Posicionamento do governo brasileiro pelo reconhecimento da soberania palestina reforça políticas internacionais contra as ações ilegais cometidas por Israel
Posicionamento do governo brasileiro pelo reconhecimento da soberania palestina reforça políticas internacionais contra as ações ilegais cometidas por Israel
Pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff na abertura da Assembleia-Geral da ONU e visita de Lula à Palestina abriram portas para uma política palestina ativa e multilateral frente à resistência israelense e dos EUA. O apoio dos países do sul é fundamental para garantir a justiça e a liberdade do povo palestino
Dilma Rousseff na ONU pediu o reconhecimento do Estado palestino. Foto: Ricardo Stuckert/ABr
Em setembro de 2012, a presidenta Dilma Rousseff abriu a Assembleia-Geral da ONU com um pedido de reconhecimento do Estado da Palestina como membro da ONU e insistiu na necessidade de uma Palestina livre e soberana. Quase um ano depois, está claro que o "momento brasileiro" da Palestina – a opção de uma política "altiva, ativa e multilateral" – não apenas levou ao reconhecimento de um Estado palestino como observador não membro, mas também abriu várias portas para reforçar o que foi alcançado e complementar o que faltou ao longo do caminho.
Recuperando a iniciativa
O sucesso-chave da iniciativa para o reconhecimento do Estado palestino nas fronteiras de 1967 foi o fato de que, pela primeira vez desde o processo de Oslo em 1993, a liderança palestina seguiu a própria proposta diplomática. O insumo para isso veio durante o último processo de negociações iniciado em Annapolis (EUA) e do relatório intitulado "Recuperando a iniciativa", do Grupo de Estudos Estratégicos da Palestina. Husam Zomlot, autoridade graduada da Fatah e coordenador do grupo, explicou a iniciativa:
Durante vinte anos estivemos jogando no campo alheio, segundo suas regras, seus torcedores e até seu árbitro. [...] nesse paradigma, o fim de ilegalidades como a ocupação militar, o despovoamento e a colonização, segregação, bloqueios e políticas de apartheid não são obrigações incondicionais, como deveria ser o caso sob a lei internacional, mas considerados gestos israelenses de boa vontade e compromissos dolorosos. [...] O objetivo de controlar e manter o processo é exatamente evitar o resultado [...] não importa o que se faça dentro desse esquema, ele não se destina a desafiar o status quo, mas a acomodá-lo.1
Uma oportunidade de escapar desse campo de jogo foi dada depois da visita do presidente Lula à Palestina. Após o reconhecimento da Palestina como Estado por vários países da América do Sul, foi lançada uma campanha global para recrutar o apoio de cada país membro da ONU. Diante dos 138 membros da Assembleia-Geral que apoiaram o reconhecimento, a oposição norte-americana e israelense só conseguiu retardar ou modificar o projeto, mas não detê-lo.
Isso permitiu que a Palestina situasse as negociações mediadas pelos Estados Unidos, incluindo as atuais, como apenas uma de muitas estratégias políticas. Além disso, a vitória do multilateralismo estabeleceu um precedente que, diante da guerra civil na Síria e de outras crises atuais no Oriente Médio, pode ser de vital importância: a Assembleia-Geral pode atuar com sucesso em questões cruciais para a paz mundial quando o Conselho de Segurança falha.
Como em toda iniciativa política, a proposta de reconhecimento do Estado teve êxitos, mas também pontos fracos, e é exatamente a partir daí que foi possível dar os passos seguintes.
Em primeiro lugar, para que o reconhecimento do Estado palestino seja mais que uma vitória simbólica, é preciso superar o problema diante do qual todas as resoluções da ONU sobre a Palestina falharam até agora: elas são ineficazes, a menos que se faça algo para implementá-las. Não faltam motivos urgentes para agir: mesmo pelos padrões israelenses, o atual impulso de colonização e limpeza étnica é extraordinário. Desde o início de agosto, Israel anunciou cerca de 6 mil novas unidades de assentamento, enquanto aumentaram as demolições de residências. Mais de 50 mil palestinos estão ameaçados de limpeza étnica, e pessoas são mortas quase diariamente.
Em segundo lugar, a campanha pelo reconhecimento do Estado não conseguiu abordar a tarefa considerada principal mesmo pelo relatório "Recuperando a iniciativa": substituir os dois paradigmas predominantes de discurso sobre a Palestina por um conceito mais realista e eficaz. Um deles coloca a questão da Palestina como de "construção de Estado", cujo obstáculo parece ser sua incapacidade de construir e dirigir um Estado, e não a falta de terra onde construir um Estado soberano. O outro aborda o problema comum de "fazer a paz" entre dois parceiros equivalentes envolvidos em uma disputa de fronteiras. "Esse é um discurso errado, porque não existem duas partes iguais no conflito. Há uma potência ocupante e uma população reprimida e fisicamente dispersa, à qual não se permite sequer o reconhecimento jurídico de sua identidade."2
Há anos a sociedade civil e os órgãos oficiais palestinos insistem em um instrumento-chave para operacionalizar as resoluções da ONU sobre os direitos territoriais palestinos: parar as transações financeiras e econômicas com o empreendimento ilegal de assentamento israelense. O argumento jurídico baseado na responsabilidade do Estado e das empresas é internacionalmente sancionado e politicamente reforçado pelo reconhecimento do Estado palestino com suas fronteiras de 1967.
A opinião de 2004 do Tribunal Internacional de Justiça sobre o Muro não apenas declarou sua construção ilegal como lembrou aos países sua responsabilidade de não reconhecer, ajudar ou assistir a construção do Muro e dos assentamentos ou na manutenção da situação criada por ele. No ano passado, a ONU aprovou os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, que recomenda que os Estados não deem apoio público, como contratos, verbas ou serviços, a companhias que violem os direitos humanos, especialmente em áreas de conflito.
Até hoje Israel continua impunemente a construção do muro de cimento de 8 metros de altura na Cisjordânia ocupada, o qual, com os assentamentos e as zonas militares, confisca cerca de 50% da Cisjordânia. Entretanto, vários atores da ONU desenvolveram a argumentação jurídica para responsabilizar os envolvidos nas violações do direito internacional por Israel. O Relator Especial da ONU sobre Direitos Humanos nos Territórios Palestinos Ocupados (TPO), Richard Falk, apresentou um relatório no ano passado à Assembleia-Geral em que enfoca a cumplicidade de corporações no empreendimento de assentamento israelense e pediu que essas companhias sejam excluídas de contratos e outros benefícios3. Em março de 2013, a delegação brasileira apoiou ativamente a resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU que aprovou o relatório da missão de investigação do organismo sobre o empreendimento de assentamento israelense, que mais uma vez tratou extensamente da cumplicidade de empresas e pediu a ação do Estado.4
Hoje a União Europeia está nas manchetes por aparentemente tomar uma medida histórica, apesar de sua banalidade: apresentou a Israel diretrizes detalhadas para seu novo ciclo de financiamento a pesquisa e desenvolvimento de bilhões de euros5, que impedem que projetos parcial ou totalmente implementados nos TPO, empresas localizadas nos TPO ou instituições financeiras com operações nos TPO sejam financiados pela União Europeia. Em todo o espectro político palestino, a decisão foi saudada como um passo importante. A autoridade da OLP e ex-negociador palestino Hanan Ashrawi, por exemplo, elogiou o avanço da UE nas declarações e na condenação "para decisões políticas efetivas e medidas concretas que constituem uma mudança qualitativa que terá um impacto positivo nas probabilidades de paz"6. Além disso, sob a pressão de seus próprios cidadãos, países europeus começaram a instruir ou aconselhar empresas a que se retirem de projetos nos assentamentos. Segundo as últimas notícias, pelo menos cinco deles deverão orientar entidades privadas e públicas sobre os riscos jurídicos e econômicos de negociar com Israel.
O impacto potencial é enorme: se for aplicado e promovido no plano global, isso poderá minar seriamente a sustentabilidade do projeto de assentamentos. Portanto, a sociedade civil e os órgãos oficiais palestinos estão atualmente envolvidos em esforços em diversos níveis para convencer a UE a manter sua posição diante da chantagem de Israel e das divisões internas na união. Sem o apoio de outras partes do mundo, esse poderá ser um caminho difícil de seguir.
O Brasil, que liderou a proposta de manter a soberania palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza ocupadas, encontra-se em uma posição em que mina ou apoia essa medida vital. Nestes meses, o Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio está destinando R$ 70 milhões a um ciclo de financiamento conjunto brasileiro-israelense em que pelo menos 30% das empresas participantes estão direta ou indiretamente ajudando nos assentamentos, ou se beneficiando deles, ou mesmo localizadas nos TPO. Se o Brasil instruirá ou não seus ministérios e o BNDES para segurar o dinheiro até que se encontre uma solução que respeite a lei internacional e os direitos humanos poderá ser um ponto decisivo. Se alianças como IBSA e Mercosul assumirem a questão nos próximos meses, poderão dar o insumo decisivo para garantir que, pela primeira vez, uma resolução da ONU sobre a Palestina tenha um impacto concreto nas políticas palestinas e israelenses.
Finalmente, operacionalizar o princípio de não reconhecimento e não assistência para defender a soberania nacional e o respeito aos direitos humanos ofereceria uma ferramenta prática para a diplomacia, assim como para outros casos de ocupação e colonização, como nas Malvinas e nos outros territórios que não são autogovernados.
Reconstruindo a Palestina
Desde a Conferência Mundial contra o Racismo em Durban, em 2001, as organizações palestinas afirmaram que o paradigma da ocupação não basta para descrever a realidade vivida por sua população. Elas afirmam que o muro construído ilegalmente por Israel na Cisjordânia, combinado com o que já cerca a Faixa de Gaza desde os anos 1990, é um "muro de apartheid". Ele cria enclaves isolados para os palestinos em aproximadamente 12% de sua terra natal – cerca de 1% a menos do que os sul-africanos supremacistas se dispunham a oferecer como bantustões para a população negra. O projeto de assentamento destinado a modificar a demografia da terra ocupada e explorar recursos e mão de obra nativos não é nada menos que a reformulação do colonialismo de assentamentos, a meio caminho entre o modelo da Argélia e as políticas adotadas nas Américas. Muitos dos 2 milhões de cidadãos palestinos de Israel estão ameaçados de desalojamento para ser instalados em bolsões de presença palestina, talvez para serem convenientemente trocados por terra na Cisjordânia, no tipo de negociação que Israel almeja: a definição das fronteiras dos bantustões, em vez de um Estado palestino. Cerca de 22 leis que criam um sistema de duas camadas de direitos, em que os não judeus têm acesso limitado ou nenhum a terra, oportunidades de trabalho, serviços estatais e processo legal, assim como a negação do direito dos refugiados palestinos a retornar, complementam medidas de infraestrutura, militares e administrativas para sustentar essa versão israelense do apartheid e do colonialismo de assentamentos.
Dentro do quadro da ONU, foi o acadêmico de Direito sul-africano e então Relator Especial sobre Direitos Humanos nos TPO, John Dugard, quem pôs a questão em debate em seu relatório de 2007:
“Quais são as consequências jurídicas de um regime de ocupação prolongada, com características de colonialismo e apartheid, para a população ocupada, o poder ocupante e terceiros Estados? Sugere-se que esta questão poderia ser adequadamente colocada no Tribunal Internacional de Justiça para uma opinião consultiva.”7
De lá para cá, o Conselho Sul-Africano de Pesquisa em Ciências Humanas, órgão governamental envolvido em um estudo de 15 meses conduzido por acadêmicos sul-africanos, palestinos, israelenses e internacionais, denunciou em seu relatório de 302 páginas a presença de um regime de apartheid e colonialismo nos TPO8. Mais tarde, o Tribunal Russell, uma iniciativa da sociedade civil com personalidades políticas e acadêmicos de Direito de todo o mundo, definiu o âmbito do regime de apartheid israelense como aplicável a todo o território sob controle de Israel e a todos os palestinos, seja nos TPO, seja em Israel, seja vivendo como refugiados fora de sua terra natal9. Os últimos avanços jurídicos foram realizados, em maio, com a Conferência de Direito Internacional realizada na Universidade de Birzeit (na Palestina ocupada) para discutir a reformulação do discurso legal em benefício da desfragmentação do discurso e das estruturas políticas palestinas e o fim da impunidade israelense. Salientando a importância estratégica dos conceitos de colonialismo (de assentamentos), transferência forçada de população (limpeza étnica), apartheid e autodeterminação, os participantes da conferência mais uma vez afirmaram que hoje, quase dez anos depois da decisão do Tribunal Internacional de Justiça sobre o Muro, uma iniciativa para convocar o mais elevado órgão judicial do mundo sobre a questão do colonialismo e apartheid israelenses poderá ser o caminho certo a seguir10.
