Direitos Humanos debate a violência policial, os desaparecidos da democracia, a naturalização da morte violenta, os autos de resistência, entre outros temas
Direitos Humanos debate a violência policial, os desaparecidos da democracia, a naturalização da morte violenta, os autos de resistência, entre outros temas
Ainda estão muito vivos na sociedade e entranhados nas instituições brasileiras os legados deixados pela ditadura. Os sistemas de segurança vigentes no Estado, em todos os seus níveis, são fundamentados na cultura da repressão, do autoritarismo e da violência. A Comissão de Direitos Humanos do Senado tem discutido medidas que combatam essa herança
O risco de um jovem negro ser morto é 3,7 vezes maior que o de um jovem branco. Foto: Ana Carolina Fernandes/Reuters
Mais do que relembrar um período conturbado da história contemporânea brasileira, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado, por meio de sua Subcomissão de Memória, Verdade e Justiça, cumpriu um significativo papel para a consolidação da democracia ao refletir sobre os cinquenta anos do golpe militar e os efeitos produzidos pela ditadura que ainda hoje permeiam a sociedade brasileira. Entre os temas debatidos, destacam-se a violência policial, os desaparecidos da democracia, a naturalização da morte violenta e os autos de resistência, bem como a banalização da tortura.
A perpetuação de um Estado repressor, violento e cerceador dos direitos humanos na democracia guarda relação com a impunidade daqueles setores que protagonizaram crimes de lesa-humanidade nos anos de chumbo. Ampliar as bases para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito exige que esse passado seja revisitado, essa história recontada e os torturadores e assassinos exemplarmente punidos.
Ciente de seu papel histórico nesse processo, a CDH deu um passo importante nesse sentido, ao aprovar o Projeto de Lei nº 237/2013, de autoria do senador Randolfe Rodrigues (PSol-AP), que altera a Lei de Anistia (nº 6683/79) com o objetivo de excluir do rol dos anistiados os torturadores, estupradores e assassinos do regime militar.
A face autoritária do Estado sempre foi escancarada aos mais pobres, especialmente os negros, historicamente alvos prioritários da tortura. Esta sempre esteve presente na atividade das polícias brasileiras, cujo método usual de interrogar presos comuns era – e absurdamente ainda o é em muitos locais – o espancamento.
Não é demais lembrar que a história do Brasil se constitui a partir da tortura, uma vez que tivemos um dos mais longos processos de escravidão, perdurados por mais de trezentos anos, quando o negro era considerado mercadoria e objeto das mais terríveis práticas de violência. Essa conformação trouxe implicações profundas ao imaginário social, a exemplo da naturalização da violência, fundamentada no princípio de que é permitido todo tipo de crueldade com aquelas pessoas que não são consideradas humanas.
No Estado Novo e na ditadura militar, integrantes da classe média também passaram a ser alvo desse tipo de crime, se considerados subversivos. Quando presos políticos, tornaram-se as principais vítimas. As denúncias da prática de tortura por agentes do Estado contra militantes políticos contrários ao regime levaram os setores democráticos da sociedade a se mobilizarem contra ela. Mas ainda hoje é amplamente utilizada nas delegacias e nos presídios.
A violência policial, por exemplo, sempre acompanhou o cotidiano dos moradores das periferias das grandes cidades. No entanto, o debate sobre a necessidade de desmilitarizar os aparatos policiais ganha força exatamente quando essa violência chega ao “asfalto” e se volta para filhos da classe média, atinge setores juvenis que acabam sendo direta ou indiretamente vítimas do uso desproporcional da força em manifestações de rua, como as que o Brasil vivenciou em junho de 2013.
A figura do desaparecido é outro resquício do regime de exceção. Casos recentes como o do pedreiro Amarildo Souza, do Rio de Janeiro, e de Antônio Araújo, de Brasília, ganharam ampla repercussão midiática, revelando mais uma vez o total despreparo das polícias militares para atuar num regime democrático.
Assim como as famílias dos desaparecidos da ditadura não tiveram direito ao luto e à Justiça, milhares de mães e familiares continuam convivendo, na democracia, com essa dor. Somente no Rio de Janeiro, estimam-se cerca de 10 mil casos nos últimos cinco anos. E aqui cabe ressaltar a perversidade dessa prática, pois a família continua sendo torturada cotidianamente, uma vez que o Estado, na esmagadora maioria dos casos, não investiga nem dá respostas a esses familiares, que ficam completamente à deriva. Não precisa nem dizer que nessas estatísticas estão as populações mais pobres, com desaparecimentos muitas vezes protagonizados pelos próprios agentes de Estado.
Outra herança absurda do período militar é a execução sumária do “suspeito”, do “favelado”, do “bandido” por meio dos autos de resistência, ou seja, aquele procedimento em que a polícia mata, executa e simplesmente notifica como “morto por reagir à prisão” ou por entrar em “confronto com as forças policiais”. A maioria dos casos assim tipificados não são investigados, como prevê o próprio Código Penal. Trata-se de um mecanismo amplamente utilizado durante a ditadura, que, mesmo não o tendo inventado, foi responsável por sua legalização.
Atualmente tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4471/2012, de autoria do deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), que altera o Código de Processo Penal para que, enfim, sejam investigadas as mortes e lesões corporais cometidas por policiais, podendo pôr fim a casos como os registrados hoje como autos de resistência ou resistência seguida de morte.
A manutenção desse tipo de procedimento fere frontalmente o Estado Democrático de Direito e o ordenamento jurídico brasileiro ao não presumir inocência e não permitir o acesso ao devido processo legal. É inaceitável que a democracia conviva com um modelo de polícia que ainda age ao arrepio da lei, executando sumariamente as pessoas, exercendo um poder muito maior do que legalmente lhe cabe. Nesses casos, assume os papéis de investigador, de juiz e de executor, imputando, de fato, aos cidadãos mais pobres e vulneráveis uma pena terminantemente proibida pela Constituição: a pena de morte.
Nos últimos anos tem-se registrado pelo menos 50 mil mortes violentas no Brasil, número muito superior ao de países que se encontram em guerra civil. Quando analisado o perfil de quem mais morre, constata-se que 70% são jovens, negros e moradores das periferias, fruto de um processo intitulado pelos movimentos sociais e de direitos humanos como extermínio da juventude negra.
Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado em 2013 mostra quão arriscado é ser negro no Brasil, mesmo com todos os esforços promovidos nos últimos anos pelo governo federal na adoção de políticas de promoção da igualdade racial. Os dados são alarmantes.
De acordo com a pesquisa, de cada três assassinatos praticados no Brasil, dois vitimam negros. O risco de um jovem negro ser morto é 3,7 vezes maior que o de um jovem branco. Há uma perda na expectativa de vida devido à violência letal 114% maior para pessoas negras. Por fim, o estudo apresenta um dado digno da maior atenção: caso não haja uma mudança de rumo, pelo menos 36 mil brasileiros com idade entre 12 e 18 anos serão assassinados até 2016, de acordo com o atual cenário.
Propostas legislativas como a PEC 51, de desmilitarização das polícias, de autoria do senador Lindberg Farias (PT-RJ), são fundamentais para o avanço da democratização desse setor. A alteração da arquitetura institucional da segurança pública brasileira – mais um legado da ditadura que permanece inalterado nestes 25 anos de vigência da Constituição Cidadã – precisa ser profundamente debatida e pode ser decisiva para diminuir a brutalidade policial letal contra os mais vulneráveis e interromper a criminalização da pobreza, ambos processos de intensificação do racismo. A desmilitarização e a mudança no modelo policial podem até não dar conta de toda a problemática, mas, sem dúvida alguma, é um passo indispensável.
Ainda estão muito vivos na sociedade e entranhados nas instituições brasileiras os legados deixados pela ditadura. Os sistemas de segurança vigentes no Estado, em todos os seus níveis– locais, regionais e nacionais –, são fortemente fundamentados na cultura da repressão, do autoritarismo e da violência.
O desafio de romper com esse modelo discriminatório e opressivo passa diálogo e pelo fortalecimento de valores democráticos de um Estado cada vez mais garantidor de direitos e indutor de um modelo de desenvolvimento econômico e social inclusivo, promotor de políticas públicas emancipatórias e cidadãs, profundamente comprometido com a dignidade humana.
Ana Rita é senadora (PT-ES), presidenta da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado