A democracia é um regime no qual a horizontalidade das relações com o poder é o critério definidor da própria saúde do sistema
A democracia é um regime no qual a horizontalidade das relações com o poder é o critério definidor da própria saúde do sistema
O combate sem trégua que deve travar um governo autointitulado de esquerda é equilibrar o caráter vertical indeclinável do poder com a horizontalidade obstinada da democracia. Diretriz que deve ser disseminada e adotada em e por toda a cadeia de comando do governo
A razão não é um seguro que nos permite um sono tranquilo, mas o que nos mantém (ou deveria nos manter) em estado de vigília
Éric Weil
Gilles Deleuze disse um dia que não há governo propriamente de esquerda, pois essa categoria deve permanecer um horizonte para toda e qualquer posição transformadora. Numa mesma perspectiva, Éric Weil advertiu sobre a continuidade entre todos os governos, uma vez que governos agem através de suas administrações que, como tais, trazem em sua genética as atribuições primordiais de quando eram a faceta da violência dos príncipes unificadores de terras: a administração tem um modus operandi praticamente inalterável. A isso se acresce aquilo que Paul Ricoeur chamou de o paradoxo político: o poder surpreende exatamente por não ter surpresa alguma; estável, o poder é continuamente o mesmo. Pior! Por ser sempre contemporânea à evolução de técnicas cada vez mais sofisticadas a perversidade inerente ao poder é proporcional a esse desenvolvimento da racionalidade. Noutros termos: o maior mal adere sempre à maior racionalidade. O caráter patológico do poder não poupa esforços quando se trata de acionar seus requintados mecanismos para dar guarnição à esclerose a que sempre se inclina.
Essas advertências deveriam ser cuidadosamente observadas por todos aqueles que se reivindicam agentes da mudança tornados agentes públicos ao assumirem tarefas de estado dentro da administração pública, sobretudo para os que ocupam as altas funções. Ora, um governo que se elege advogando teses de orientação à esquerda e, portanto, de mudança e que, além disso, almeja manter-se nessa conduta, precisa entender que corre muito mais riscos de fracasso em seu projeto do que um governo de direita que sempre se submete rapidamente – independente do discurso assumido durante as eleições – à estabilidade do poder. Definido pelas relações hierarquizadas que lhe são intrínsecas, o poder é, por natureza, vertical. Foi essa dimensão que obteve por parte de anarquistas e marxistas o olhar cético em relação à política.
Historicamente falando, isso ocorre porque a autoridade é originária de uma teocracia. Tal remonta a tradições antiguíssimas, pré-bíblica até, nas quais essa componente teológica da autoridade funciona como a presença do divino na terra. Malgrado a diferença do desenvolvimento dessa influência no ocidente e no oriente, a autoridade política é uma derivação desta arquetípica matriz do poder. Isso explica o porquê das “procissões” que se formam em torno daqueles que foram alçados aos cargos do poder. Não apenas! Elucida também a bajulação, a adulação e lisonja entre aqueles que, ao invés de se comportarem como servidores, se rebaixam ao nível dos serviçais – serviçais bem pagos, mas ainda serviçais. Sem contrariar uma vírgula sequer do que sai pela boca da “divina” autoridade, agentes públicos que deveriam discutir as decisões que implicam sobre a vida de milhões, silenciam. Tomado infalível, pelo círculo anódino da servidão voluntária, o poder se mantém como sempre foi: incólume.
Qualquer governo que aspire transformação efetiva, principalmente aquele cujo respaldo histórico e posicionamento político-ideológico de suas lideranças e/ou partidos não lhe falta, haverá de acertar as contas de imediato com a verticalidade do poder. Um governo de orientação à esquerda, para operar a mudança radical na realidade dos não favorecidos, deve, primeiramente, mudar sua própria relação com o poder. Ora, a democracia é um regime no qual a horizontalidade das relações com o poder é o critério definidor da própria saúde do sistema: quanto mais horizontal for a relação entre os cidadãos (inclusive em se tratando dos que ocupam as maiores responsabilidades: juízes, parlamentares e dirigentes do executivo), tanto maior será a discussão em todas as esferas do poder e suas instâncias decisórias.
Nesse sentido, aprofundar a democracia é ser capaz de construir amplos e eficientes dispositivos de participação popular. O combate sem trégua que deve travar um governo autointitulado de esquerda é equilibrar o caráter vertical indeclinável do poder com a horizontalidade obstinada da democracia. Diretriz que deve ser disseminada e adotada em e por toda a cadeia de comando do governo que legitimamente assume a mudança como sua tarefa precípua.
Sem essa atitude, o poder, que nunca cansa de ser o que é, permanecerá o que sempre foi... e o que seria a mais profunda transformação se converte, surdina e ardilosamente, em mera alternância.
Referências
DELEUZE, Giles. Ser de esquerda (entrevista). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_Wer1VGBZi8&feature=youtu.be>.
RICOEUR. Paul. O paradoxo político in. História e verdade. Tradução de F. A. Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense, 1968, pp. 251-276.
WEIL, Éric. Filosofia Política. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1990.
Francisco Valdério é professor na Universidade Estadual do Maranhão e doutorando em filosofia pela PUC/SP ([email protected])