988, o que garantiu a manutenção e reprodução da cultura autoritária.  Reformar o sistema político é, portanto, o momento para criar outro modo de pensar e fazer política, em que a política não se constitua em mera atividade administrativa do Estado, mas seja derivada das ações compartilhadas de cidadãos inseridos numa realidade dialógica e plural, na qual a liberdade seja a razão da política.

Reformar o sistema político do país é um grande desafio posto a todos nós, é uma oportunidade para que a sociedade tome para si a responsabilidade pelo destino político do país. Seja ela realizada por plebiscito ou pela lei de iniciativa popular. O que já sabemos é que pelos caminhos do Congresso a reforma política foi e tem sido alijada da agenda legislativa. A pressão que vem da multidão nas ruas põe em causa a natureza do sistema político e exige novas institucionalidades e outro modo de fazer política. Entretanto, é preciso saber discernir, em meio a tantas vozes lançadas nas ruas, aquelas que realmente vão em direção às mudanças substantivas que protagonizam a construção de uma sociedade justa e recuperem, de fato, a dignidade da política.

O momento atual exige habilidade política para que não seja perdida uma oportunidade histórica de construir a base radical da democracia. Do contrário, é deixar “o ouro com os bandidos”, e essa é uma aposta que não queremos fazer. E os riscos não são poucos, mas só tem medo quem está preso a um passado que já não tem muito o que dizer sobre o presente novo ou apegado às velhas formas de fazer política.

Mariângela Nascimento é professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia