Internacional

A sensação com a lei que “moderniza o sistema de relações trabalhistas” é de que ninguém ficou satisfeito: nem o empresariado, nem as organizações sindicais

A transformação ou revogação do Plano Trabalhista de Pinochet e a gestação de um Novo Código Trabalhista sob a democracia ficou aquém das expectativas. O movimento sindical chileno atravessa uma grave crise de representação e credibilidade e a direita e o empresariado do país dão mostras de defender a qualquer custo um sistema econômico que está em decadência

O debate das relações de trabalho no Chile continua sendo político, social e ético. Foto: Ivan Alvarado/Reuters

O Código Trabalhista chileno de 1979, uma das medidas radicais da ditadura civil-militar, foi sofrendo alterações desde o retorno à democracia, porém, bem como acontece em outras matérias, as mudanças registradas não representam transformações estruturais em relação ao paradigma de origem. A matriz neoliberal que sela a assimetria entre o enorme poder do setor empresarial e as organizações sindicais permaneceu inalterada, motivo pelo qual é imprescindível procurar estabelecer um novo pacto social. Os aspectos fundamentais desse Código Trabalhista, filho da ditadura pinochetista, são resumidos por especialistas da Fundación Sol do seguinte modo: “O Plano Trabalhista correspondeu unicamente a duas leis: uma sobre sindicatos (DL 2.756, publicada em 3 de julho de 1979) e outra sobre negociação coletiva (DL 2.758, publicada em 6 de julho de 1979) (…). Esta nova legislação estava assentada em quatro pilares: 1) Negociação coletiva centrada na empresa (na grande empresa, nos fatos); 2) Greve que não paralisa (permitindo substitutos em greve e limitando ocasiões em que a greve pode ser realizada); 3) Paralelismo de agrupações de trabalhadores (sindicatos pequenos competindo entre si e com grupos negociadores); e 4) Despolitização sindical (ruptura do vínculo entre sindicatos e assuntos gerais da sociedade)”(1).

A proposta original de reforma trabalhista e o projeto de lei aprovado

Os pontos centrais da proposta de reforma trabalhista dada a conhecer em dezembro de 2014 eram: 1) Reconhecimento da titularidade do sindicato na negociação coletiva da empresa; 2) Direito aos benefícios negociados pelo sindicato por filiação sindical; 3) Ampliação do direito à informação dos sindicatos, informação permanente e relevante para o processo de negociação coletiva; 4) Proibição de substituição dos trabalhadores em greve; 5) Existência de um piso mínimo para a negociação coletiva; e 6) Fortalecimento dos direitos da mulher trabalhadora através de diferentes medidas (2). O projeto omitiu aspectos muito relevantes para as organizações sindicais, tais como: 1) A negociação coletiva por ramo da produção; 2) Normas do Código Trabalhista referentes à demissão: o artigo 159, demissão por força maior, e o oprobrioso artigo 161, por necessidades da empresa, que se presta a infinitas arbitrariedades e práticas antissindicais por parte da patronal, trate-se de empresas ou outro tipo de instituições; 3) Implementação de políticas tendentes a promover e preservar o emprego decente, fomentar a institucionalidade do diálogo social e aperfeiçoar a magistratura trabalhista.

Desde o início existiu nos círculos conservadores chilenos um clima antirreforma que perdura até os dias atuais. Os empresários e seus meios de comunicação lançaram uma companha contra essa discreta reforma trabalhista, evitando fazer um debate como corresponde sobre uma reforma tão importante para o país. A sensação que prevalece perante essa nova Lei nº 20.940, promulgada em setembro de 2016, que “moderniza o sistema de relações trabalhistas”, é de que ninguém ficou satisfeito: nem o empresariado, nem as organizações sindicais. É preciso destacar que o debate desse projeto de lei foi muito amplo, participativo e abarcou as associações empresariais, organizações e centrais sindicais, partidos políticos, academia, organizações da sociedade civil, fundações políticas, organizações eclesiásticas e, por certo, um intenso e exaustivo trabalho parlamentar das duas câmaras, de deputados e de senadores.