Sem causar surpresa, os principais promotores e signatários da Convenção sobre a Supressão e Punição do Crime do Apartheid e da Declaração sobre a Concessão de Independência a Países e Populações Coloniais, da ONU, são os países que sabem melhor o que significam o colonialismo e o apartheid – o sul global.
Reafirmando o paradigma anticolonial
Diante do atual cenário político, incluindo um processo de paz renovado que começou com o "árbitro", o secretário de Estado norte-americano John Kerry, declarando que 85% dos assentamentos provavelmente serão anexados a Israel11, a escalada israelense de construção de assentamentos e a relutância palestina em participar, a questão principal é: com quem reforçar as conquistas atuais e as necessidades da estratégia política palestina?
Jamal Juma, coordenador da Campanha Parem o Muro, declara:
O maior risco é que a Autoridade Nacional Palestina seja apanhada entre uma posição de fato dos EUA, que legitima os assentamentos, e uma Europa fragmentada e hesitante. Confiamos no interesse comum com o sul global e as economias emergentes para garantir que a Palestina e o Oriente Médio não continuem para sempre sob a hegemonia dos EUA. Existe uma incompatibilidade intrínseca entre o Estado que se transformou em símbolo global do colonialismo e racismo e as aspirações de um sul global democrático e autoconfiante.
A ancoragem simbólica no sul já foi feita em 2005 com o pedido de boicote, desinvestimento e sanções (BDS)12. Graças ao apoio de movimentos sociais, partidos políticos, igrejas, intelectuais e artistas de todo o mundo, o movimento BDS hoje se tornou quase irreversivelmente uma parte integrante da política e da solidariedade palestinas. Ele desenvolveu campanhas de desinvestimento que desviaram bilhões de dólares, bloquearam megacontratos e aumentaram a consciência de inúmeras pessoas. Israel criou leis que proíbem seus próprios cidadãos de promover o boicote e gastou milhões em forças-tarefa antiboicote e relatórios estratégicos. O BDS mostrou que tem o poder de fazer o establishment israelense se preocupar com a sustentabilidade da situação atual.
A escolha do Brasil como sede do Fórum Social Mundial Palestina Livre, realizado em novembro de 2012 em Porto Alegre, trouxe o centro da solidariedade internacional fisicamente para o sul e fez uma clara afirmação de que há necessidade de um aprofundamento do "momento brasileiro da Palestina". Isso não teria sido possível sem a avassaladora solidariedade e o comprometimento dos movimentos sociais do Brasil, que se ofereceram para sediar o evento e conseguiram reunir todos os setores progressistas do Brasil em torno da Palestina, em um fórum rico e de grande participação. O apoio constante a campanhas como contra os acordos militares com Israel e o livre-comércio entre o Mercosul e Israel mostra que o Fórum Social Mundial Palestina Livre está tendo um impacto duradouro. Isso gera confiança de que o Brasil continuará ao lado da população palestina e nos ajudará a pôr fim às políticas israelenses de ocupação, apartheid e colonialismo.
O caminho para a liberdade e a justiça na Palestina passa quase inevitavelmente pelo sul global.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Maren Mantovani é coordenadora de Relações Internacionais da Parem o Muro (Stop the Wall)