Internacional

Matteo Renzi, o mais jovem primeiro-ministro do país, conseguiu reinjetar a esperança de que as coisas podem ainda melhorar na cabeça de muitos italianos

Em meio ao quadro político confuso, a Itália vem sendo palco do surgimento de uma nova liderança popular, pró-europeia, e de um partido tradicional de centro-esquerda, o Partido Democrata (PD), herdeiro do antigo Partido Comunista Italiano (PCI), misturado a forças provenientes da esquerda católica

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Renzi conta ainda a seu favor com o fato de a Itália ocupar a presidência da UE neste semestre. Foto: Parlamento Europeu

A crise econômica e seu desdobramento social provocaram resultados eleitorais muito flutuantes nos diversos países europeus. Aumentou a desconfiança em relação aos partidos tradicionais e à política no geral, e parte desse descontentamento é capitalizado por partidos da extrema direita, nacionalistas ou antissistema. Outra parte, menor, pela esquerda radical. O quadro é confuso e há grandes diferenças entre os países. No meio disso, a Itália vem sendo palco do surgimento de uma nova liderança popular, pró-europeia, e de um partido tradicional de centro-esquerda, o Partido Democrata (PD), herdeiro do antigo Partido Comunista Italiano (PCI), misturado a forças provenientes da esquerda católica. Até pouco tempo atrás, a cena política italiana era dominada pela centro-direita, sob comando do magnata da mídia, Silvio Berlusconi. Em seguida, surgiu do nada o Movimento 5 Estrelas (M5S), liderado pelo comediante Beppe Grillo.

A centro-esquerda parecia sem rumo, depois das várias mutações do PCI para Partito Democratico della Sinista (PDS), Democratici di Sinistra (DS), até o atual PD. E os diversos agrupamentos que surgiram nesses anos à esquerda não conseguiram ocupar o espaço, embora nunca tenham deixado de marcar presença, inclusive com disputas entre si. Hoje a principal referência é a Sinistra Ecologia Libertà (SEL), liderada pelo carismático Nichi Vendola, “governador” da Puglia, região do sul da Itália, ex-militante do PCI e ativista gay. A SEL apresentou-se nas últimas eleições para o Parlamento Europeu em uma lista unida (Lista Tsipras), junto com o que sobrou da Rifondazione Comunista.

E assim as eleições europeias iriam consagrar o avanço de Beppe Grillo, com a vitória anunciada pelo próprio comediante. Mas não foi isso o que aconteceu. O PD ficou com 40,8% dos votos, praticamente o dobro do M5S. Detrás dessa vitória está Matteo Renzi, ex-prefeito de Florença, com 39 anos, o mais jovem primeiro-ministro da Itália. Ele conseguiu o que parecia impossível: reinjetar a esperança de que as coisas podem ainda melhorar na cabeça de muitos italianos. Com um estilo informal, descontraído e juvenil, conseguiu essa votação extraordinária, sendo a Itália, inclusive, o país com menor índice de absenteísmo. Em toda sua história, a centro-esquerda jamais tinha alcançado um resultado assim. Com isso, o PD se tornou também o primeiro partido do Bloco Socialista, à frente do tradicional Partido Socialista Alemão.

O sucesso eleitoral foi repetido nas eleições municipais. Das 243 cidades com mais de 15 mil habitantes onde foram realizadas eleições, a centro-esquerda avançou de 128 para 167, embora com algumas perdas simbólicas inesperadas que chamaram muito a atenção. Em particular a vitória, no segundo turno, do candidato do M5S Filippo Nogarin, em Livorno, símbolo da esquerda italiana, onde, sob liderança de Antônio Gramsci, fundara-se o PCI, em 1921. Para aumentar a confusão, o prefeito recém-eleito declarou que representava a verdadeira força de esquerda. A análise de Renzi  foi típica de seu estilo: onde o PD não se renovou, perdeu.

Há de se considerar, porém, que o segundo turno das eleições municipais parciais, realizadas em 9 de junho, foi precedido da descoberta de um escândalo de corrupção em licitações das obras para salvar Veneza de inundações. O prefeito de Veneza é de centro-esquerda, mas o escândalo envolveu políticos de todos os espectros e várias esferas do governo atual  e dos governos anteriores. O prefeito tentou se defender, mas Renzi fez declarações duras que o obrigaram a se demitir.

Considerando que Renzi chegou ao cargo de primeiro-ministro devido a uma manipulação interna, em 22 de fevereiro deste ano, substituindo seu colega de partido Enrico Letta, as duas votações seguidas deram-lhe a legitimidade que faltava. Tanto é que no Congresso Nacional do PD, realizado em 14 de junho, ao fundo do palco estava escrito, enorme, “40,8%”.

O discurso de Renzi agora é que com essa votação o PD não pode se permitir perdas de tempo com brigas internas. Duro contra frações de esquerda que questionam parte de seu programa de reformas, ele é hábil em controlar o PD e apoiou a candidatura de Matteo Orfini como seu presidente, um expoente de uma das correntes da esquerda (Giovani Turchi), com isso isolando correntes mais radicais. Outra decisão foi com relação ao apoio firme à manutenção de símbolos da herança do PCI que estão em crise: o inesperado mas firme apoio para salvar o diário fundando por Gramsci, L´Unità, e a continuidade das Festas dell´Unità como momentos de confraternização e manifestação cultural-política do PD.

Pairam sérias dúvidas sobre até onde essa nova onda se sustentará. O grande ritmo de uma série de reformas que estão sendo propostas  é impressionante, entre as quais o fim do Senado como instância bicameral, reformas na estrutura administrativa, fiscais e trabalhistas, mas ainda longe de apresentar resultados concretos. Tudo complexo e polêmico. A promessa é geração de emprego e aumento do poder de compra dos trabalhadores, questões de fácil verificação. Até agora, o que sustenta a onda Renzi é a confiança. Evidentemente isso tem pernas curtas, caso não se criem empregos e o trabalhador continue perdendo poder de compra.

Além das reformas políticas e institucionais, na economia política o ponto central para Renzi é a retomada do investimento público, e para isso ele exige uma alteração na política de austeridade que predomina até agora em âmbito europeu, ancorada na orientação alemã da primeira-ministra Merkel. Para não bater de frente, fala em “flexibilização” do Pacto de Estabilidade. Na prática, isso significa que alguns investimentos do governo, ligados diretamente à geração de emprego e renda, deveriam ser excluídos do cálculo do limite do déficit público, de 3% do PIB. Renzi chegou a sugerir essa mudança em relação a todos os gastos com educação, pesquisa e desenvolvimento. Ele sabe que qualquer possibilidade de sustentar o amplo apoio político depende do aumento dessa margem de investimentos públicos e quer aproveitar a dificuldade que as eleições europeias criaram para Merkel continuar com a mesma política: partidos antieuropeus ficaram em primeiro lugar na França e no Reino Unido. A favor de Renzi, conta ainda o fato de que a Itália ocupa a presidência rotativa da União Europeia desde 1º de julho, o que lhe dá um potencial para influenciar a agenda e ampliar a visibilidade de suas propostas.

Observa-se também a habilidade de dividir a direita, integrando alguns dissidentes da Forza Italia de Berslusconi ao seu governo e fazendo ao mesmo tempo acordos com Berlusconi, para agilizar a votação de outros acordos, deixando sempre aos que não colaboram o ônus da imagem de oposição às reformas.

O que impressiona é sua habilidade de conquistar o voto de confiança não só do eleitorado, mas também dos empresários, das finanças internacionais, dos trabalhadores organizados e mesmo da esquerda. Até Beppe Grillo admitiu publicamente que perdeu as eleições europeias e Renzi ganhou. E disse, pela primeira vez, que se dispõe a dialogar com ele. O mesmo, menos surpreendente, vale para Nichi Vendola, que argumentou em um encontro da SEL: “Não quero ser o escorpião nas costas do PD, mas ser ágil e desafiar Renzi com propostas concretas”. A atitude da maioria da SEL é abrir-se para um diálogo com o primeiro-ministro.

Os sindicatos, embora tenham perdido muito da sua capacidade de mobilização, continuam uma força social com certo peso, estão acompanhando os passos de Renzi, mas não querem aparecer como a força que se opõe a reformas por princípio. Nos próximos meses haverá com certeza uma negociação dura e complicada entre os sindicatos do funcionalismo público e o primeiro-ministro. Entre as questões mais polêmicas está a flexibilização da estabilidade do funcionalismo público.

Se Renzi conseguir fazer valer a sua pauta diante de Merkel – aumentar o nível de investimento público e com isso gerar emprego, estancar a perda de renda dos trabalhadores e manter um diálogo com os sindicatos –, um novo capítulo na história da esquerda italiana será fato. Caso contrário, desaparecerá da cena na mesma velocidade com a qual apareceu.

Giorgio Romano Schutte é professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC)