Sociedade

Dos 2 milhões de pessoas que migraram do campo para as cidades entre 2000 e 2010, a metade era de jovens sem condições de produzir na propriedade dos pais

Há dois desafios postos para a juventude rural: conquistar o seu lugar no espaço rural e disputar seu lugar no âmbito das juventudes. Ao mesmo tempo em que os jovens precisam lidar com a invisibilidade da juventude nos espaços decisórios do rural (família, associações, cooperativas, colegiados territoriais etc.), devem também disputar espaço e pautas com jovens das cidades e lutar pela superação da visão preconceituosa que identifica o rural como residual, atrasado e sem papel no desenvolvimento nacional

Apesar das dificuldades há milhares de jovens brasileiros inovando e gerando ren

Apesar das dificuldades há milhares de jovens brasileiros inovando e gerando renda no campo. (Foto: Ascom/MDA)

“Se o campo não planta, a cidade não janta.” “Se o campo não roça, a cidade não almoça.” Essas duas palavras de ordem são há muito conhecidas e entoadas em encontros, congressos, festivais e demais fóruns nos quais a juventude rural se encontra presente. Expressam a importância da produção de alimentos, proveniente da agricultura familiar e camponesa brasileira, para a vida das pessoas e o desenvolvimento do país. Traduzem o espírito da interdependência entre os Brasis rural e urbano.

A produção de alimentos no Brasil, de fato, é em sua maior parte proveniente da agricultura familiar. Ela fornece, por exemplo, 87% da produção da mandioca, 70% do feijão, 58% do leite, 59% da carne suína. Se é verdade que a produção da agricultura empresarial ou agronegócio chama a atenção por recordes de safra e exportação anuais, é também verdade que ela não abastece nosso mercado interno. A produção de alimentos que garante nossa segurança alimentar e nutricional e, por que não, nossa soberania alimentar, diante de eventual escassez externa e alta de preços, vem majoritariamente das pequenas propriedades ruraisSão quatro as características que identificam essas pequenas propriedades, conforme determinou a Lei no 11.326/2006, conhecida como a Lei da Agricultura Familiar: a) área de até quatro módulos fiscais; b) mão de obra predominantemente da própria família; c) renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; d) direção familiar do empreendimento..

São elas que garantem nossa comida de verdade no campo e na cidade, para usarmos o tema da 5ª e última Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em 2015. Não seria exagerado dizer que a comida de verdade provém, portanto, da agricultura de verdade. Aquela que não utiliza agrotóxicos, que estabelece uma relação saudável com a natureza, em especial com os rios e mananciais, e que prima por relações sociais e de trabalho dignas. As experiências agroecológicas são o maior exemplo dessa forma de produção. Promovem o encontro dos saberes científico e tradicional, gerando, em uma relação holística, alimentos saudáveis e diversificados, plantas medicinais, vida e desenvolvimento.

Segundo o Censo Agropecuário de 2006, o útimo realizado pelo IBGE, dos 5.175.489 estabelecimentos rurais do país 84,4% são pequenas propriedades; estas ocupam 80,25 milhões de hectares, ou 24,3% do território nacional (FRANÇA, DEL GROSSI, MARQUES, 2009). Em termos populacionais, o Censo Demográfico de 2010 verificou 30 milhões de pessoas vivendo em áreas rurais, sendo 27% jovens. Dado que a população brasileira jovem é de 51 milhões de pessoas, tem-se que uma em cada seis jovens é do meio rural (IBGE, 2011).

Cabe aqui um parêntesis para contextualizar quem é essa juventude rural. São jovens, mulheres e homens, camponeses, agricultoras/es, familiares, acampados e assentados da reforma agrária, trabalhadoras/es rurais, e dos povos e comunidades tradicionaisEm termos jurídicos, são os públicos das leis nº 11.326/2006 e nº 2.188/2010.. Um segmento diverso e cada vez mais diverso de jovens que já se constituem enquanto categoria social e que, nas últimas duas décadas, vem se consolidando politicamente, sendo reconhecidos como sujeitos de direitos e assumindo protagonismo na luta do campo no Brasil (COSTA, 2009).

A suposta marginalidade do contingente populacional rural brasileiro (aproximadamente 15% da população), expressa nos dados do censoA delimitação dos perímetros urbano e rural dos municípios é definida por lei municipal, a qual é frequentemente influenciada ou até submetida a toda sorte de interesses econômicos, sociais e ambientais (SANTORO e PINHEIRO, 2004)., contrasta com o imaginário externo historicamente carimbado no Brasil. Enquanto a visão internacional nos identifica como um país com vocação inequívoca para produzir e exportar alimentos e commodities agrícolas, internamente difunde-se cada vez mais a ideia que somos um país cada vez mais urbano. Nem um nem outro. O peso das exportações agrícolas é, de fato, significativo (46% das exportações em 2015), mas a diversificação da nossa produção é grande e tem crescido nas últimas décadas. Hoje exportamos desde aviões a tecnologias de exploração de petróleo e outras fontes de energia, biotecnologias, dentre outras. Tampouco somos um Brasil 85% urbano como alguns insistem em afirmar e reafirmar. Dos 5.563 municípios brasileiros, 70% (aproximadamente 3.800) possuem menos de 20 mil habitantes e 90% (aproximadamente 5 mil) possuem menos de 50 mil habitantes. Podemos considerar as zonas urbanas desses pequenos municípios tão urbanas quanto são as de São Paulo, Recife ou até mesmo Campina Grande (PB) e Chapecó (SC), por exemplo? Esse questionamento foi feito por um grupo de pesquisadores que, a partir de uma pesquisa sobre a nova ruralidade brasileiraEstudo fruto da parceria o entre o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (Iica) e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério do Planejamento, BNDES, IBGE e BNB. Para conhecer mais, ver http://www.iicabr.iica.org.br/wp-content/uploads/2014/03/S%C3%A9rie-DRS-vol-21.pdf (Acesso em fev./2016)., mostra que as populações da maior parte das cidades do país possuem fortes traços, laços e hábitos rurais. Municípios de 3 mil, 5 mil, 7 mil habitantes são, na realidade, municípios rurais.

O rural ampliado do qual estamos falando extrapola as atividades estritamente agrícolas e passa a contar com o turismo rural, a ecogastronomia e a oferta de serviços em geral no campo. Em grande parte, esse novo Brasil rural tem sua origem nas políticas de distribuição da renda, como o Bolsa Família e o aumento do salário mínimo, que monetizaram e movimentaram as economias das pequenas cidades; é também fruto da interiorização dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (os IFETs) e das universidades públicas; do aumento do crédito e microcrédito agrícola com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e das possibilidades de compras públicas a ele acopladas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (o Pnae), para citar algumas das políticas que vêm mudando a cara do Brasil rural nos últimos anos.

Assim, dos 15% de população rural contabilizados pelo IBGE, o estudo reestimou nossa população rural em cerca de 37% – e, nesse caso, a população jovem rural passaria de 8 milhões para cerca de 20 milhões de pessoas. Esse redimensionamento do rural (que, convenhamos, faz sentido para qualquer um de nós que conhece a realidade dos pequenos municípios brasileiros) deve implicar consequências de duas naturezas. O imaginário do Brasil urbano, e cada vez mais urbano, passa a ser revisto. E tal revisão deve necessariamente ser acompanhada de um redirecionamento dos investimentos e das políticas públicas às populações e territórios rurais, proporcionalmente a sua efetiva representação populacional e a sua distribuição espacial.

Perceber esse novo Brasil rural contemporâneo, isto é, tirá-lo da invisibilidade, tem impacto direto sobre a percepção que a própria população rural tem de si mesma. Geralmente, o rural é visto como espaço atrasado, superado, incapaz de prover perspectivas de vida e de desenvolvimento. Submetidos a essa leitura pelo restante da sociedade, muito marcada no ensino escolar – nos textos e figuras dos livros didáticos e nos discursos dos professores –, assim como em programas de rádio e televisão, as e os jovens rurais são a todo momento desestimulados a permanecer no campo. Não à toa, a juventude é a maior responsável pelos índices de êxodo rural brasileiro, que apesar de terem diminuído, nas últimas décadas, ainda são positivos. A migração campo-cidade permanece sendo um componente importante da dinâmica demográfica brasileira. E dos 2 milhões de pessoas que migraram do campo para as cidades entre os anos de 2000 e 2010, um milhão eram jovens (IBGE, 2010). Jovens do campo, das florestas e das águas que não desejam ou não veem condições de seguir produzindo na propriedade dos pais, não têm recursos para adquirir sua própria terra e não têm acesso à política de reforma agrária.

Cabe destacar a condição ainda mais precária a que estão submetidas as jovens mulheres. A cultura patriarcal do campo e a desigualdade nas relações de poder nas famílias tornam as possibilidades de permanência no ambiente rural e de sucessão das propriedades familiares mais difíceis para elas. Em decorrência disso, soma-se ao fenômeno do envelhecimento do campo a masculinização do espaço rural brasileiro. No caso dos povos e comunidades tradicionaisDefinidos pelo Decreto no 6.040/2007 como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. Abrangem os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, ciganos, pescadores artesanais, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, veredeiros, comunidades de fundo de pasto, faxinalenses, marisqueiras, varjeiros, caiçaras, sertanejos, jangadeiros, açorianos, campeiros, varzanteiros, pantaneiros, geraizeiros, caatingueiros, dentre outros., a cultura do respeito aos mais velhos, às tradições e às ancestralidades reforça as impossibilidades de renovação e mudança, desafiando ainda mais os padrões de sucessão das propriedades e terras coletivas.

Do ponto de vista da sua afirmação enquanto sujeito de direitos, há dois desafios postos para essa juventude rural: conquistar o seu lugar no espaço do rural e disputar seu lugar no âmbito das juventudes. Isto é, ao mesmo tempo em que os jovens precisam lidar com a invisibilidade da juventude nos espaços decisórios do rural (família, associações, cooperativas, colegiados territoriais etc.), devem também disputar espaço e pautas com jovens das cidades e lutar pela superação da visão preconceituosa que identifica o rural como residual, atrasado e sem papel no desenvolvimento nacional.

As angústias e dificuldades vivenciadas por essa juventude já deveriam ser motivo suficiente para o repensar das políticas públicas que precisam chegar nessas cidadãs e cidadãos. Afinal, são milhões de pessoas sem acesso ou com acesso precário a direitos e políticas essenciais, que, a começar pela terra – como território e fator de produção  –, estendem-se à educação do campo com uma pedagogia de alternânciaOriginada na França dos anos 1930 e na Itália dos anos 1950, a pedagogia da alternância chegou ao Brasil em 1969 e é uma das bases da Educação do Campo. Sua proposta pedagógica e metodológica é capaz de atender as necessidades da articulação entre escolarização e trabalho, na medida em que intercala tempo-escola e tempo-comunidade. Envolve também a contextualização do conhecimento científico e a aproximação deste às realidades locais (MOLINA e FREITAS, 2011), à saúde, à moradia digna, à mobilidade, à cultura e ao esporte, à inclusão digital, dentre outras. Estamos falando de vidas, de promoção e oferta de qualidade de vida e de cidadania.

Mas há ainda um argumento de fundo que traz a questão da permanência da juventude no campo para o centro do debate. Conceitualmente condensado pela literatura e pelas organizações da sociedade civil no termo sucessão rural, a condição e as perspectivas de permanência da juventude no campo, nas florestas e nas águas tornam-se chave para a dinâmica socioeconômica e cultural do mundo rural brasileiro. Isso porque o esvazimento do campo acaba por dar prazo de validade ao modelo familiar e camponês de desenvolvimento rural, gerando impactos diretos e significativos também sobre as cidades, com as consequências já conhecidas de inchaço dos centros urbanos e alteração análoga de suas dinâmicas socioeconômicas e culturais.

Retomando os argumentos acima mencionados relativos ao papel da agricultura familiar e camponesa, não é exagero afirmar que, do ponto de vista do projeto nacional, se não houver uma política voltada para o enfrentamento da vulnerabilidade da juventude rural e para a garantia de condições para que ela permaneça no campo, em pouco mais de um par de décadas o Brasil irá enfrentar, por exemplo, problemas de abastecimento alimentar, segurança e soberania hídrica e energética. Quando voltamos a lupa para as dimensões sociocultural e ambiental, a ameaça recai sobre nosso rico patrimônio natural e imaterial. São nossas línguas, danças e tradições indígenas e quilombolas, conhecimentos medicinais tradicionais, formas de cultivo do solo, e de animais, de pesca artesanal, de extração de frutas, castanhas e matérias-primas para a confecção de moradias, barcos, artesanatos e tantas outras práticas que podem se perder no intervalo de uma ou duas gerações.

A despeito de todas as dificuldades mencionadas, há no Brasil afora milhares de exemplos de jovens que vêm inovando, gerando renda e criando condições de permanência no campo. As práticas agroecológicas englobam as alternativas mais populares entre a juventude, ao lado do desenvovimento e aplicação de tecnologias sociais nas atividades agrícolas, do beneficiamento dos produtos, ou seja, da agregação de valor à produção por meio de agroindústrias familiares e de pequeno porte. O fato de a escolaridade média das e dos jovens rurais ser bastante superior à de seus pais, os torna muito mais capazes e propensos a adotar tecnologias, mecanizar quando possível e preciso a produção agrícola, e viabilizar cultivos e outras atividades. Há também esforços no sentido da criação e ampliação de redes de comunicação e interação entre eles próprios, para a troca de informações e conhecimentos.

Se o Brasil quer, e é disso que precisamos, continuar diversificando a produção interna de alimentos saudáveis, de alimentos de verdade, de forma a assegurar nossa soberania alimentar, hídrica e energética e promover o desenvolvimento, o olhar sobre as e os jovens rurais é fundamental. Para aqueles que vivem e estudam o rural, essa necessidade está mais para uma constatação, ou seja, está dado que precisamos olhar e investir na juventude rural com urgência. Contudo, ainda há um longo caminho a percorrer no sentido de que esse debate ganhe também a cidade, pesquisadores e ativistas urbanos. As grandes questões dos debates agrário e agrícola brasileiro continuam postas, assumem novas dimensões e atualizam-se, mas permanecem.

Referências bibliográficas

COSTA, Elisa Guaraná. Os Jovens Estão Indo Embora? Juventude rural e a construção de um ator político. Rio de Janeiro: Mauad, 2009.

FRANÇA, Caio; DEL GROSSI, Mauro; e MARQUES, Vicente. O Censo Agropecuário 2006 e a Agricultura Familiar no Brasil. Brasília: MDA, 2009.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sinopse do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2011.

MOLINA, Monica; FREITAS, Helana. Educação do Campo. Em Aberto, v. 24,  nº 85, p. 1-177. Brasília, abr. 2011.

SANTORO, Paula (org.); PINHEIRO, Edie (orgs.) O Município e as Áreas Rurais. (Cadernos Pólis, nº 8), 64 p. São Paulo: Instituto Pólis, 2004.

Luiza Dulci é economista com mestrado em Sociologia, assessora de Juventude do Ministério do Desenvolvimento Agrário