Internacional

Embora seja sempre muito difícil, e ainda neste momento de fluidez, fazer especulações a respeito de desdobramentos futuros, atrevo-me a  algumas cogitações

Foi negociado em Munique um acordo de cessação de hostilidades, esforço capitaneado por Rússia e EUA. Parcial e complexo, o acordo  envolve a participação, ainda que não muito confiável, de numerosos grupos rebeldes, mas exclui explicitamente o Estado Islâmico e Al Nusra. Faz parte desse entendimento que uma força-tarefa conduzida pelos EUA e pela Rússia decidirá quais serão os alvos permitidos para operações militares

O acordo dará tempo para fazer chegar ajuda humanitária às populações

O acordo dará tempo para fazer chegar ajuda humanitária às populações sitiadas. (Foto: Abdalrhman Ismail/Reuters)

A situação na Síria continua sendo dura, mortífera e complexa. A intervenção da Rússia parece ter alterado o rumo da guerra, não só em favor de Assad, mas também no sentido de uma reestruturação política do Oriente Médio e do seu próprio status global. Isso coloca os Estados Unidos em uma encruzilhada.

Até aqui, o governo americano procura manter-se fiel a uma estratégia que tem como primeira premissa não aceitar a permanência de Assad na presidência do país. Para isso já havia decidido ajudar com recursos e armas os rebeldes sírios, mesmo sabendo que vários deles têm vinculações com organizações terroristas como a Al Qaeda e o Estado Islâmico. Os grupos rebeldes, e há centenas deles na Síria, nunca foram nem são coerentes entre si. Ao contrário, por terem diferentes lealdades por vezes chegam a lutar uns com os outros. Em consequência dessas infindáveis confusões, na prática o esforço militar norte-americano foi menor e menos eficiente do que se esperava.

Quando a Rússia decidiu intervir militarmente na guerra, suas forças já estavam reaparelhadas e puderam mostrar na fase atual uma sólida superioridade aérea, a ponto de que hoje é ela que controla os céus da região norte da Síria. Nem os EUA nem Israel objetaram a ação russa, e estabeleceram acordos e entendimentos com ela para evitar fricções acidentais.

O principal cenário de combate é a região norte-noroeste da Síria, até a fronteira com a Turquia, que tem como epicentro a cidade de Aleppo, a maior do país, com mais de 3 milhões de habitantes e que está nas mãos dos rebeldes há três anos. Com o apoio dos caças e bombardeiros russos e seus moderníssimos mísseis S-400, as tropas reanimadas de Assad sitiaram Aleppo, que pode cair em um futuro não muito distante, retomaram diversas cidades menores e mais próximas da fronteira sírio-turca e ameaçaram cortar as linhas de suprimento dos rebeldes, operadas por diversas facções, sobretudo o Estado Islâmico e Al Nusra, grupo ligado à Al Qaeda, pelo qual passam armas, petróleo (principalmente do EI) e refugiados.

A possibilidade da queda de Aleppo e do fim das linhas de conexão entre os rebeldes e a Turquia poderá marcar o início do fim da guerra. Nesta última semana, um oficial superior americano, ao contrário do que vinha dizendo o governo de Washington, afirmou: “Pode haver uma solução militar... só que não é a nossa, é a de Putin” (New York Times, 11/2/2016). O principal negociador americano, o próprio secretário de Estado John Kerry, também falou, na terça-feira: “Todos nós estamos muito, muito conscientes de como o momento atual é crítico” (idem).

Nessa situação foi negociado em Munique um acordo de cessação de hostilidades, esforço capitaneado em conjunto por Rússia e EUA; acordo parcial e complexo, que envolve a participação, ainda que não muito confiável, de numerosos grupos rebeldes, mas exclui explicitamente o Estado Islâmico e Al Nusra.

Faz parte desse entendimento que uma força-tarefa conduzida pelos EUA e pela Rússia decidirá quais serão os alvos permitidos para operações militares. O chanceler russo Serguei Lavrov disse perceber uma “mudança qualitativa na política militar dos EUA para cooperar com a Rússia”, e acrescentou: “A chave é a cooperação entre os nossos militares”. De sua parte, Kerry assinalou que “não há mudança na política (dos EUA)”.

O acordo pode propiciar um tempo importante para fazer chegar ajuda humanitária às populações atingidas e cercadas por tropas hostis e também para aprofundar negociações em busca de um entendimento mais duradouro.

O papel de Moscou nesse contexto é crucial. As ações bélicas das últimas semanas colocaram a Rússia, o governo de Assad e seus aliados em posição de força, mas ainda não garantiram o controle militar da região norte e o corte das comunicações através da fronteira sírio-turca.

Na percepção de muitos, a posição russa permanece forte. O enviado especial da ONU, Staffan de Mistura, disse a respeito: “Eu não posso parar Putin”. E, referindo-se aos EUA e seus aliados, acrescentou: “Vocês têm como dizer não a Putin?” (New York Times, 13/2/2016).

De seu lado, o ministro da Defesa da Rússia afirmou que “seu país não cederá ante ações do Ocidente que visem impedir o esforço que deu a Assad um poderoso impulso no campo de batalha” (idem).

Rearrumação geral

Embora seja sempre muito difícil, e mais ainda neste momento de fluidez, fazer especulações a respeito de desdobramentos futuros, atrevo-me a fazer algumas cogitações.

Rússia

A jogada político-estratégica de Putin com a intervenção na Síria foi brilhante e bem executada. Com esse ato de “atrevimento” e com o êxito, até aqui obtido, ele mostrou que a ação russa não tem nada de atrevida, pois apenas recoloca o país entre as potências principais, exerce prerrogativas que os próprios EUA e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) já vinham exercendo na Síria, e mostra que quem arma os vizinhos da Rússia contra ela pode esperar uma reação no campo estratégico-militar.

Não se pode saber agora se o cessar-fogo terá duração curta ou longa, mas é evidente que a Rússia não deseja perder a vantagem estratégica que alcançou na Síria. Em resumo, dependendo ainda da reação dos EUA aos seus movimentos mais recentes, a perspectiva para a Rússia é bastante favorável.

A se confirmar no norte da Síria uma derrota do Estado Islâmico e dos grupos terroristas sunitas (que se articulam com os muçulmanos da Chechênia e outras áreas do Cáucaso, nas fronteiras do país), a Rússia reforçará sua própria segurança.

Obrigando a Turquia a manter-se dentro de suas fronteiras, tornará possível um avanço dos curdos desde o limite oriental da fronteira com a Síria até o mar.

Poderá formar uma nova aliança no Oriente Médio com Irã, curdos, Hezbollah e talvez mesmo o Iraque.

EUA

Se a Rússia efetivamente conseguir desarticular a rede rebelde e manter Assad no poder, os EUA correrão o risco de sofrer uma forte perda de influência na região e no Oriente Médio como um todo.

Por outro lado, os EUA poderão, em princípio, ampliar suas ações militares, possivelmente em conjunto com a Otan, para forçar uma solução final menos desfavorável, mas essa é uma alternativa improvável, pois um conflito total é algo impensável e a manutenção de um conflito de baixa intensidade é onerosa e perigosa.

A esse respeito, o presidente Obama, neste seu último ano de governo, certamente não desejará liderar uma escalada militar no Oriente Médio, coisa que tem buscado evitar com prudência e bom senso ao longo dos últimos anos. Por outro lado, deve-se admitir que ele não tem pleno controle das decisões estratégicas do establishment americano, e nesse contexto será curioso observar as implicações da situação sobre as eleições de novembro e a atitude que o novo presidente tomará.

O perigo de uma confrontação entre a Otan e a Rússia só existe na hipótese de Donald Trump ser o novo presidente dos EUA.

Os EUA deverão reestudar e talvez tentar reforçar suas alianças com Israel, Turquia e Arábia Saudita, do que lhe poderão decorrer ônus e dívidas políticas.

Poderão ainda convocar uma reunião internacional para alcançar a paz no Oriente Médio, mas tal reunião só poderia interessar aos EUA se tivesse participação limitada a países escolhidos (sem a presença da China e dos países do Sul, por exemplo), o que diminuiria sua legitimidade.

Turquia

A Turquia pode estar diante de uma situação complicada. Invadir o norte da Síria “para evitar o influxo de novos refugiados” será iniciativa de enorme risco, uma vez que a Otan não está obrigada a apoiar seus países-membros em ações ofensivas, e seus membros europeus pensarão muito antes de decidir enfrentar-se com a Rússia, contrariando toda a estratégia dos últimos setenta anos.

Por outro lado, a unificação do norte da Síria sob domínio curdo será vista em Ancara como uma derrota nacional que deverá custar o poder a Erdogan.

Curdos

Poderão ter uma boa oportunidade para fazer reviver a luta em prol da independência do Curdistão, mas terão que negociar também com o Irã e o Iraque que têm dentro de seus territórios significativas populações curdas.

A Rússia apoia os curdos na Síria (assim como os EUA, pelo menos até agora), e talvez Assad não tenha condições de pleitear mais do que um acordo “equilibrado” com os curdos, que, inclusive, proporcionarão a Damasco um escudo contra ofensivas turcas.

A partir das bases aqui discutidas, um Curdistão independente poderia alinhar-se com os aliados regionais da Rússia.

Arábia Saudita

Além de enfrentar uma transição relativamente difícil para o governo do príncipe Salman, os sauditas têm sua imagem desgastada pelo apoio cada vez menos velado que prestam a grupos terroristas sunitas e por sua pouca tradição militar.

É difícil avaliar hoje a eficácia das Forças Armadas sauditas, mas elas não chegam a inspirar temor reverencial. No passado recente não se pode dizer que esse país tenha aumentado seu prestígio.

Europa

A manter-se o cenário aqui esboçado, é possível que a Europa evolua para uma posição mais defensiva, inclusive explorando possibilidades que a livrem de uma nova ampliação do movimento de refugiados em direção a seus países.

Existe sempre a possibilidade de que, se os EUA recuarem de sua posição de inflexibilidade com relação a Assad, a Síria possa, afinal, encontrar a paz. A solução poderia passar pela realização de eleições gerais no país, das quais o partido de Assad poderia participar, em igualdade de condições com os futuros movimentos pacíficos e desarmados da oposição.

José Viegas Filho é diplomata, foi ministro da Defesa do governo Lula (2003-2004) e embaixador do Brasil na Dinamarca (1995-1998), no Peru (1998-2001), na Rússia (2001-2002), na Espanha (2005-2009) e na Itália (2009-2012)