A hora da política chegou e a soberania popular parece querer acertar as contas com o passado
A hora da política chegou e a soberania popular parece querer acertar as contas com o passado
A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte
No artigo anterior argumentei que as identidades com os movimentos sociais ocorridos em outros países não explicam a especificidade do caso brasileiro. Neste ensaio aprofundarei a hipótese de que parecem existir dois vetores que ajudam a compreender essa singularidade.
O primeiro, destacado por diversos analistas, é a crise da democracia. Existe clara convergência de opiniõesConsultar Altman (2013); Belluzzo (2013); Carta (2013); Chaui (2013); Menezes (2013); Nassif (2013); Stedile (2013); e Werneck Vianna (2013). no sentido de que os protestos refletem o esgotamento do sistema político e eleitoral.Esse ponto é sintetizado por Werneck Vianna (2013) que percebe a “insurgência democrática” como fruto de uma “sociedade que não mais reflete sobre si, que destituiu a política da sua dignidade e converteu os partidos políticos em instrumentos sem vida, máquinas eleitorais especializadas na reprodução política dos seus quadros”. Na mesma perspectiva, Belluzzo (2013) ressalta que o projeto do movimento das ruas “está exposto nas negações, no repúdio ao estranhamento da política enquanto prática dos políticos e de seus partidos”. Existe um abismo entre a Nação e suas as instituições democráticas e a “resposta esperançosa” das inquietações das ruas “depende crucialmente da capacidade de mobilização radicalmente democrática”.
O segundo vetor é a crise da cidadania social percebida pelas lacunas das políticas universais (saúde e educação, por exemplo) e urbanas, que atinge feições críticas nas grandes metrópoles (Maricato, 2013). Esse vetor, relativamente menos privilegiado pelos analistas, transparece na percepção de que os avanços na inclusão pelo consumo não são suficientes. É preciso ir além e promover a inclusão pela cidadania. Os cidadãos querem direitos (e não mercadoria) e serviços públicos de qualidade (e não privados, regidos pelo lucro).
O transporte público, principal alvo dos protestos, nunca foi prioridade. Nos últimos 60 anos o país não contou com política nacional baseada na cooperação federativa e com recursos financeiros compatíveis com as demandas que emergiram da acelerada urbanização ocorrida a partir de meados do século passado.
Nos anos de 1970, em plena ditadura, a população se revoltou contra a má qualidade dos serviços. Os “quebra-quebras” de trens e ônibus forçaram os governos militares a tratar do tema. Mas, nos anos de 1990, o setor deixou novamente de fazer parte da agenda federal. O programa de governo Mãos à Obra, Brasil (Cardoso, 1994), por exemplo, não cita uma única vez a palavra “transporte público”. Após três décadas, o governo federal voltou a investir no setor motivado, especialmente, pelos grandes eventos esportivos.
Os governos estaduais avançaram na privatização em marcha forçada e na ampliação da oferta de transporte de massa a passos de tartaruga. Nos anos de 1990 o BNDES financiou concessões em diversas cidades, bem como a privatização do metrô e dos trens do Rio de Janeiro – exemplo raro no mundo. São Paulo e Rio estão entre as piores metrópoles globais no indicador “habitante por quilômetro de linha de metrô”. Os governos municipais não exercem o papel regulador necessário para disciplinar as empresas particulares. O serviço é ruim, mas as tarifas subiram o dobro da inflação desde 1994.
O MPL teve a astúcia de perceber esse longo cenário de omissão pública e mercantilização para implodir o castelo de cartas que sustenta as políticas para o setor. Essa intuição acabou sendo “o estopim de uma coisa maior: quando catalisou insatisfações, expôs uma enorme fragilidade da atual democracia” (Nassif, 2013).
No caso da saúde, a Constituição da República consagrou o Sistema Único de Saúde (SUS) como público, universal e baseado na cooperação entre entes federativos. Mas, nas últimas décadas, o Parlamento e os três entes federativos não priorizaram investimentos na ampliação da oferta pública de serviços. O SUS surgiu como antítese da política privatista adotada pela ditadura militar, mas a democracia brasileira não foi capaz de barrar a mercantilização do setor.
No caso da educação, apesar dos avanços nas últimas décadas, o Brasil ainda acumula desigualdades e ausências em diversos campos. As causas são múltiplas e estão associadas a aspectos externos e internos à escola. Os impasses da educação nacional também decorrem de omissões históricas do poder Executivo e Legislativo. O Brasil gasta pouco com educação e, após 25 anos, a democracia brasileira ainda não estabeleceu o “regime de cooperação” entre esferas de governo determinado pela Constituição da República.
Em última instância, a vozes difusas “queremos escolas, hospitais, postos de saúde e serviços públicos com padrão Fifa” contestam os dogmas do Estado Mínimo – enraizados no país pela ofensiva neoliberal nos anos de 1990 –, que vendem a ilusão de que bastam políticas focalizadas para o se alcançar o “bem-estar”. Ao mesmo tempo, elas reforçam a visão de que o desenvolvimento requer os mesmos valores do Estado de Bem–Estar Social que foram formalmente inscritos na Carta de 1988. Nesta perspectiva, elas recolocam no centro do debate nacional o conflito redistributivo entre capital e trabalho.
A hora da política chegou e a soberania popular parece querer acertar as contas com o passado. Um quarto de século depois os cidadãos indignados estão perguntando aos poderes Executivo e Legislativo: quando vamos, de fato, cumprir o que reza a Constituição da República?
Se essas hipóteses estiverem corretas, parecem existir identidades entre os propósitos das marchas populares de 1970 e 1980 e os das marchas de junho de 2013 – mesmo considerando-se a radical especificidade de cada momento histórico.
Esse ponto será objeto do próximo artigo.
Referências
ALTMAN. B. As ruas fazem soar alarme para o PT e o governo, Brasil 247. 19/7/2013.
BELLUZZO, L.G. Condenados à liberdade. Carta Capital, 24/06/2013.
CARDOSO, F. H. Mãos à obra, Brasil – Proposta de governo. Brasília: PSDB.
CARTA, M. PT gostou do queijo e caiu na armadilha. Carta Capital, 21/07/2013.
CHAUI, M.H. As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo. Teoria e Debate, Edição 113, Junho/2013.
MARICATO, E. Nossas cidades são bombas socioecológicas. Entrevista a Rose Spina. Teoria e Debate, Edição 115, Agosto/2013.
MENEZES, C. Quem pode virar o jogo político no Brasil? Artigo publicado por Canal Ibase, 16-07-2013.
NASSIF, M.I. Não tenham medo dos jovens. Apenas os escutem. GGN. 18/06/2013.
STEDEILE, J.P. O significado e as perspectivas das mobilizações de rua. Entrevista para o Jornal Brasil de Fato, 24/06/2013
WERNECK VIANNA, L. O movimento da hora presente. O Estado de S. Paulo, 18/06/2013.
Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento