O Brasil, na década de 1990, entra na era da globalização e vê esgotado o Estado Nacional Desenvolvimentista
O Brasil, na década de 1990, entra na era da globalização e vê esgotado o Estado Nacional Desenvolvimentista
A classe política remontou a coalizão que sustenta o poder conservador no país, a economia entrou passivamente no projeto neoliberal e os movimentos sociais foram exauridos. Daí, os problemas crônicos do subdesenvolvimento econômico e social foram agravados.
Nos anos 1980, o Brasil seguiu rota inversa do paradigma neoliberal. Fomos salvos pelo momento político. A agenda de mudanças das ruas visava a acertar contas com a ditadura e não havia solo fértil para germinar a contraofensiva dos mercados desregulados.
No entanto, no início da década de 1990, se forma “o grande consenso favorável às políticas de ajuste e às reformas propugnadas pelo Consenso de Washington”, como explica José Luis Fiori. No plano interno, além do esgotamento do Estado Nacional Desenvolvimentista, assiste-se à remontagem da tradicional coalizão que tem sustentado o poder conservador no Brasil. Depois dos sobressaltos vividos pela campanha pelas eleições diretas (1983) e da quase vitória de Lula (1989), essa forças políticas se rearticularam em torno das candidaturas de Fernando Collor de Mello (1989) e, posteriormente, de Fernando Henrique Cardoso (1994 e 1998).
Em busca do poder vitalício, a classe política novamente demonstrou notável capacidade de preservar o status quo social, adaptando-se às circunstâncias da conjuntura para representar os interesses das forças que detêm o poder hegemônico (econômico, político, midiático). Essa mimetização explica como políticos identificados com a ditadura e outros identificados com o projeto reformista democrático das décadas de 1970-1980 passaram a ser base de sustentação do antagônico projeto neoliberal.
A política deixou de cultivar projetos ambiciosos de transformação social e de tutelar a economia para conter o ímpeto desagregador do mercado. A esfera pública foi sistematicamente esvaziada, aprofundando-se a submissão da sociedade civil, do sistema político e do Estado aos interesses dos mercados globais desregulados.
O período é marcado pelo esgotamento do movimento social que lutou contra a ditadura. A crise do mercado de trabalho pôs os sindicatos na defensiva e minou a crescente organização da classe trabalhadora, que se ampliava desde o final dos anos de 1970.
Essa trilha caminhava na direção oposta à dos que clamavam nos movimentos populares das décadas de 1970-1980: introdução da prática da democracia participativa a ser efetivada pelos partidos políticos, afirma Marilena Chaui. “Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como mediadores institucionais de suas demandas”. A autora atribui ao neoliberalismo o peso maior pelo quase desaparecimento dessas conquistas da cena política.
No campo econômico, diversos autores sustentam ter havido uma opção “passiva” pelo modelo liberal. As elites dirigentes foram conquistadas pela convicção de que “não há outro caminho possível”, segundo Fiori. O argumento corrente à época (“there is no alternative”) foi relembrado por Roberto Schwarz em artigo recente. A partir dali, nossos governos abriram mão das possibilidades de exercício de política macroeconômica mais ativa, como afirmam, entre outros, Carlos Alonso Barbosa de Oliveira e Jorge Mattoso.
A economia também seguiu a rota oposta do que pediam as vozes das ruas das décadas de 1970-1980 (ver artigo Paralelos entre 1988 e 2013 desta série). O Plano Real teve êxito na estabilização da moeda. Não obstante, esse resultado positivo foi obtido com custos sociais e econômicos elevados. As bases materiais e financeiras do Estado foram minadas em consequência das privatizações e do endividamento crescente. A selvagem abertura financeira e comercial expôs a indústria à competição desigual que provocou internacionalização e destruição das cadeias produtivas de setores estratégicos. Os problemas crônicos do subdesenvolvimento econômico e social foram agravados.
O ajuste macroeconômico, ao combinar abertura comercial e valorização do câmbio, desequilibrou a balança de pagamentos e ampliou a vulnerabilidade externa. A “solução” de curto prazo passava pela atração de capital especulativo para acumular reservas. Para isso, foram praticados juros internos “obscenos”. Nos períodos de crise internacional (México, Ásia e Rússia), a taxa de juros básicos da economia subiu para patamares superiores a 40% ao ano.
As opções monetária e cambial provocaram desorganização das contas fiscais dos três entes federativos, limitando as possibilidades do investimento e do gasto social, em função da crescente necessidade de gerar superávits fiscais para pagar encargos financeiros. O endividamento público dobrou em oito anos (de 30% para 60% do PIB, entre 1994 e 2002). O aumento das despesas com juros (superior a 8% do PIB em muitos anos) motivou elevação da carga tributária promovida entre 1995 e 2002 (de 25% para 34% do PIB).
O ajuste macroeconômico e as reformas liberalizantes geraram estagnação e ampliação da crise social e do trabalho. A renda per capita ficou estagnada, o desemprego atingiu 13% em 2002 e houve forte destruição de postos de trabalho formais, conforme Mattoso. A participação relativa do trabalho assalariado “com carteira assinada” despencou de 59% para 45%, entre 1989 e 1999; a distribuição da renda do trabalho manteve-se praticamente inalterada, segundo Paulo Baltar; ocorreu uma “deterioração ponderável” da distribuição entre lucros e renda do trabalho (renda funcional), em favor do primeiro, segundo Cláudio Salvadori Dedecca; e a mobilidade social foi interrompida, segundo ainda Waldir Quadros.
O endividamento público limitou o gasto social e abriu espaços para que o poder econômico capturasse parcela expressiva dos fundos públicos que financiavam os direitos sociais conquistados em 1988. A maior pressão do pagamento das despesas financeiras sobre o orçamento estreitava as margens do financiamento dos gastos sociais. Observe-se que, entre 1996 e 2003, a participação do gasto social federal na despesa total efetiva do governo declinou 10 pontos percentuais (de 60% para 50%), enquanto a participação das despesas financeiras cresceu 16 pontos (de 17% para 33%)(Castro, J.; Ribeiro J.A e Carvalho,A. 2008).
Movimento semelhante ocorreu no âmbito dos governos estaduais e municipais. A política econômica, depois de provocar substancial elevação do endividamento desses entes federativos, impôs severo programa de renegociação de dívidas e regras de gestão fiscal “responsável”. Esses fatos também tiveram repercussões nos rumos das políticas sociais, na medida em que, a partir de 1993, de forma correta, estados e municípios assumiram responsabilidades crescentes nas áreas da saúde, educação fundamental e assistência social.
No campo da cidadania social, o projeto neoliberal exigia a eliminação do capítulo sobre a “Ordem Social” da Constituição da República. Isso também caminhava na rota oposta do que pediam as vozes das ruas das décadas de 1970-1980. O Estado mínimo, cerne da agenda liberalizante, era incompatível com os valores do Estado de Bem-Estar: seguro social versus seguridade social; focalização versus universalização; assistencialismo versus direitos; privatização versus prestação estatal direta dos serviços; desregulação e contratação flexível versus direitos trabalhistas e sindicais.
É dessa perspectiva que poderemos perceber a força das ideias que procuram impor a “focalização” como a única política social possível para o Brasil. Essa alternativa ganhou impulso no contexto das mudanças ocorridas a partir do acordo com o FMI, no final de 1998. Programas focalizados, vistos como “estratégica única” para alcançar o “bem-estar”, passaram a se contrapor às políticas universais. Essa suposta opção pelos pobres ilude os incautos que não percebem que o objetivo central é promover ajuste fiscal. Programas de transferência de renda são muito mais baratos que políticas universais (0,5% do PIB, contra 7% do PIB, no caso da Previdência, por exemplo).
Além do ajuste fiscal, as políticas focalizadas como “estratégia única” abrem as portas para a privatização dos serviços sociais básicos. A ideologia prega que ao Estado cabe somente cuidar dos “pobres” eleitos pelas agências internacionais (quem recebe até US$ 2 por dia). Os demais precisam comprar serviços sociais no mercado.
Esses parâmetros mais gerais influenciaram os rumos da política social entre 1990 e 2002. É com esse pano de fundo que poderemos compreender o retrocesso dos direitos trabalhistas e da previdência social; o abandono da reforma agrária; o avanço da mercantilização das políticas sociais (saneamento, transporte público, saúde, previdência e educação superior); a ausência de política nacional de transporte público, habitação popular e saneamento; o esvaziamento do pacto federativo; as restrições ao gasto social, pela captura dos fundos públicos pelo poder econômico (DRU, seguridade social, encargos financeiros, isenções tributárias). É verdade que foram feitos avanços institucionais nas áreas da saúde, educação fundamental e assistência social, não obstante sistematicamente limitados pela política macroeconômica.
A análise realizada até o momento – que será aprofundada nos artigos seguintes – permite afirmar que o projeto neoliberal dos anos de 1990 explica, em grande medida, o “mal-estar” que emergiu dos protestos populares de 2013. Em última instância, esses movimentos estão questionando a qualidade da democracia e da cidadania social formalmente conquistadas pelas marchas das décadas de 1970-1980 e aviltadas posteriormente.
Esta perspectiva conflita com a visão do economista André Lara Resende. Analisando as razões dos protestos populares, o autor isenta de responsabilidade o governo do qual foi colaborador. Para ele “desde a estabilização do processo inflacionário crônico, houve grandes avanços nas condições econômicas de vida dos brasileiros”. Assim, o “mal-estar contemporâneo” deve-se ao projeto de Estado Nacional de Desenvolvimento formulado no século passado que teria sido recuperado pelos governos do Partido dos Trabalhadores.
Nos próximos dois artigos, serão apresentados dados adicionais que confrontam autoenganos dessa natureza.
Referências
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Eduardo Fagnani é doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit) da Unicamp. É ainda coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento e membro do Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo.