Política

Vencemos um processo eleitoral duríssimo, nossos adversários querem o terceiro turno. Precisamos de um aggiornamento do socialismo petista à luz dos desafios

Tornamo-nos um partido mais velho, burocratizado, replicador das lealdades hierárquicas da sociedade brasileira que pretendemos transformar, o que, se por um lado, é “natural”, pois nascemos e nos desenvolvemos no seio dela, por outro, é revelador da acomodação conservadora, do afastamento de nossas bases e propósitos iniciais

A perseguição do “terceiro turno” pela aliança PSDB-mídia-empresariado

A aliança PSDB-mídia-empresariado quer o "terceiro turno" e tem uma ação vasta. (Foto: Eugênio Moraes/Folhapress)

Após o anúncio da vitória da companheira Dilma Rousseff (PT) sobre o candidato Aécio Neves (PSDB) na noite do dia 26 de outubro, sobreveio a explosão de alegria ruidosa, de alívio popular, mas também do sentimento profundo de que estávamos fazendo história. Poucas vezes, desde a redemocratização do país, uma campanha eleitoral agregou tanta energia social, mobilizou paixões, inspirou protagonismos, trouxe novas e inesperadas iniciativas, fomentou inauditas redes comunicacionais, organizativas, furando o cerco da hegemonia liberal-conservadora forjada por nossas classes dominantes. Nesse sentido a vitória de Dilma, do PT, da esquerda, do campo democrático e popular extrapolou o significado eleitoral, nos revelando a dinâmica vital de um novo Brasil que surge, explode, age, se expressa nas urnas e além delas, buscando construir uma sociedade mais participativa, democrática, diversa, inclusiva, soberana.

Vencemos um processo eleitoral duríssimo, antecipado pela mídia empresarial, pela direita partidária e social que intentou “nos levar às cordas”, destruindo nossas referências políticas, acúmulos institucionais e nosso patrimônio ético-civilizatório. Ao sabor da campanha desencadeada antes da hora, que já dura anos, assistiu-se ao minudente ofício ideológico de desconstrução de nosso projeto, tecida por intermédio de uma narrativa facciosa, violenta, abertamente criminalizadora dos movimentos sociais, dos ideais do socialismo e até das razões e valores democráticos, ora circunscritos aos valores de mercado apregoados pelo liberalismo. Ataques esses que se fizeram mais intensos e sistemáticos em relação ao PT, objeto qualificado da “libido” destrutiva de nossa direita estamental, escravocrata, ao erigir um verdadeiro sistema panóptico de acompanhamento diário de suas atividades partidárias, símbolos, “motivações”, visando à diabolização de seus dirigentes e militantes. Para isso, “recrutou-se” uma massa informe de profissionais distintos, de agentes disponibilizados para funcionar como intérpretes dos “fatos”, extraindo de maneira “pedagógica” destes a crônica cotidiana dos sentidos do petismo e de sua vocação univocamente “totalitária”. Basta examinar a editorialização explícita dos “jornalões”, conjuminada à pauta moralista, por eles proposta, da agenda brasileira, e acrescida da vaga de terrorismo econômico adrede e difusamente anunciada em tons apocalípticos.

No limite, parte considerável do campo liberal-conservador “foi mais a fundo”, ousou o flerte com o golpismo protofascista tropical – tentado, sem sucesso, várias vezes desde a crise do chamado “mensalão” em 2005 – ao deslocar sua oposição do campo político-ideológico para o penal, ao tentar equiparar o Partido dos Trabalhadores a uma organização criminosa, quando não terrorista, que, por isso mesmo, insinuava-se, deveria ser posta fora da legalidade.

Agressões, insultos, ataques insultuosos, desqualificação do debate público, um ódio à larga, a se esparramar nos círculos da elite, não foram suficientes para extirpar as sólidas raízes de nossa inserção junto à sociedade civil, empanando nossa história, compromissos e identidades. Como diria Nietzsche, “o que não nos destrói nos fortalece”, pois revela o vigor do que representamos, os elos orgânicos que o PT, os programas sociais dos governos Lula e Dilma foram capazes de estabelecer com parcelas significativas da classe trabalhadora no Brasil. Ao contrário, o destampatório de agressões da direita neoliberal, associado aos ímpetos genocidas do fascismo, propiciou, como há muito não se via, uma restauração auspiciosa do debate com o campo da esquerda socialista fora do PT, um reconhecimento recíproco da solidariedade que nos define, da unidade mínima indispensável, civilizatória mesmo, frente ao inimigo comum, no enfrentamento da “alegria raivosa”, que, como diria Chico Buarque, notabiliza os inimigos da democracia e dos direitos humanos.

Contudo, se mostramos força, organicidade, coesão de nossas estruturas organizativas, inserção local e regional, enraizamento nacional, interlocução qualificada com intelectuais, movimentos sociais, universidades, vínculos com processos vivos no continente e no mundo; de outro lado revelamos fragilidades em nossa atuação, carências programáticas, burocratismo excessivo, eleitoralismo, perda de sentido estratégico, de formulação cultural etc. Debilidades essas que assomam no atual momento histórico, em que novas necessidades emergem dimanadas dos choques, pressões e conflitos trazidos pela luta de classes na conjuntura.

Afinal nosso projeto democrático-popular, como é natural, não só atrai lealdades, redes de solidariedade, suscita dimensões instituintes de novos direitos, protagonismos dos que por ele são integrados, beneficiados, mas também induz resiliências, reações fortes, rancores atávicos de outras classes, segmentos, de grupos que, apesar de não frontalmente atacados, sentem-se prejudicados no atendimento de suas demandas prioritárias de acumulação de capital e de poder. Menosprezar os aspectos culturais da dominação burguesa-estamental no Brasil, fundados na rejeição a qualquer igualdade, inclusive a jurídico-formal, é um dos maiores equívocos de parcelas da esquerda brasileira, por vezes excessivamente presas a interpretações esquematistas da “mecânica” econômica.

No capitalismo real nativo, articulado pelas contingências do colonialismo, depois atualizado pela dominação imperialista, formatou-se uma institucionalidade estatal para poucos, daí seu caráter historicamente autocrático, avesso à incorporação do povo à cidadania, mesmo a de feição minimalista liberal, assentada no reconhecimento da igualdade jurídico-formal e na expansão de um mercado de consumo de massas. Afora a dimensão concentracionária do eixo mercado-Estado em termos regionais, marginalizando o Nordeste e o Norte dos frutos do progresso, das iniciativas governamentais, das possibilidades de investimento, dos circuitos de produção, distribuição e consumo. Enfim, nossa história, tem sido – com raras exceções – um exemplo perverso de exclusões das maiorias, de degredo interno, de hierarquias espaciais, de denegação de direitos e aspirações às maiorias. As parcas tentativas, buscadas nos governos de Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart de criar um capitalismo “popular”, mais dinâmico, internamente sustentado e socialmente menos desequilibrado, redundaram em sucessivas “crises”, tentativas de desestabilização política-institucional e golpes militares no Brasil. Viradas de mesa sempre patrocinadas pelas mesmas forças, subalternas aos centros capitalistas externos e aferradas a um estamentalismo segregador no plano interno.

O mérito dos governos Lula e Dilma de reabrirem um novo ciclo de desenvolvimento do país, sintonizado com suas energias e forças internas, com ênfase no crescimento com distribuição de renda e poder, é inegável, alterando positivamente as condições de vida populares, em especial dos mais pobres – além do reposicionamento externo do Brasil, da retomada do planejamento, da indução dos processos econômicos, da valorização dos direitos sociais, bem como das prerrogativas das minorias, das mulheres, dos negros, dos homossexuais. Entretanto, não obstante as conquistas e os méritos inegáveis de tais políticas e iniciativas, afirmadas por nosso projeto nacional-popular, tal estratégia de desenvolvimento econômico e social, centrado na ampliação dos fluxos distributivos da riqueza por meio do Estado, induzindo a constituição de mercado de massas e do franqueamento de acessos de poder à cidadania, não foi devidamente acompanhado por um processo pedagógico de politização, de elevação cultural, da disputa contra-hegemônica frente aos valores liberal-conservadores da ordem. Ao contrário, muitas vezes não somente nos omitimos de travar o debate político-ideológico e também no espaço das representações culturais como, pior, terminamos por genufletir perante as crenças e valores dominantes do liberalismo.

Mas a temporalidade própria da política, de sua dinâmica eminentemente conflituosa, inflecte sobre nós, acelera-se, nos cobra em exiguidade de prazo uma melhor afinação de nossos instrumentos, uma capacidade mais ampla de mobilização, de delimitação teórica, conceitual, de intervenção qualificada, de diálogo franco com as forças populares, em meio às investidas, aos arroubos de uma direita irrequieta, e ainda lambendo as feridas de sua derrota eleitoral, política e social. A derrota de Aécio, do bloco liberal-conservador que reúne PSDB, DEM, PPS, parte do PSB, e especialmente a mídia empresarial, oligopólica, demonstra disposição para não só nos enfrentar, como sempre fizeram, mas para nos derrotar. Para isso, não titubearão em usar todo o arsenal bélico a seu dispor, desde a rede de boatos, passando pelo fait divers prosaicos de uma versão não menos prosaica do moralismo de veneta sobre os “acontecimentos”, até a leitura desfavorável da “fortuna” da economia, ao apresentar o governo como a expressão mais categórica da irresponsabilidade nos gastos, na majoração dos tributos e no constrangimento dos “indefesos” empresários, presumidos “virtuoses” da produção e do crescimento do país, apesar de tudo...  Crise econômica internacional, que, sem dúvida, restringe nossa margem de manobra, estreitando as iniciativas até hoje adotadas de “comer pelas beiradas”, evitando colisões com o capital e seus apetites pantagruélicos de acumulação.

A rota da direita parece estar clara, manifesta, estampada nas páginas dos jornalões, na blitzkrieg diária, que intenta isolar-nos, transformando-nos em reféns das forças tradicionais, dos profissionais do fisiologismo parlamentar, da linguagem enragé do moralismo udenista hipócrita, da ideologia do senso-comum que despolitiza e atomiza as relações sociais, fazendo-nos descrer da política e de seus processos. Subliminarmente apelam à crença de que é por meio do mercado, do consumo, que nossos carecimentos, necessidades serão atendidos, e nunca através da política.

A perseguição do “terceiro turno” pela aliança PSDB-mídia-empresariado (a maior parte dele), mais do que resultado da frustração da derrota eleitoral recente, compõe uma ação vasta, estratégica, pensada a médio prazo por esses setores, de barrar um novo ciclo de mudanças, de reconfiguração, de aprofundamento da democracia, bloqueando o surgimento de novos direitos, aspirações e demandas dos setores populares. Intentam para isso pulverizar o povo, dispersá-lo, trazer confusão, impor falsas divisões, sem perder de vista a coesão de seu campo de direita, ao evocar velhos fantasmas, taras, medos anticomunistas, preconceitos seculares da casa-grande. Querem o terceiro turno, anseiam pela revanche imediata, pela elevação dos humores, pelo cultivo do golpismo, pela imposição programática das razões dos derrotados, apresentados como detentores da racionalidade, da ética, da compostura fiscal e institucional. Aproveitam-se das lacunas de nossas formulações, de nosso aprisionamento na agenda da governabilidade, da renúncia a um processo de politização dos fundamentos de nosso governo e ação partidária, para manter-nos na defensiva, “cativos voluntários” da narrativa neoliberal sobre uma tal “criminologia petista”, ou “incúria e incompetência governamental”.

A imediata retomada da iniciativa pelo Partido dos Trabalhadores na conjuntura é a melhor ajuda que poderemos desenvolver na defesa do governo Dilma e na luta pela efetivação de seus compromissos. Não só na discussão pública sobre a urgência da reforma política, que desconecte as atuais promíscuas relações entre eleições e dinheiro, mas também na potencialização dos instrumentos de participação e controle social sobre as instituições do Estado capitalista. Ademais, uma reforma política pra valer precisa repensar o conjunto da moldura de nossas instituições, desde as regras que definem as regras e procedimentos eleitorais até aquelas que estabelecem os critérios de acesso a informação, de iniciativas de leis, e revogação de mandatos, de mecanismos de incorporação das coletividades internas no fortalecimento de um federalismo mais cooperativo etc.

Enfim, precisamos ter coragem, ousadia cívica em apontar as vicissitudes de uma ordem institucional em que a íntima relação entre poder, seu exercício, e o capital privado “oficializa”, legaliza a corrupção. Para tanto, não devemos ter medo de articular nossas razões e afetos socialistas, nossa radical crítica ao privatismo que cinzela historicamente o autoritarismo brasileiro. Devemos contrapor às pretensas virtudes do privatismo mercantil, da “meritocracia” da grana a dignidade da política, da associação dos trabalhadores, dos setores médios, dos espaços crescentemente socializados. À competitividade individualista, à soberania dos mercados, ao bloqueio das instituições, das agências reguladoras à “vontade popular”, oferecemos em seu lugar a radical transparência republicana, democrática, socialista, numa clara e indissociável afirmação da autonomia individual e social.

Precisamos de um debate público que mostre a incompatibilidade entre partidos e personalismo, carreirismo, atribuindo prevalência às estruturas coletivas, e a necessária subordinação das estruturas de gabinete, de seu funcionamento, à lógica global dos programas e à estratégia dos respectivos partidos. Dessa forma, os partidos poderão voltar a tratar de temas, problemas, questões da sociedade, mais precisamente no que se refere aos partidos de esquerda, hoje sujeitos à pressão financiadora das empresas, das grandes empreiteiras, dos bancos, dos capitalistas em geral.

Outra reforma ingente, inadiável, que o PT precisa levantar é a democratização e regulação da mídia no Brasil, sob pena de nos mantermos presas da ditadura familiar dos controladores da imprensa nativa, quase todos oriundos do pacto burguês que patrocinou o golpe de 64 e até hoje manipula a “opinião pública”. Episódios sórdidos da Veja, Globo, Folha de S.Paulo, Estadão na recente campanha, explicitados pelos estudiosos do assunto no âmbito das universidades, sublinham a premência da regulação e democratização da mídia, dada sua centralidade no processo informativo, o que, por sua vez, influencia decisivamente no exercício deliberativo da democracia eleitoral.

O temor, a recalcitrância do governo Dilma Rousseff no enfrentamento dessa questão, aceitando as pressões da mídia oligopólica, tem agravado a situação, ao invés de amainá-la. Faz com que os grandes grupos econômicos da informação ajam de maneira ainda mais agressiva, revanchista, criminalizando a esquerda, o PT, os movimentos sociais e qualquer tentativa de mudança estrutural da sociedade e do Estado brasileiros. Faz, inclusive, com que essa mesma imprensa vede toda e qualquer discussão de assuntos fundamentais para as maiorias trabalhadoras no Brasil, como reforma agrária, reforma urbana, aborto, cotas, igualdade de gênero etc. Na verdade, “nossa” mídia oligopólica funciona como a mais importante trava às transformações em nosso país, posto que vocaliza os interesses plutocráticos e, portanto, manipula, aterroriza, desinforma a população. Constitui-se, pelo menos a grande mídia, no principal partido da direita nacional – dada a dificuldade de nossas classes dominantes em definir um campo nítido de ideias, de referências que agregue sua base social –, agravado por sua vocação autocrática, mais afeita à repressão, ao uso das forças armadas, do apelo à força do que à disputa hegemônica de representações de mundo.

Por fim, mais do que tudo, precisamos ser capazes de elaboração cultural, de estabelecer valores claros sobre o que significamos, queremos. A destruição simbólica do PT, de nossos governos, se não obteve pleno êxito em nossa inviabilização eleitoral, apesar dos sérios reveses causados em nossa representação parlamentar, trouxe-nos custos elevadíssimos na construção estratégica de nosso projeto socialista, da disputa global dos rumos da sociedade brasileira.

Somente com a reorganização profunda de nossas estruturas organizativas, com o retemperamento de nossas energias militantes dispersas pelo peso excessivo da absorção institucional e do eleitoralismo, seremos capazes de resgatar parcela ponderável de nossa legitimidade perante a intelectualidade crítica, os movimentos sociais existentes e os novos que emergem a partir de racionalidades e desafios postos pela conjuntura nacional e internacional. Redescobrir nossa vocação com a ”sociedade civil”, pensar para além de governos, antecipar-se frente ao tempo imediato das agendas eleitorais, reencantar-se com “outras” temáticas oriundas das vanguardas estéticas, literárias, comportamentais, estabelecendo canais férteis com a juventude, universitária ou não, com as realidades complexas dos centros urbanos, faz-se imperativo. Tornamo-nos um partido mais velho, burocratizado, replicador das lealdades hierárquicas da sociedade brasileira que pretendemos transformar, o que, se por um lado é “natural”, pois nascemos e nos desenvolvemos no seio dela, por outro, é revelador da acomodação conservadora, do afastamento de nossas bases e propósitos iniciais.

Ao invés do pragmatismo consumista, da saída individual, da crença estupidificada nas excelsas virtudes do mercado, carecemos de utopia, de novos homens, mulheres, de um outro mundo, generoso com os seus, justo, fraterno, substancialmente livre, igualitário, mas prenhe de diferenças, de múltiplas identidades e afetos. Em suma, precisamos de um aggiornamento do socialismo petista à luz dos desafios que nos são apresentados, pois, mais do que nunca, só conseguiremos transformar o Brasil e o mundo com paixão e inteligência, com força, determinação e temperança!

Newton de Menezes Albuquerque é professor de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade de Fortaleza