No passado e no presente, as marchas nas ruas cobram democracia e direitos sociais e questionam a relação capital-trabalho
No passado e no presente, as marchas nas ruas cobram democracia e direitos sociais e questionam a relação capital-trabalho
Ainda que cada momento histórico tenha sua especificidade, traçar paralelos entre as manifestações atuais e as dos anos 1970-1980 indica que algumas conquistas destas teriam sido deformadas nos anos posteriores. Essas conquistas voltaram à pauta das ruas agora em 2013
No artigo anterior, argumentei que dois vetores ajudam a compreender as motivações das recentes marchas populares no Brasil: a crise da representação política e os limites da cidadania social.
Mesmo considerando a radical especificidade de cada momento histórico, se essa hipótese estiver correta é possível traçar paralelos entre as marchas atuais e aquelas dos anos 1970-1980. A análise sugere que algumas conquistas das marchas anteriores teriam sido deformadas no período subsequente. Compreender esse processo é importante para que se analise a agenda de desenvolvimento identificada com os movimentos sociais recentes.
O projeto nacional–desenvolvimentista, que predominou entre 1946 e 1964, procurava combinar Estado democrático, industrialização e as reformas de base. Mas foi interrompido pelo golpe militar. Em troca, promoveram a “modernização conservadora” e a industrialização forçada. O bolo cresceu, mas não foi dividido com os perdedores. Os movimentos sociais dos anos 1970 procuravam acertar as contas com os vencedores. Para isso, construíram um amplo projeto de mudança de caráter nacionalista, desenvolvimentista, democrático e igualitário, cuja síntese encontra-se no documento “Esperança e mudança” (PMDB: 1982).
O primeiro paralelo entre as marchas é a questão da democracia. É verdade que se trata de um paralelo frágil, pois naquele momento o objetivo era redemocratizar o país, e hoje a democracia está consolidada. Mesmo assim, observe-se que as marchas atuais questionam a qualidade da democracia conquistada em 1988. Os cidadãos reivindicam o reforço da esfera pública, participação política, prestação de contas pelos governantes e representantes, responsabilidade pública pela qualidade dos serviços, transparência no processo decisório e definição de prioridades que sejam do interesse geral, não do interesse privado (Fleury: 2013).
O segundo paralelo está relacionado aos direitos sociais. O processo de luta política pela restauração da democracia abriu espaço para a reforma do sistema de proteção social, conservador e injusto, legado pelo regime militar do pós-64. O “Esperança e mudança” apresenta ampla agenda de reformas sociais (trabalhista, sindical, agrária, urbana, previdenciária, sanitária, educacional, habitacional, do saneamento, do transporte público e do desenvolvimento regional). Em consonância com esse projeto, a Constituição de 1988 consagrou um sistema de proteção inspirado nos valores dos regimes de Estado de Bem–Estar Social (direitos, igualdade, universalidade e seguridade). A experiência da social-democracia europeia serviu de inspiração para os nossos reformistas. Hoje, ao exigirem serviços públicos de qualidade (educação, saúde e transporte), os cidadãos cobram os mesmos valores do Estado de Bem-Estar Social que foram conquistados pelas marchas anteriores. Em última instância, contestam os dogmas do Estado mínimo, que, hegemônicos em escala global, foram entronizados no Brasil nos anos 1990.
O terceiro paralelo é que ambos os movimentos recolocam o conflito redistributivo entre capital e trabalho no centro do debate nacional. O projeto reformista dos anos 1970-1980 explicitava que a sustentação material da democracia e dos direitos sociais dependia da formulação de “nova estratégia econômica e de desenvolvimento social”, cujo objetivo era promover a redistribuição da riqueza social. As marchas atuais recolocam o conflito redistributivo na ordem do dia. Para que “a cidadania, não o poder econômico, venha em primeiro lugar”, será preciso arbitrar entre a pressão das ruas e a pressão dos mercados. A captura de fundos públicos pelos diversos agentes econômicos é uma das formas pelas quais essa disputa se expressa. Gasto social versus isenções e despesas financeiras? Para qual lado vai pender a balança? Esse é um dos pontos críticos da conjuntura atual.
No próximo ensaio, analisarei as conquistas sociais da Carta de 1988. Em seguida, tentarei responder à seguinte questão: o que ocorreu entre 1988 e 2013?
Referências
FLEURY, S. “Estado, democracia e desenvolvimento”. Palestra apresentada no Seminário Desafios e Oportunidades para o Desenvolvimento Brasileiro: Aspectos Sociais – Unicamp/ Plataforma Política Social, em 8 de Maio 2013 (em fase de edição para publicação).
PMDB. “Esperança e mudança: uma proposta de governo para o Brasil". Revista do PMDB, ano II, n. 4. Rio de Janeiro: Fundação Pedroso Horta, 1982.
Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento.