Sociedade

A contraofensiva das elites começou na transição democrática, quando enterraram as eleições diretas

O movimento da elite contra os avanços do povo continua na sua volta ao centro do governo. Esse movimento pode ser percebido em duas frentes: no Executivo, com a paralisia das políticas sociais, e no Legislativo, com a demora em regulamentar os direitos sociais estabelecidos na Constituição

Desde 1984 as forças que sustentavam a utopia acumularam derrotas

Desde 1984 as forças que sustentavam a utopia acumularam derrotas. Foto: Arquivo/ABr

“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria.”
Ulysses Guimarães, 5/10/1988

Nos artigos anteriores, procurou-se sublinhar alguns paralelos entre as marchas atuais e aquelas das décadas de 1970-1980. Argumentou-se que as conquistas dos movimentos anteriores estão sendo cobradas agora. O que teria ocorrido entre 1988 e 2013? Sustentou-se a ideia de que, por diversas vezes, a soberania popular ganhou, mas não levou.

Neste ensaio argumenta-se que a contraofensiva das elites começou em plena transição democrática. Assim, como imediatamente antes do golpe de 1964, nessa quadra houve ameaça real ao status quo que as elites brasileiras têm conseguido preservar para si, secularmente. Repetindo o passado, as classes dirigentes tiraram “o povo da história”.

As esperanças por um país mais civilizado perseguidas pelas marchas populares de 1970-1980 começaram a esvair-se na derrota da emenda parlamentar visando às eleições diretas para a Presidência da República em 1984. Desse momento em diante, as forças que sustentavam essa utopia foram acumulando sucessivas derrotas.

As elites brasileiras retomaram o fôlego, enterraram a emenda da eleição direta, voltaram ao governo com o novo pacto conservador de transição. As primeiras contramarchas ocorreram entre 1987 e 1989 e foram impelidas pelas forças retrógradas do pacto político da transição, representadas, sobretudo, pelo Partido da Frente Liberal (PFL). As reações às mudanças ganharam vigor a partir de 1987, quando ocorreu a fragmentação da Aliança Democrática; e as forças que haviam servido de base de apoio político para o regime militar, e integravam o pacto da transição, voltaram ao centro do poder.

Comandadas pelo presidente da República, José Sarney, ex-presidente da Aliança da Renovação Nacional (Arena), elas iniciam as contramarchas rumo à desconstrução do texto sobre a Ordem Social, que acabara de sair das gráficas do Congresso Nacional.

Essas contramarchas ocorreram em duas frentes distintas. A primeira manifestou-se diretamente por ação do Executivo Federal, nos rumos da política social federal. O caso mais paradigmático foi a reforma agrária. Dois meses após a instalação do governo da Nova República, iniciou-se a flagelação que levaria ao seu sepultamento, concluído em janeiro de 1989, com a extinção do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, instituído quatro anos antes.

A segunda frente em que se evidenciaram as contramarchas manifestou-se pelos movimentos que visavam desfigurar ou impedir a vigência dos novos direitos constitucionais. Entre as manobras encenadas com esse propósito, destacam-se a forte oposição à tramitação da agenda reformista na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988); o chamado “desmonte orçamentário e burocrático”, implantado imediatamente após a promulgação da Constituição de 1988; e as tentativas de desfigurar os direitos sociais – levadas a cabo no processo de regulamentação constitucional complementar (1988-1989).

Esses movimentos refletiam claramente o modo de agir da velha base política da ditadura. O objetivo era desfigurar ou retardar a efetivação dos novos direitos constitucionais na etapa da regulamentação complementar, entre outubro de 1988 e março de 1990. Ao longo de toda essa etapa, a tese de que o país seria “ingovernável” com a nova Constituição foi revigorada e serviu de amálgama dos argumentos utilizados pelos segmentos retrógrados, cujos privilégios haviam sido arranhados por ela. Capitaneadas pela Presidência da República, essas forças políticas escancaram o antagonismo das suas posições ante o texto construído democraticamente.

Numa derradeira tentativa de preservar seus interesses, traçaram uma rota de ardis, visando impedir a consumação dos novos direitos sociais. Isso foi feito, onde e como pareceu necessário, nos termos e ritmos legais e regimentais. Nesse arsenal de manobras, destaca-se o intencional descumprimento dos prazos constitucionais, com o objetivo de postergar, ganhar tempo e “empurrar com a barriga” até o próximo governo, que tomaria posse em março de 1990.

Mas isso foi apenas o começo. O movimento de desconstrução das novas bases formais da proteção social ganhou vigor a partir de 1990, quando as elites acataram sem resistências o projeto liberal hegemônico em escala global.

Passado o susto da perda de privilégios, o projeto inspirado nos valores do Estado de Bem-Estar Social foi progressivamente tensionado de 1990 em diante. Abriu-se um novo ciclo de contrarreformas antagônicas à cidadania social recém-conquistada.

Esse ponto será objeto dos próximos ensaios.

Referências

BARBOSA, A.F. Novo desenvolvimentismo? São Paulo: FPA. Teoria e Debate, edição 113, 20/6/2013.

FAGNANI, E. Política Social no Brasil (1964-2002): entre a Cidadania e a Caridade. Tese de doutorado. Campinas: Instituto de Economia da Unicamp, 2005.

Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento.