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O índice pluviométrico no período chuvoso que se encerrou foi inferior ao ano passado e insuficiente para recompor os níveis dos rios e reservatórios

A ONU diz que uma pessoa pode viver com 80 litros de água por dia. O ideal é que não se ultrapassassem 110 litros. No Brasil, o consumo médio por pessoa chegou a 167 litros, por dia, em 2013. Na capital fluminense, por exemplo, o consumo foi de 330 litros. Temos, ainda, outro grave problema, que são as perdas registradas nos sistemas de abastecimento. São perdas de volumes de água e perdas financeiras no país que chegam a quase 40%.

A água que entra pelo cano e vaza: a cada 10 litros 4 podem se perder nos sistem

A água que entra pelo cano e vaza: a cada 10 litros 4 podem se perder no sistema de abastecimento. (Foto: Renato Silvestre/Folhapress)

A crise hídrica é um dos fenômenos da atualidade, sem precedentes, que já prejudica a vida de milhões de brasileiros e brasileiras. No entanto, não é um problema que se restringe apenas ao Brasil. A Organização das Nações Unidas (ONU) fez um alerta global sobre os efeitos da escassez de água, alarmante, no 7º Fórum Mundial da Água, na Coreia do Sul, realizado em abril deste ano.

A partir do relatório "Para um futuro com segurança hídrica e alimentícia", do Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), cercado dos maiores especialistas do mundo, a ONU apontou três cenários de grande preocupação. A previsão é de que em dez anos, portanto até 2025, serão 48 os países que não terão condição de oferecer água suficiente para a população. Isso deverá atingir quase 3 bilhões de pessoas no planeta. Em mais cinco anos, ou seja, até 2030, a demanda por água doce no mundo estará em um patamar 40% superior à oferta de água disponível. Vinte anos depois, em 2050, de cada três pessoas no mundo, duas sofrerão muito pela falta de água.

Isso nos coloca uma reflexão sobre a importância, a relevância, a prioridade, acima de tudo, da água para nossa sobrevivência. Parece-nos uma contradição, porque aprendemos, desde sempre, que vivemos na Terra, chamada de “Planeta Água” – porque tem, sim, muita água. Ocorre que 97,5% dela é salgada, nos mares e oceanos, imprópria para o uso humano e para o processo de produção.

Da pouca porção de água doce que temos no mundo, cerca de 70%, dois terços, está congelada nas calotas polares. O outro quase um terço está no subterrâneo, nos aquíferos, alguns de grande profundidade, de difícil acesso, e cuja utilização intensiva nos faria degradar ainda mais nosso solo, porque esse recurso leva um tempo para ser recomposto.

Das águas superficiais que acessamos sobra 0,007%, que está nos rios, lagos e pântanos, de onde o mundo a retira para sua sobrevivência e para seu consumo. Nesse contexto trágico, o Brasil aparece como privilegiado, porque sozinhos detemos 12% da água doce de superfície do planeta. Temos o maior rio em volume de água, o Amazonas; a maior bacia hidrográfica, a Bacia Amazônica. Segundo a FAO, esses 12% representam um volume 40% maior que o disponível na Europa e 25% superior ao disponível no continente africano. Mas esse privilégio reverte-se em novo desafio, porque a água aqui não está distribuída igualmente por todo o nosso território.

Nós temos territórios com grande porção de água, como a formada pelas Bacias Amazônica e Tocantins-Araguaia, que compreende quase toda a Região Norte e a Centro-Oeste, poucos adensadas, e fica com 87% de toda a água do Brasil. Os outros 90% da população brasileira estão mais ao litoral e têm disponíveis apenas 13% dessa água. A Região Sudeste, de grande população, tem apenas 6% de água. A Nordeste, também de grande população, apenas 3%.

Portanto, esse Brasil cuja água é mal distribuída, aliada a questões como gestão inadequada dos recursos hídricos, poluição de mananciais, perdas, desperdício e assoreamento de rios, nos leva a refletir sobre a combinação entre pouca água e muita gente concentrada, que está na gênese da crise hídrica em que vivemos hoje. Regiões como a Nordeste e a Sudeste passam por um período crítico.

Soma-se a isso um fenômeno climático novo que se manifesta, a partir de 2012, na Região Nordeste e, a partir de outubro de 2013, na Sudeste: a redução drástica dos níveis de chuvas mensais, quando comparados com todo o histórico desde 1930. Significa que, de 2012 para cá, chove menos do que já choveu durante todo o período histórico desde 1930.

Esse novo fenômeno, por ter pouco tempo, é ainda impreciso, e os especialistas não podem afirmar exatamente o que está acontecendo e quais são suas causas, mas os efeitos já são sentidos fortemente na redução de volume dos rios, assim como na redução de volume dos reservatórios, impactando o abastecimento humano, na redução de água disponível para irrigação na agricultura e com reflexos fortes na geração de energia, pois os reservatórios estão em seus níveis mais baixos.

A seca atual, agravada pelo fenômeno climático novo, atingiu fortemente o nordeste e o sudeste do país. Grandes regiões metropolitanas, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, estados como o meu querido Espírito Santo e todo o semiárido nordestino vêm sofrendo muito pela pouca disponibilidade de água, estabelecendo-se, dessa forma, uma crise que tem gerado conflitos entre populações e conflitos até mesmo entre estados. Diante de tão grave quadro, precisamos agir urgentemente.

Foi pensando nisso que, quando cheguei à Câmara dos Deputados, propus, através do Requerimento nº 1/2015, a criação da Comissão Especial da Crise Hídrica no Brasil, pela Mesa Diretora. Composta por 27 deputados e presidida pelo deputado Celso Pansera, a comissão, da qual sou relator, foi instalada em 31 de março, e é em torno dela que tenho trabalhado nesses primeiros meses de mandato.

Vimos já na primeira audiência pública que realizamos, como noticiou o Jornal do Brasil em sua edição de 5 de maio, a gravidade da crise hídrica de 2015, mais aguda que a de 2014. Essa conclusão, no início dos trabalhos da comissão, foi apontada pelo presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu, e por demais especialistas presentes. Eles verificaram, por meio de dados apresentados, que o índice pluviométrico nesse período chuvoso que se encerrou foi inferior ao do mesmo período do ano passado e insuficiente para recompor os níveis dos rios e reservatórios, principalmente nas Regiões Sudeste e Nordeste.

Entramos há pouco no período da seca, com pouca ou quase nenhuma chuva. E podemos enfrentar uma situação ainda mais grave do que a vivida em 2014. Para isso, a comissão pretende se dedicar a temas, a debates significativos, para compreender e poder superar esse desafio.
Um primeiro olhar será voltado para a questão do consumo de água no país. Reduzi-lo é uma ação imediata e necessária. Infelizmente, o Brasil é um país que consome água em níveis mais elevados que o recomendado pela ONU.

A ONU diz que uma pessoa pode viver com o mínimo de 80 litros de água por dia. O ideal é que não se ultrapassassem 110 litros. No Brasil, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério das Cidades, o consumo médio do brasileiro chegou a 167 litros por pessoa, por dia, em 2013. Em alguns estados, como o Rio de Janeiro – que sofre muito com os efeitos da crise –, é ainda mais elevado. Em 2013, ultrapassou os 250 litros, mais que o dobro do limite máximo preconizado. Quando se olha para a capital fluminense, a preocupação é ainda maior: 330 litros, três vezes o recomendado.

Acontece que esse elevado consumo está impactando negativamente a disponibilidade de nossa água. Precisamos fazer um debate com o país para mudar a cultura e nossa relação com um recurso que vital. Vivemos sempre olhando a água sob o aspecto da abundância. Olhando para a torneira e vendo uma água que não cessa. Precisamos nos reeducar e compreender que esse é um bem escasso e finito.

Temos, ainda, outro grave problema, que são as perdas registradas nos sistemas de abastecimento. A água que entra pelo cano e vaza, desaparece entre sua captação e a chegada até o cliente, até o cidadão. São perdas de volumes de água e perdas financeiras no país que chegam a 37%. Ou seja, quase 40%. Imagine que de cada 10 litros de água 4 podem se perder. De cada R$ 10 investidos para abastecimento, R$ 4 se perdem, enquanto o Brasil precisa de investimentos para melhorar o saneamento e o abastecimento de água.

O Nordeste, por exemplo, tem elevadas perdas, na casa de 45%, e apresenta a maior necessidade de investimentos para ampliação de sistemas e, também, de novos mananciais para captação de água. Considerando-se, ainda, a forte escassez hídrica do semiárido e a pequena disponibilidade de água das bacias hidrográficas litorâneas, a situação se agrava muito.

Além de escassa, nossa água, de modo geral, é de qualidade ruim. O país que tem a maior quantidade de água doce do mundo ocupa a triste 112ª posição no ranking mundial em termos de cobertura de saneamento, segundo estudos do Instituto Trata Brasil e do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável.

Ainda de acordo com essas avaliações, 51% da população brasileira não tem acesso a coleta de esgoto. Da parte coletada, 60% não é tratada, e o esgoto é lançado in natura nos cursos d’água pelo país. E uma parte considerável da população, cerca de 18%, nem sequer tem acesso a água tratada para seu consumo.

É importante salientar que o maior poluidor e aquele que determina a qualidade ruim das nossas águas é o saneamento básico, o esgoto maltratado e diluído nos cursos d’água em todo o país. É também importante pensar na agricultura e em seu intenso uso de água para a produção dos alimentos. Nesse sentido, abro parênteses para frisar que não podemos eleger a agricultura como vilã, porque, se precisamos de água, também precisamos de alimento. E, para ter alimento, é preciso ter água para sua produção. Ocorre que toda essa previsão drástica elaborada pela ONU está baseada na crescente demanda por alimentos, porque a população cresce no mundo, e na intensa utilização de água para irrigação na produção de alimentos.

O Brasil, infelizmente, desperdiça muita água na produção agrícola. A agricultura usa aproximadamente 70% de toda a água doce de que dispomos para fazer o processo de produção dos alimentos. O uso de sistemas de irrigação obsoletos, aliado à falta de manejo adequado do solo e também ao não planejamento adequado do cultivo, tem levado o país a jogar fora grande quantidade de água no processo de produção e processamento dos alimentos.

Existem outros caminhos para a agricultura continuar produzindo alimentos e usar a recurso de forma racional. É urgente a incorporação de tecnologia, como fez Israel, que utiliza em sua produção agrícola 44% (ou seja, quase a metade) de água de baixa qualidade, de água reciclada – Israel recicla e faz reúso; metade da produção agrícola emprega tecnologia que nós podemos utilizar –, assim como a busca de equipamentos que sejam precisos e não desperdicem água ao irrigar plantações. E mais: equipamentos e tecnologias que controlem milimetricamente a vazão de água, para que ela chegue à planta e possa fazer seu papel de irrigar e produzir alimentos.

Reciclagem e reúso também são um caminho para a indústria no Brasil. O setor consome cerca de 12% de nossa água. Em muitos casos, ela é captada em grande volume e despejada novamente nos cursos d’água, muitas vezes já com a contaminação dos processos industriais. É preciso que a indústria avance no Brasil para reutilizar a própria água do processo de produção, fazendo um ciclo fechado em relação ao recurso. Isso traz economia de água e cooperação para os desafios, não só no Brasil, mas também na indústria, e já é comprovado um retorno financeiro, porque a economia é algo já verificado.

A título de exemplo, rememoro o caso do setor automobilístico no país, que cresceu significativamente com os incentivos do ex-presidente Lula e da presidenta Dilma. Muitas montadoras se incorporaram ao parque automotivo brasileiro, que, de três anos para cá, integrou tecnologia à produção e hoje o reúso de água está em praticamente todo o setor. Nesse período, já se verificaram quase 30% de economia de água no processo produtivo, segundo dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).

Outra questão importante a observar é a relação entre a água e a geração de energia elétrica para o Brasil. Esse insumo fundamental para o desenvolvimento, essa energia que é tão importante para nossa sobrevivência, é altamente dependente da produção hidráulica, ou seja, da energia que é gerada com a movimentação de água em grandes reservatórios, em grandes represas para esse fim. Cerca de 90% do suprimento de energia elétrica provém de geração hidráulica. Acontece que, quando o setor elétrico reserva grandes quantidades de água, apenas o faz com o objetivo de produzir energia, e a situação que vivemos hoje exige que os reservatórios possam fazer outro papel, o papel de organizar a vazão de água, porque os reservatórios acumulam água nas cheias e, durante o período de seca, organizam a vazão de forma a manter as bacias hidrográficas seguintes com um nível razoável de água. Além disso, os reservatórios são necessários para o abastecimento humano.

No campo da energia, é preciso avançar para diversificar nossa matriz energética, caminhando na direção das energias de fontes limpas, renováveis. Destaco o papel da energia eólica, crescente no país e de grande potencial, com investimentos cujo valor vem caindo porque os equipamentos estão mais baratos. Podemos avançar muito. Cito a energia solar, que tem no Brasil um grande potencial. Podemos inclusive imaginar um país que tenha casas sustentáveis gerando energia para o sistema elétrico.

Iniciamos, na comissão, um profundo diagnóstico sobre esse tema, com planejamento e parcerias com governos estaduais, municipais, demais poderes, comitês de bacias, academia, especialistas e sociedade civil. A comissão quer trazer, ao fim do seu trabalho, após audiências públicas nos estados mais afetados e visitas técnicas a iniciativas que sejam referências na reutilização de água, um relatório que aponte na direção de três principais caminhos. O primeiro é uma atualização da legislação brasileira sobre a água e sobre os recursos hídricos, para que seja rígida onde for necessário para proteger a água, cujo uso prioritário tem de ser o consumo humano, e possa trazer novas alternativas, sempre considerando a Lei nº 9.433/97, da Política Nacional de Recursos Hídricos, como vetor dessa organização legislativa.

Um segundo campo de atuação para as medidas será de proposição de políticas públicas para os governos no âmbito federal, municipal e estadual. Aproveito para apontar para o pagamento por serviços ambientais, que hoje é piloto no Brasil, mas, se estendido de forma universal, pode viabilizar a proteção das nascentes.

O terceiro e último foco é o estudo de novas tecnologias para o uso racional de água. Queremos investigar no Brasil e no mundo o que há de mais moderno para oferecer à sociedade alternativas com esse propósito.

Há muito trabalho a fazer. E não sejamos tão pessimistas. Se a Terra é o “Planeta “Água”, o Brasil, pela quantidade de água que tem, é o país das águas. E esse país, que é também celeiro de alimento no mundo, precisa enfrentar a questão da segurança hídrica, como fez em relação à redução da extrema pobreza e da fome.

O Brasil, que era o país de famintos, hoje é exemplo no mundo, no combate à fome, como declarou o FMI. Pelo segundo ano consecutivo, lidera o ranking de combate à fome, aferido pela ONG ActionAid, que mede o progresso de países em desenvolvimento na luta contra a pobreza.

Assim, se a ONU mira o futuro do planeta e vê desastres humanitários, olho para a frente e vejo um Brasil que pode ser referência no mundo na preservação dos seus recursos hídricos, na geração de energia sustentável e no uso racional da água. Se é um sonho, vamos trabalhar juntos, confiar e fazer acontecer.

Givaldo Vieira é deputado federal (PT-ES), relator da Comissão Especial da Crise Hídrica no Brasil