Sociedade

A comoção causada pela denúncia do MP contra o PCC se atenua e levanta-se a hipótese de que ações dos Black Blocs em São Paulo teriam apoio da organização

Todo ano temos eventos cujo ciclo é parecido. Primeiro vem a notícia sobre um  crime ou falha no sistema de segurança pública. Em seguida, alguns demagogos propõem apressadamente mudanças, como diminuição da idade penal ou aumento das penas. Depois, o assunto sai de pauta, substituído por outro tema “quente”. Neste momento: a violência dos Black Blocs e a denúncia do Ministério Público paulista contra o PCC. E os órgãos de segurança estão sem rumo no enfrentamento dos dois problemas

Black Blocs e PCC: órgãos de segurança estão sem rumo para enfrentá-los

Black Blocs e PCC: órgãos de segurança estão sem rumo para enfrentá-los. Foto: Alex Brito/Agência Estado

O discurso sobre a segurança pública no Brasil sempre se alimentou das crises, normalmente provocadas por um crime bárbaro, mas isolado. Uma falsa crise ocorreu quando cinco membros da família Pesseghini foram assinados em casa, e a suspeita caiu sobre o filho de 13 anos, que teria matado todos e depois se suicidado. A imprensa chegou a levantar algumas tragédias similares e ensaiou uma discussão sobre uma epidemia de casos semelhantes. Que provou ser falsa, porque em um dos exemplos, o de Diná Vieira da Silva e seus quatro filhos, a perícia descobriu que a causa pode ter sido um vazamento de gás. Além dessa falha no rol de casos, esse tipo de crime não é incomum. Existem inúmeros registros similares na historiografia policial. Principalmente episódios em que pais de família matam filhos, mulher e se suicidam depois. Portanto, nada de epidemia. O tema perdeu impacto, e os debates também morreram.

As verdadeiras crises duram mais tempo. Todo ano temos eventos cujo ciclo é parecido. Primeiro vem a notícia, ou uma série delas, sobre um crime ou falha no sistema de segurança pública. Depois alguns demagogos se apossam do assunto e propõem apressadamente mudanças, normalmente bobagens como diminuição da idade penal ou aumento das penas. E por último o assunto sai de pauta, substituído por algum outro tema “quente”. Nesse momento vivemos duas crises simultâneas. A violência dos Black Blocs em algumas capitais brasileiras e a denúncia do Ministério Público paulista contra o Primeiro Comando da Capital (PCC).

O primeiro tema é interessante porque revela que em menos de seis meses ocorreu um curioso vai e vem na opinião pública. De início, com a repressão violenta e estabanada nas primeiras manifestações, a Polícia Militar seria a culpada de tudo, tanto que ganhou novo fôlego o discurso de desmilitarização da segurança. Depois a culpa recaiu sobre os Black Blocs, suas táticas violentas (realçadas pelo quase linchamento de um coronel) e o transtorno que causam à população toda vez que saem as ruas. Agora, com a morte de um adolescente pela PM, a culpa volta a cair no colo da instituição. Enquanto escrevo (manhã do dia 30/10) já é visível que a próxima onda vai levar a culpa de novo para os Black Blocs, pois foi levantada a hipótese de que as ações deles em São Paulo teriam tido apoio do PCC. Se essa hipótese for confirmada, o status dos mascarados iria de arruaceiros para quadrilheiros. Outra consequência dessa gangorra é que os arruaceiros podem acabar dando mais prestígio para a Polícia Militar, seus principais opositores.

Como podemos ver, a sociedade vai a reboque dessas flutuações de humor. E nesse zigue-zague caminha a opinião pública, que Monteiro Lobato preferia chamar de “opinião que se publica”.

Enquanto isso a comoção causada pela denúncia do Ministério Público contra o Primeiro Comando vai se atenuando. O espaço no noticiário já é menor e não existe novo round à vista. A não ser que haja uma reviravolta e descubram realmente um link entre as manifestações violentas e a organização criminosa. Aí o status deles seria rebaixado. De crime organizado para bando de baderneiros.

<--break->A denúncia contra o PCC entrou na pauta da mídia porque mostra seu funcionamento e revela o atrevimento dos criminosos. Não que isso seja novidade. Todos que acompanham o assunto alertam sobre o aumento do poder da organização criminosa, que não é a única a atuar nos presídios brasileiros, mas certamente é a maior e mais estruturada. Em vários estados existem histórias de gangues que controlam o dia a dia dos presos. Algumas delas também têm presença fora da cadeia (Comando Vermelho, Terceiro Comando etc.), mas nenhuma possui o grau de organização e controle da facção criminosa paulista.

A forma como o governo de São Paulo e a imprensa lidaram com o PCC variou muito durante seus dez anos de existência. Primeiro como uma gangue de cadeia. Depois passaram a ser vistos como mais uma associação de presos, igual a várias que existem pelo mundo. No início da década passada a organização já tinha uma forte presença no sistema penitenciário e liderou uma rebelião que atingiu 28 presídios. Aí governo e mídia acordaram, colocando o PCC na posição de inimigo público número um. Em 2004 e 2005 o alerta vermelho sumiu, e o grupo abandonou as manchetes.

No ano seguinte ocorre a grande crise. Rebelião simultânea em 78 presídios, assassinato de policiais, bombas em prédios públicos e o sequestro de um jornalista. Então, o Primeiro Comando voltou às manchetes e aos discursos, permanecendo por quase dois anos. A partir de 2008 o noticiário sobre a organização foi escasseando e ela sumiu do discurso de segurança. Até 2012 a fala do governo minimizava o problema. O discurso oficial era que a situação estava sob controle.

Isso contribuiu para a inércia e ajudou a postura de distanciamento, que manteve o problema longe da imprensa. O assunto só voltou à pauta a partir de meados de 2012, quando ocorreu a guerra surda entre setores do PCC, Rota e grupos de extermínio. Nos últimos dois meses o que chamou novamente atenção da mídia, e por tabela do governo, foi a denúncia do Ministério Público.

Isso, como mencionamos, não tem grandes novidades. A estrutura da gangue e suas lideranças já eram conhecidas, bem como a maneira como se organiza seu império. Prova disso é que a maior parte das conversas gravadas que sustentam a denúncia é antiga, com mais de dois anos. Afora algumas imprecisões provocadas pela pressa, o maior problema foi trazer a público algumas falas que não são nada além de propaganda do PCC. A mais chamativa delas é de agosto de 2011, quando alguns líderes discutiram numa conferência por telefone um atentado contra o governador Alckmin.

Qualquer um que estude o PCC sabe que isso não é impossível, mas altamente improvável, e que esse tipo de conversa pode ser bravata ou contrainformação. Eles não são ideológicos. O que interessa às lideranças é dinheiro e permanecer no comando. Isso tudo eles já têm na situação atual. O dinheiro entra fácil por conta do tráfico de drogas dentro e fora das cadeias e pela mensalidade paga pelos “irmãos”. E a chefia está garantida por meio do controle que eles têm sobre 80% dos presídios paulistas. Por trás dos muros eles mandam. O estado só cuida de impedir as fugas, o controle de fato do sistema já foi perdido há anos, desde a crise de 2006. Além disso, seria estupidez matar um governador. Só iria trazer outro, e com respaldo popular para instaurar uma verdadeira guerra contra o PCC.

Apesar dessas falhas, a denúncia não foi um gesto inútil do Ministério Público. No mínimo serviu para lembrar à população da existência do “partido” (em um de seus estatutos os criminosos se referem ao grupo como Partido do Crime). Também forçou o governo a se pronunciar e anunciar medidas de combate à organização criminosa. Os discursos estão cheios de resoluções como a do governador, que anunciou a criação de uma força-tarefa para investigar o envolvimento de policiais com a gangue. Ele também disse que os policiais do Centro Integrado de Inteligência em Segurança Pública vão atuar 24 horas por dia para rastrear as ligações telefônicas entre detentos. Depois dessa tomada de posição, a pergunta que não quer calar é: o que eles estavam fazendo até agora?

Na realidade, os discursos e tomadas de posição em qualquer uma das crises sempre mostraram o mesmo: não existe uma política de segurança pública. Tudo é improvisado, feito para responder ao alarido da imprensa e criar uma opinião pública favorável ao governante, seja ele quem for.
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Embora possuam algumas diferenças básicas, os dois casos que discutimos neste artigo têm duas coisas em comum: a falta de preparo dos órgãos de segurança e o zigue-zague do noticiário e do estado. A principal distinção entre os dois grupos é que os membros do PCC são criminosos profissionais, ganham a vida cometendo crimes. Os Black Blocs, apesar de altamente especializados, não são, ao menos ao que se saiba, profissionais. Outras diferenças básicas são o grau de organização e a periculosidade.

Apesar de destruírem propriedades, agredirem pessoas e tumultuarem as grandes cidades, os Black Blocs ainda não mataram ninguém. Pode ser que ainda venham a cometer esse crime, mas não é possível comparar sua ação com a do PCC, que já executou centenas de pessoas. A não ser que esses grupos de arruaceiros evoluam para algo mais perigoso, o que não é impossível.

Quanto ao grau de organização os grupos são muito diversos. É fato que o “partido do crime” tem uma estrutura mais poderosa. Foi capaz de acuar as polícias em São Paulo durante uma semana em 2006. Depois disso, quando começava a recuar devido às prisões e mortes de filiados, o governo é que cedeu. A sua forte estrutura e o gigantismo, porém, talvez sejam suas maiores fraquezas. Depende de facilidade de comunicação, afinal todos os líderes estão presos. Também precisa manter um bom capital de giro para movimentar os negócios e fazer relações públicas. Dois exemplos bem conhecidos são: o financiamento do transporte dos familiares de presos nos dias de visita e uma espécie de pensão para parentes dos “irmãos” que foram presos ou mortos quando prestavam serviço à organização.

Eles teriam problemas sérios se o aparelho repressivo tomasse duas atitudes lógicas. A mais urgente seria impedir de fato o uso de celulares nos presídios, dificultando a comunicação dos líderes com os seguidores. A outra medida – quebrar financeiramente a organização – fica prejudicada pela falta de pessoal especializado em finanças nas polícias. Follow the money (siga o dinheiro) foi a instrução dada pelo principal informante dos jornalistas que desvendaram o caso Watergate e derrubaram Nixon da Presidência dos Estados Unidos. E é o método mais usado pelos grupos policiais especializados em combate ao crime organizado. Nessa conjuntura o termo significa não apenas seguir o fluxo do dinheiro do PCC, mas também apreendê-lo e quebrar financeiramente a organização. Afinal, todo ele é fruto de crime.

A complexidade do enfrentamento aos Black Blocs vem do fato de que estão no extremo oposto. Sua hierarquia é fraca, não é exatamente uma organização, não existe uma fonte de renda comum entre os membros e a comunicação entre eles é feita por meios lícitos (celular, sms, e-mail, Facebook etc.), o que dificulta o uso de grampos legais. Para complicar ainda mais, durante os atos de vandalismo eles usam máscaras, aparentemente agem de forma desordenada, não têm alvos específicos e se misturam com o resto dos manifestantes. Por conta desses fatores, a polícia tem tido dificuldade para identificá-los com os métodos rotineiros de investigação. No fim do dia a maioria dos detidos acaba sendo liberada pela Polícia Civil por falta de provas.

Além dessas dificuldades táticas, o nosso sistema de segurança sofre com a falta de uma estratégia para enfrentar essas duas situações. Quando se trata do controle dos Black Blocs isso ainda é compreensível. Apesar de o Movimento Passe Livre e outros similares já existirem há algum tempo, as grandes manifestações ocorreram a partir de junho, refluindo em setembro. E os casos de puro vandalismo se agravaram apenas depois dos legítimos manifestantes terem saído das ruas.

Quando se trata do PCC, a falta de uma estratégia é indesculpável. O problema existe há vários anos. As polícias e o governo tiveram tempo de compreender a organização, identificar suas fraquezas e criar uma metodologia para enfrentá-la. Como ela não existe, o método empregado continua sendo o da tentativa e erro, o que agrava o zigue-zague costumeiro da política de segurança pública.

O resumo da ópera é que os órgãos de segurança estão sem rumo no enfrentamento desses dois problemas. O que lembra a fala de um analista militar americano sobre a atuação das forças armadas de seu país: “Atualmente, entidades militares acham difícil imaginar combater uma guerra contra forças armadas que não sejam similares a elas próprias”, Willian S. Lind.

Guaracy Mingardi é doutor em Ciência Política pela USP e mestre pela Unicamp. Atualmente é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública