Nacional

Projeto sobre políticas públicas sobre drogas altera inúmeras medidas existentes para tratar de dependentes de drogas

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

A adoção da internação involuntária faz o usuário perder seu protagonismo

A adoção da internação involuntária faz o usuário perder seu protagonismo. Foto: Ricardo Moraes/Reuters

O Projeto de Lei da Câmara, PLC 37/2013PLC nº 37/20131que “altera o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, define as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e trata do financiamento das políticas sobre drogas” foi aprovado  naquela Casa sob o nº 7663/102. Os senhores senadores prestariam um bom serviço à Nação se rejeitassem os artigos oportunistas contidos na proposta!

A intenção deste texto é promover reflexões sobre as reais mudanças que se propõe realizar na legislação brasileira nas políticas públicas sobre drogas e uma avaliação delas, conforme aprovadas em projeto pela Câmara dos Deputados e caso sejam aprovadas pelo Senado Federal e sancionado pela presidenta Dilma. É necessário entender o que se pretende com esse projeto: se for criar condições de atenção aos usuários e dependentes de drogas, em que medida seus dispositivos fazem avançar em relação aos direitos fundamentais, especialmente ao direito à liberdade, à atenção à saúde, ao acesso aos demais direitos sociais e à autonomia dos usuários e familiares perante os procedimentos assistenciais/terapêuticos propostos; ou se é para atender apenas a um nicho de mercado – despreparado e com forte vinculação religiosa – que sofreu importante redução no acesso a recursos públicos por exigência da cidadania, após a votação da Lei Antimanicomial Brasileira (Lei Federal nº 10.216 de 6/4/2001). Faltam elementos para compreender, apoiar ou rejeitar o que se quer institucionalizar em relação à oferta de serviços de saúde e à gestão das políticas públicas sobre drogas no Brasil. Questionam-se, ainda, o método e os mecanismos adotados para supervalorizar práticas questionáveis de remissão da dependência ou uso de drogas.

O projeto altera doze leis federais, reformulando, modificando e substituindo uma série de dispositivos em relação à gestão da Política para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas, do Ministério da Saúde, para acomodar as comunidades terapêuticas e os serviços de internação involuntária, financiá-los como prestadores de serviço de “acolhimento” e “internação” a usuários e dependentes de drogas e assegurar-lhes condições de receita de forma diferenciada e pacífica em relação à legislação vigente. O programa de governo sobre drogas é amplamente intersetorial e, necessariamente, pactuado de forma regular e tripartite e com atribuições definidas para as três esferas de governo (União, estados e municípios). O projeto intervém de forma a impedir esse diálogo intergovernamental e intersetorial.

Com ele, a Câmara dos Deputados dá origem a um verdadeiro “programa de governo” sobre a política de drogas para o país de forma detalhada e de difícil alteração, caso não se adeque à realidade ou não atinja os objetivos propostos. Além de um conjunto de leis, modifica decretos e portarias vigentes para mudar as regras do sistema atual de atenção e para financiar não as políticas públicas integrais sobre drogas que o próprio projeto sugere, mas as comunidades terapêuticas e os serviços de internação involuntária (privados). Que regras e mecanismos da legislação vigente o projeto pretende instituir ou modificar?

Alterações no sistema de políticas sobre drogas

A Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad): o artigo 3º do PL acrescenta, nessa lei, a definição do Sisnad como “o conjunto ordenado de princípios, regras, critérios e recursos materiais e humanos que envolvem as políticas, planos, programas, ações e projetos sobre drogas, incluindo-se nele, por adesão, os Sistemas de Políticas Públicas sobre Drogas dos Estados, Distrito Federal e Municípios” e a sua atuação “em articulação com o Sistema Único de Saúde (SUS) e com o Sistema Único de Assistência Social (Suas)”.

Se o Sisnad tem por finalidade “a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas e a repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas”, não se trata de criar um sistema apartado dos órgãos que têm por atribuição desenvolver essas competências, quais sejam: Ministério da Justiça, Casa Civil da Presidência da República, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Ministério da Fazenda, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Ministério da Saúde, Ministério da Educação e, principalmente, outras pastas de políticas sociais que atuam sob a coordenação do Comitê Gestor intersetorial da política (Decreto nº 7.179 de 20 de maio de 2010), cuja execução cabe a órgãos dos governos estaduais, distrital e municipais. Não se trata de “articular” um sistema (Sisnad) com os Ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social, como prevê o projeto de lei, pois estes, e não somente, são grandes sistemas com competências exclusivas (sistemas únicos!) para desenvolver as principais ações para o cumprimento das finalidades que o projeto prevê para o Sisnad.

Cada ministério possui conhecimento, texto e discurso, instrumentos e métodos específicos para o alcance dos objetivos propostos. Como sistema (paralelo, concorrente ou articulado com), o Sisnad é inócuo. Tanto o SUS como o SUAS são “sistemas únicos” em suas respectivas atribuições. Além disso, a reinserção social não se realiza apenas com os Ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social.
O novo dispositivo proposto para modificar a lei, artigo 7º do projeto, define a composição do Sisnad. Em seu inciso V, inclui as “comunidades terapêuticas acolhedoras” para realizar o “acolhimento do usuário ou dependente de drogas”!

Nesse artigo existem vários problemas:

  • O projeto de lei é pleno em vício de origem em sua propositura. Não compete ao Poder Legislativo (Câmara dos Deputados, no caso) o estabelecimento de programas de governo, especialmente com o grau de detalhe como ocorre nesse caso, ao especificar, em lei, o tipo de fornecedor de uma ação ao Estado, que poderá se mostrar, em futuro próximo, como já vem se mostrando, inadequado para os fins propostos. No afã de obrigar os municípios ou o poder público em geral a se utilizar das comunidades terapêuticas para realizar o “acolhimento do usuário ou dependente de drogas”, as “exclui” como prestadoras de serviços do setor saúde para incluí-las logo à frente... no sistema, excluindo do SUS sua obrigação de gerir (gestor único, diga-se) todas as ações e serviços públicos e complementares de saúde.
  • “Acolher” não é função apenas das comunidades terapêuticas. Essa é uma função de todos os serviços públicos ou privados – conveniados ou contratados – que atendem os usuários do SUS. Se o sentido de “acolher” na proposta do projeto de lei é “hospedar e cuidar” (e internar, embora o projeto proíba a “internação” nas comunidades terapêuticas), os usuários dependentes ou em uso abusivo de drogas deveriam se beneficiar, também, dos serviços das “moradias transitórias”, que vêm sendo implantadas nos municípios sob a supervisão dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) ou das equipes de saúde mental, que nem foram citadas no projeto de lei. Como também não foram mencionados outros dispositivos da rede de cuidados oficial que, efetivamente, vem atendendo essa população e apresentando resultados efetivos em vários aspectos, em rede ambulatorial e em hospitais gerais. Poderia ter reafirmado a importância dos hospitais gerais para aqueles que necessitem de internação, que, normalmente, não ultrapassam 20% dos casos de dependentes ou em uso abusivo de drogas. Nestes serviços, cuja finalidade primordial é a redução de danos e, nem sempre, a abstinência absoluta e a qualquer custo, observa-se que há maior aceitação, confiança e satisfação na convivência entre os usuários, os serviços.
  • As moradias transitórias, quase sempre abertas e, em alguns casos, autogeridas, são definidas como ponto de cuidado nas redes de atenção em saúde mental, inclusive para as pessoas dependentes ou em uso abusivo de drogas. Ou seja, a atenção à saúde, nesse caso, é uma rede municipal ou regional de serviços de saúde integral (inciso VII do art. 30 da Constituição), organizada por um ou mais municípios de forma pactuada/consorciada, regionalmente, e formada por Unidades Básicas de Saúde, Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasfs 1, 2 e 3), Consultórios de Rua, por equipes de Atenção Domiciliar,  CAPS AD I, II e III, Centros de Referência de Especialidades, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), por hospitais e pelas Casas de Acolhimento Transitório (CATs) – casas de passagem/transitórias/moradias assistidas –, do SUS.
  • Como propõe o projeto de lei, a composição do Sisnad é estranha, inserindo as comunidades terapêuticas (incisos V e VI), diretamente no sistema. Não seriam, como outros serviços privados de saúde, prestadoras de serviços? É como se fossem os mais importantes e resolutivos serviços de toda a rede de atenção da política sobre drogas, desconhecendo o papel e a importância do conjunto de serviços que compõem uma rede de atenção, já existente em vários municípios brasileiros. O projeto de lei privilegia e define financiamento e vantagens tributárias para um dos pontos de cuidado – a comunidade terapêutica – sem evidências científicas de que esse tratamento, em regime de internação (e não há como negar essa condição), seja mais eficaz do que o atendimento ambulatorial público em rede de cuidados. Parece-nos inadequado que exista um Sistema de Atenção, coordenado pela União, que inclua serviços municipais, diretamente (inciso III), atropelando as entidades representativas das demais esferas de governo estadual e municipal no ordenamento dos serviços e das redes de atenção à saúde a esses usuários, como o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e os respectivos Conselhos de Saúde.
  • Embora esteja previsto no projeto de lei que tais comunidades terapêuticas não tenham fins lucrativos (§3º do artigo 7º), sabemos que esses serviços são rentáveis em muitos aspectos para seus dirigentes ou terceiros e favorecem distorções e desvios, como fluxo financeiro questionável, enriquecimento ilícito, alta frequência de isolamento e maus-tratos aos usuários e seus familiares, exploração econômica das famílias, violência física e psicológica e indução à crença de que, com fé e disciplina, os usuários conseguem se “curar” da dependência das drogas. Diferentemente da abordagem com base em evidência científica e na redução de danos, as comunidades terapêuticas incutem a fé religiosa, a culpa e o moralismo para induzir à eliminação radical do uso, normalmente, com metodologias positivistas e onde a “disciplina” significa a punição ou castigo pela prática de ato “delituoso” ou pelas “recaídas”.
  • A inclusão privilegiada das comunidades terapêuticas no sistema de políticas sobre drogas, com transferência da competência pública a estabelecimentos religiosos, não encontra respaldo constitucional nem é passível de previsão orçamentária, porque fere a laicidade do Estado e a garantia de liberdade religiosa do cidadão (inciso VI do artigo 5° da Constituição Federal): “(...) é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

E, ainda, o artigo 19, no qual “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

Mais uma vez, autor e relator do projeto de lei se utilizaram de todas as possibilidades legislativas para viabilizar a inclusão “automática” das comunidades terapêuticas na rede de atenção às pessoas dependentes ou usuárias de drogas.

As modificações apresentadas no artigo 8º da lei – com seis novos artigos – são para estabelecer as competências da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios em relação ao Sinad; definir os objetivos do Plano Nacional de Políticas sobre Drogas; definir os objetivos dos conselhos de políticas sobre drogas, constituídos por estados, Distrito Federal e municípios; estabelecer o tempo de mandato para os membros dos conselhos e os requisitos necessários à condição de conselheiro de políticas sobre drogas.
As mudanças propostas no artigo 17 da lei estabelecem atribuições à União em relação ao sistema de informação das políticas sobre drogas e muda o enfoque do objetivo das informações da repressão ao tráfico ilícito para a informação, avaliação e gestão das políticas sobre drogas.

O projeto propõe, em seu artigo 19-A, instituir a Semana Nacional de Políticas sobre Drogas, a ser comemorada, anualmente, na quarta semana de junho, e define as ações a serem desenvolvidas no período. No entanto, o Brasil realiza há anos o evento e, em 2013, ocorreu a 15ª Semana Nacional de Políticas sobre Drogas. Mais uma vez a proposta exacerba em repetições e consolidações fora do âmbito de suas competências.

Ao artigo 22 da lei propõe acrescentar os incisos VII a X para tratar da capacitação técnica para os profissionais, da observância do plano individual de atendimento e da orientação ao usuário ou dependente de drogas sobre as consequências lesivas do seu uso. Ainda, no mesmo artigo, dos princípios e diretrizes das atividades de atenção e reinserção social do usuário e do dependente de drogas e seus familiares, o projeto de lei propõe que as licitações de obras públicas que gerem mais de trinta postos de trabalho deverão prever, nos contratos, que 3% do total de vagas seja destinado à reinserção econômica de pessoas atendidas pelas políticas sobre drogas.

O artigo 23 da lei, caso o projeto seja aprovado, será acrescido de três artigos que dispõem sobre a rede de atenção à saúde do usuário ou dependente de drogas de forma articulada com serviços de assistência social e com ações preventivas para toda a população, dentre outros. Esses artigos preveem o atendimento integral, por equipe multidisciplinar com elaboração de Plano de Atendimento Individual, em rede de atenção. Prevê duas formas de internação: a “internação voluntária” e a “internação involuntária, que se dará sem o consentimento do dependente, a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na absoluta falta deste, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sisnad, exceto de servidores da área de segurança pública, que constate a existência de motivos que justifiquem a medida”. O projeto estabelece, ainda, os conceitos e os procedimentos para os dois tipos de internação. Proíbe qualquer tipo de internação nas comunidades terapêuticas acolhedoras (?) e especifica os serviços de atenção à saúde: equipe multidisciplinar, Plano Individual de Atendimento (PIA) com participação dos familiares e projeto terapêutico individual.

Ocorre, no entanto, que é da natureza das comunidades terapêuticas que o atendimento seja em regime de afastamento da pessoa de seu ciclo de convivência social. Ou seja, o atendimento inclui a reclusão em ambiente típico e em período determinado. Não é, definitivamente, um atendimento ambulatorial.

Práticas sociais normativas e de exclusão uma vez instauradas ganham lógica em si mesmas. Dessa forma, uma vez internado um usuário de álcool e drogas de forma involuntária, ele fica sujeito a novas internações da mesma natureza. Porque o procedimento perde o significado de cuidado e proteção e passa a ser uma resposta estereotipada ao comportamento desviante do usuário de drogas.

(...) Desde 2003 a política em construção para usuários de álcool e drogas é referenciada na Reforma Psiquiátrica e as ações têm como pressuposto a garantia de protagonismo dos usuários da rede frente ao próprio tratamento. Isso implica voluntariedade, compreensão da complexidade do fenômeno de uso de drogas, garantia dos direitos civis dos usuários e, principalmente, fortalecimento de uma face protetora do Estado. A adoção de uma política pautada na internação involuntária é uma declaração explícita de que, aos olhos do Estado, usuários de drogas estão sujeitos a perder o protagonismo da própria vida a partir de um limite dificílimo de ser definido. Essa dificuldade (a partir de quando o usuário de drogas deixa de ser responsável pelos próprios atos?) tende a definir critérios próprios que não obedecem a uma lógica técnica, mas remetem à lógica de exclusão social.

(...) Assim, por trás da adoção de uma política de internação involuntária em massa para usuários de drogas não está apenas a diretriz de uma política de atenção. A dimensão das implicações do fenômeno aponta para uma decisão não apenas de qual política de saúde devemos adotar, mas qual sociedade queremos construir.3

E ainda:

(...) as pessoas em internação involuntária devem ter o direito de recorrer a um tribunal para que seja decidida rapidamente a legalidade da privação de liberdade. Os casos judicialmente autorizados devem ser periodicamente revisados para determinar a necessidade da continuação da internação. A experiência internacional demonstra que a reabilitação e a reintegração de usuários de drogas passam muito mais por intervenções que respeitem os direitos humanos dos usuários e sejam adequadas a suas necessidades sociais e de saúde do que por sua segregação em centros de tratamento4.

O artigo 26 especifica as características do acolhimento do usuário ou dependente de drogas e estabelece que as comunidades terapêuticas acolhedoras “não se caracterizam como equipamento de saúde”. No entanto, funcionarão como um dos pontos da Rede de Atenção à Saúde, na medida em que se exige a presença de equipes multiprofissionais da área da saúde e seus usuários terão “prioridade absoluta” na utilização da rede de atendimento do SUS para a realização da “avaliação médica prévia” para o posterior acolhimento pelas comunidades terapêuticas. Com isso, o PL a inclui como uma referência para o atendimento inicial – porta de entrada – para as comunidades terapêuticas. Ora, se os usuários dessas comunidades não podem ter comprometimento biológico e psicológico de natureza grave, como prevê o projeto, por que a prioridade absoluta de atendimento prevista no projeto, em detrimento dos usuários ou dependentes que possuem prioridade clínica e  são atendidos pelo SUS?

Foram acrescidos novos parágrafos ao artigo 33 para a redução das penas previstas na lei nos casos de não reincidência e de o usuário não integrar organizações criminosas, considerando-se as circunstâncias do fato e a quantidade de droga apreendida, e o aumento para os casos de exercício de comando individual ou coletivo de organização criminosa.

Sobre o aumento de pena, citamos trecho da Carta de Brasília em Defesa da Razão e da Vida, que afirma5:

Mesmo em suas versões mais brandas, o proibicionismo infringe garantias fundamentais previstas na Constituição da República, corrompe todas as esferas da sociedade, impede a pesquisa, interdita o debate e intoxica o pensamento coletivo. A tentativa de voltar a criminalizar usuários e aumentar penas relacionadas ao tráfico de drogas é um desastre na contramão do que ocorre em diversos países da América e Europa, contribuindo para aumentar ainda mais o super encarceramento e a criminalização da pobreza. A exemplo das Supremas Cortes da Argentina e da Colômbia, é preciso que o Supremo Tribunal Federal declare com urgência a inconstitucionalidade das regras criminalizadoras da posse de drogas ilícitas para uso pessoal. Em última instância, legalizar, regulamentar e taxar todas as drogas, priorizando a redução de riscos e danos, anistiando infratores de crimes não violentos e investindo em emprego, educação, saúde, moradia, cultura e esporte são as únicas medidas capazes de acabar efetivamente com o tráfico, com a violência e com as mortes de nossos jovens”.

O artigo 60, sobre a apreensão ou sequestro de bens, direitos ou valores nos casos em que haja suspeita de que sejam produto do crime ou constituam proveito dos crimes previstos na lei, passa a ter nova redação para simplificar o procedimento.

O artigo 61, com nova redação, especifica os procedimentos em relação aos bens, direitos e valores apreendidos. Os recursos originados em leilão, bem como outros valores, serão destinados ao Fundo Nacional de Políticas sobre Drogas (Funad).

O artigo 62 estabelece a possibilidade de os órgãos de polícia judiciária, militar e rodoviária fazer uso dos bens, direitos e valores apreendidos, sob sua responsabilidade e com o objetivo de sua conservação, mediante autorização judicial e especifica, em nova redação, as regras de concessão e uso dos mesmos.

O artigo 63, que trata da sentença do juiz sobre os bens apreendidos ou sequestrados, recebe nova redação para definir sobre a perda do produto, bem, direito ou valor em favor da União; sobre o levantamento de valores depositados em conta remunerada; e sua liberação, para que sejam revertidos ao Funad.

Conforme nova redação do artigo 64, em caso de aprovação do PL, todo produto ou recursos da apreensão ou sequestro de bens, direitos ou valores, nos casos em que haja suspeita de que sejam provenientes do crime ou constituam proveito dos crimes previstos na lei, serão destinados ao Funad, que poderá firmar convênio com os estados e o Distrito Federal para a liberação e destinação de 80% dos recursos arrecadados para a execução de programas relacionados às drogas.

O novo artigo 65-A é para autorizar pessoas físicas e jurídicas a deduzir até 30% das parcelas do imposto sobre a renda no caso de doações ou patrocínios na construção e manutenção de instituições de atenção a usuários de drogas.

O novo artigo 67-A estabelece que as entidades que receberem recursos públicos para a execução de políticas sobre drogas deverão garantir acesso à fiscalização pelos órgãos competentes.

O artigo 72 recebe nova redação quanto ao encerramento do processo criminal e à determinação, pelo juiz, da destruição das amostras guardadas para contraprova e os procedimentos necessários para isso.

Embora tenha havido avanços na política de drogas com a entrada em vigor da Lei nº 11.343/2006 e o autor do Projeto de Lei nº 7663/2010 e o relator tenham proposto um grande número de alterações, os maiores problemas em relação a sua aplicação não foram sequer mencionados. Quais sejam, priorizar a repressão, ao invés da prevenção e do cuidado, e não definir critérios para estabelecer a diferença entre o usuário, o pequeno traficante e o traficante de drogas, cujo resultado foi um aumento avassalador de detentos que cumpriam pena por tráfico de drogas entre 2005 e 2011, segundo informações do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Enquanto o aumento como um todo da população carcerária passou de 294 mil para 514 mil (1,7 vez), a população com delitos com base na Lei de Tóxicos saltou de 32 mil para 125 mil (quatro vezes). Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dão conta de que 65% das prisões de mulheres estão relacionadas aos delitos previstos na Lei de Tóxicos, tornando-se a primeira causa de encarceramento feminino. Entre os homens, o tráfico é a segunda maior causa, com 26% do total da população carcerária6.

Leis que tratam de recursos também são alteradas

A Lei nº 7.560 de 19 de dezembro de 1986, que cria o Fundo de Prevenção, Recuperação e de Combate às Drogas de Abuso, dispõe sobre os bens apreendidos e adquiridos com produtos de tráfico ilícito de drogas ou atividades correlatas, e dá outras providências. O PL propõe alteração também nessa lei. O artigo 3º passa a ter nova redação para autorizar qualquer contribuinte (a lei atual permite apenas às pessoas jurídicas) que efetuar doações aos fundos de políticas sobre drogas, nas três esferas de governo, a deduzi-las do Imposto de Renda nos limites e condições que especifica. Ou seja, define os percentuais máximos para as doações, conforme a condição do contribuinte e as restrições às doações.

Acrescenta do 3º-A ao 3º-I artigos para dispor sobre: opções de doação e formas de dedução; autorização de doações em espécie; obrigação de emitir recibos dos órgãos que administram as contas dos fundos nacional, distrital, estaduais e municipais e as condições de fazê-lo; doações de bens e as obrigações do doador; prazo de manutenção dos documentos que comprovam as deduções perante os órgãos de fiscalização; obrigação de denunciar dos órgãos responsáveis pela administração das contas do fundo, caso este não seja implementado; obrigações dos conselhos de políticas sobre drogas; e sobre a obrigação do Ministério Público de acompanhar a fiscalização da aplicação dos incentivos fiscais (deduções do IR).

O artigo 5º recebe nova redação para redefinir os critérios, as condições e a destinação dos recursos do Funad. Observados os limites mínimo de 20% e máximo de 40%, serão destinados à Polícia Federal e às polícias dos estados e do Distrito Federal, responsáveis pela apreensão de bem de valor econômico em decorrência do tráfico de drogas de abuso ou utilizado de qualquer forma em atividades ilícitas de produção ou comercialização de drogas abusivas, ou, ainda, que haja sido adquirido com recursos provenientes do referido tráfico e perdido em favor da União.

A Lei nº 9.250 de 26 de dezembro de 1995, que altera a legislação do Imposto de Renda das Pessoas Físicas e dá outras providências, em seu artigo 12 autoriza as deduções do IR, com nova redação, e passa a incluir a autorização de dedução das contribuições feitas aos fundos de políticas sobre drogas, tal como ocorre nas deduções feitas aos fundos controlados por conselhos – nacional, estaduais e municipais – do idoso e dos direitos da criança e do adolescente. As deduções incluem, também, as doações e patrocínios relacionados à atenção aos usuários de drogas, desde que os projetos sejam aprovados previamente pelo respectivo conselho estadual. Impõe o limite de 6% ao montante das deduções, em relação ao imposto devido.

Em relação à Lei nº 9.532 de 10 de dezembro de 1997, que altera a legislação tributária federal e dá outras providências, o projeto dá nova redação ao artigo 5º para limitar a 4% do Imposto de Renda devido as deduções relativas aos incentivos fiscais e as doações e patrocínios no apoio a projetos aprovados pelos conselhos estaduais relacionados à atenção aos usuários de drogas, quando considerados isoladamente.

A Lei nº 8.981 de 20 de janeiro de 1995, que altera a legislação tributária federal e dá outras providências, é modificada na alínea “a” do § 3º do artigo 37, para autorizar à pessoa jurídica, a inclusão de dedução das doações e patrocínios no apoio a projetos aprovados relacionados à atenção a usuários de drogas, na determinação do saldo do imposto a pagar ou a ser compensado.

Sobre as leis de inserção social

A lei que dispõe sobre a criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial e dá outras providências, Lei nº 8.315 de 23 de dezembro de 1991, tem seu artigo 1º, acrescido do § 2º para autorizar a oferta de vagas nos programas de formação profissional rural do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) aos usuários do Sisnad por meio de instrumentos de cooperação celebrados entre os operadores do Senar e os gestores responsáveis pela prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas.

A Lei nº 8.706 de 14 de setembro de 1993, que dispõe sobre a criação do Serviço Social do Transporte (Sest) e do Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat), tem seu artigo 3º acrescido do § 2º para autorizar a oferta de vagas nos programas de formação profissional do Senat aos usuários do Sisnad, por meio de instrumentos de cooperação celebrados entre os operadores do Senat e os gestores locais responsáveis pela prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas.

Ao Estatuto da Criança e do Adolescente acrescenta o artigo 53-A, para obrigar as instituições de ensino, clubes e agremiações recreativas e de estabelecimentos congêneres a assegurar medidas de conscientização, prevenção e enfrentamento ao uso ou dependência de drogas ilícitas.

Na lei que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, é acrescentado o inciso IX, em seu artigo 12,  para constar que aos estabelecimentos de ensino compete a incumbência de promover ambiente escolar seguro, adotando estratégias de prevenção e enfrentamento ao uso ou dependência de drogas.

O Código de Trânsito Brasileiro passa a ter em seu artigo 306 o acréscimo do § 4º, que autoriza o emprego de qualquer aparelho homologado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) para determinar alteração psicomotora em razão da influência de droga que leve à dependência para subsidiar a aplicação das penas de detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

O Decreto-Lei nº 4.048, de 22 de janeiro de 1942, que cria o Serviço Nacional de Aprendizagem dos Industriários (Senai), em seu artigo 2º passa a vigorar acrescido do § 3º para autorizar a oferta de vagas nos programas de formação profissional do Senai aos usuários do Sisnad, por meio de instrumentos de cooperação celebrados entre os operadores do Senai e órgãos e entidades públicos locais responsáveis pela política de drogas.

O Decreto-Lei nº 8.621 de 10 de janeiro de 1946, que dispõe sobre a criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial e dá outras providências, passa a vigorar com o acréscimo do § 3º, o qual autoriza a oferta de vagas nos programas de formação profissional do Senac aos usuários do Sisnad por meio de instrumentos de cooperação celebrados entre os operadores do Senac e os gestores locais responsáveis pela prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas.

Ao Decreto-Lei nº 5.452 de 1º de maio de 1943, que dispõe sobre a Consolidação das Leis do Trabalho, o PL introduz o § 3º no artigo 429, que autoriza a oferta de vagas a aprendizes a adolescentes usuários do Sisnad por meio de instrumentos de cooperação celebrados entre os estabelecimentos e os gestores locais responsáveis pela prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas.

E mais...

Além das modificações citadas nas leis vigentes, o projeto altera grande parte de toda a regulamentação do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (ver nota).

Esse debate está longe de ser concluído. Nem debatemos sobre as manifestações do uso indevido e da dependência de drogas nas diferentes classes sociais no Brasil, ou seja, uso e consequências. Em que medida a internação involuntária se choca com a autonomia e a liberdade em cada classe social?

Sobre isso, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) já estabeleceram que a atenção e o tratamento devem estar de acordo com os princípios da ética do cuidado em saúde e respeitar a autonomia e a dignidade individuais.

Em 2012 a ONU se posicionou contra centros de detenção/tratamento compulsórios, rejeitando a privação da liberdade de forma arbitrária como uma violação das normas internacionais de direitos humanos. Conforme os tratados internacionais de direitos humanos, a detenção e privação de liberdade de qualquer pessoa exigem garantias processuais.

Conceição Aparecida Pereira Rezende é psicóloga, especialista em Saúde Pública e em Direito Sanitário, ex-secretária municipal de Saúde de Betim (MG), coordenadora do Setorial Nacional de Saúde do PT