Finalmente, o processo acabou com a intervenção do Tribunal Constitucional – que é considerado como um quarto poder –, a pedido da direita política e empresarial, o que revela a envergadura do que estava em jogo: a possibilidade de imprimir uma nova marca nas relações de trabalho. Os setores da direita e as associações empresariais, apesar da debilidade do projeto de lei, empreenderam uma resistência poucas vezes vista, depreciando seus objetivos, tergiversando seus conteúdos e recorrendo à mídia em uma grande ofensiva antirreforma trabalhista e antissindical. O mundo do trabalho no Chile, suas organizações sindicais, sociais e políticas esperavam uma reformulação das relações trabalhistas que restituísse efetivamente os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras do país, burlados e pisoteados durante décadas.

Após meses de fortes disputas, com grande ingerência do Ministério da Fazenda, acabou saindo uma reforma deslavada que inclui os seguintes pontos: 1) Ampliação da cobertura e das matérias da negociação coletiva; 2) Consagração do piso de negociação, da última negociação coletiva; 3) Autonomia para as empresas e organizações sindicais acordarem pactos sobre condições especiais de trabalho; 4) Regula-se o direito à informação a organizações sindicais; 5) Simplificação da regulação e do procedimento da negociação coletiva; 6) Reconhecimento da greve efetiva, ficando proibida a substituição de trabalhadores em greve como um direito de exercício coletivo; 7) Representação de mulheres em diretórios sindicais; e 8) Reconhecimento dos sindicatos interempresas e de sua possibilidade de negociar coletivamente(3).

O sindicalismo em seu labirinto

O sindicalismo chileno, representado majoritariamente na Central Unitária de Trabalhadores (CUT)(4), não conseguiu se erigir como um movimento político e social relevante no atual estágio da sociedade chilena. O movimento sindical está atomizado, dizimado e organicamente debilitado. As razões pela quais o sindicalismo nacional não tem estado à altura dos desafios colocados desde o retorno à democracia são complexas. A ingerência dos partidos políticos nas centrais sindicais, a cooptação por parte dos governos – da Concertação e, depois, da Nova Maioria – nas organizações sindicais e, por certo, uma normativa trabalhista autoritária contribuíram para que o sindicalismo não conseguisse se expandir como em outras épocas da história republicana. De fato, a taxa sindical no Chile oscila entre 14,7% e 16,4% e a cobertura nos processos de negociação coletiva não supera os 11%.

Paralelamente, as próprias limitações do sindicalismo, a falta de formação e capacitação sindical, a escassa democracia sindical interna, a exígua renovação dos quadros sindicais, são questões que impactam diretamente sua essência. A histórica Central Unitária de Trabalhadores (CUT), continuadora da Central Única de Trabalhadores, fundada no ano de 1953, que se manteve ativa até o dia do golpe militar de 1973, encontra-se em profunda crise. A gota que fez o copo transbordar foi sua última eleição, em agosto de 2016. O que deveria ter sido uma contenda eleitoral sindical relativamente normal, como tantas outras, transformou-se em um grande escândalo que prendeu o interesse da opinião pública e continua sendo notícia até os dias de hoje. As acusações sobre cadastros eleitorais adulterados, dirigentes sindicais eliminados dos registros eleitorais, organizações e agrupações sindicais superdimensionadas e sindicatos fantasmas – entre outros agravantes – fizeram pairar uma nuvem de desconfiança nos resultados do processo eleitoral sindical. A consequência previsível foi uma “crise” de credibilidade na CUT, suspeitas de utilização partidária e decomposição orgânica, aspectos fortemente criticados pela opinião pública. O fato de que, na CUT, a votação para a eleição de seus dirigentes seja indireta contribui para o clima de descrédito, já que esse mecanismo implica que cada organização sindical tenha uma ponderação diferente de acordo com a quantidade de filiados que tiver ou inscrever. Não é uma eleição universal na qual cada sindicalizado vale um voto. A reivindicação de eleições universais foi acalorada e permanentemente discutida nos últimos congressos nacionais dessa central sindical, inclusive algumas vezes aprovada, mas sempre adiada para a “próxima” eleição.

A especialista em relações trabalhistas e sindicais, María Ester Feres, sintetiza a crise da CUT da seguinte maneira: “Chegou a hora para a CUT também. Suas questionáveis práticas eleitorais e de gestão saem à luz e são parte do escrutínio público, da mesma forma que outras instituições sociais e políticas hoje severamente questionadas pela cidadania. Seu acionar discutível, muitas vezes carente de transparência e comandado por caciques, e nocivas ingerências do governo ou partidos fizeram com que a crise fosse bem maior do que as anteriores, já que preocupavam pela fragilidade de sua representação... É necessário que haja mudanças mais profundas, que lhes permita representar um mundo do trabalho cada vez mais complexo e precarizado, que aspira a reformas substantivas que tragam maior igualdade, respeito a seus direitos trabalhistas, de seguridade social e de cidadania”(5).

A realização do 11º Congresso Nacional da CUT (27 e 28 de janeiro de 2017), em sua resolução sexta, determina que: “Foi aprovado que, a partir das eleições normais que correspondem ao ano de 2020, o sistema eleitoral da CUT será direto e universal, isto é, os trabalhadores filiados às organizações que pertencem à CUT poderão votar diretamente para eleger os dirigentes nacionais”(6). A determinação dessa resolução foi impugnada por dirigentes nacionais da CUT, objetando manipulação e atuações ilícitas na votação dessa medida e de outras, como a que indica a realização no curto prazo de uma nova eleição nacional da CUT – proposta para 20 de abril e com voto ponderado. Diante dessas resoluções e em relação às eleições de agosto passado, diversos dirigentes sindicais entraram com ações junto ao Primeiro Tribunal Eleitoral (TE) da Região Metropolitana, com o objetivo de suspender o processo eleitoral dessa central, e o TE resolveu suspender as eleições de abril.

A direção da CUT decidiu respeitar a resolução do TE da Região Metropolitana. Por sua vez, no início de 2017, a comissão de inquérito da Câmara dos Deputados soltou um relatório lapidário sobre as últimas eleições da CUT, apontando as irregularidades do processo eleitoral dessa central sindical, propondo uma série de recomendações tendentes a transparentar o cadastro eleitoral e a realizar eleições universais. Paralelamente, importantes organizações sindicais associadas à central iniciaram um processo de congelamento de sua filiação, como foi o caso da Associação de Professores, da Federação de Trabalhadores do Cobre (FTC), da Confederação Nacional da Saúde Municipal (Confusam), entre outras organizações, agrupações e sindicatos nacionais. O histórico líder sindical Arturo Martínez, que fora presidente, secretário-geral e vice-presidente dessa central, afastou-se da CUT e criou outra referência sindical, a Central de Trabalhadores do Chile (CTCH). O acúmulo desses acontecimentos teve forte impacto na imagem da CUT, prejudicada e desacreditada como organização sindical. Para se reconstituir como interlocutor político válido e relevante, a CUT precisará transitar um longo caminho, no qual faça uma verdadeira “autorreforma” sindical, elevando seus níveis de transparência interna. O risco de não fazê-lo é se tornar uma organização inócua, desvirtuando seu sentido fundante.

Será que a atual direção da CUT conseguirá enfrentar satisfatoriamente essa aguda crise do sindicalismo nacional? Na opinião de especialistas e analistas do mundo do trabalho, é muito difícil que isso ocorra, pois, entre outros aspectos, a atual liderança sindical não tem sido capaz de ler finamente os tempos políticos, sociais e econômicos do país, apegando-se a postos de direção da organização. A essa altura do século 21, a CUT não se constituiu como ator social significativo, não se modernizou e não encontra as formas de representar os novos setores de trabalhadores incorporados ao mercado de trabalho em um cenário de mundialização e robotização. Tudo isso, somado à renúncia a exercer uma postura autônoma em relação aos governos de turno e aos partidos políticos, deixa a CUT em uma posição de difícil retorno.

Conclusões

O debate das relações de trabalho no Chile foi e seguirá sendo eminentemente político, social e ético; não apenas trabalhista-sindical. É um debate civilizatório e diz respeito ao tipo de sociedade que temos e que queremos alcançar. Não esqueçamos que a matriz neoliberal do Plano Trabalhista da ditadura cívico-militar esteve estreitamente ligada à do modelo econômico imperante em nosso país há mais de 38 anos.

A rigor, o Chile precisa se democratizar e modernizar suas relações trabalhistas, e o projeto promulgado pelo governo da presidenta Bachelet não satisfaz as expectativas geradas a esse respeito. De fato, essa reforma deixou de fora reivindicações históricas do mundo do trabalho, tais como a negociação coletiva por ramo, a titularidade sindical – subtraída pelo Tribunal Constitucional (TC) –, a reforma trabalhista no setor público e sua negociação coletiva por direito e não pelos fatos, a derrogação de artigos de demissões em massa como o 159 e o 161, a questão da terceirização. Junto com outros, esses são os temas da pauta trabalhista de um futuro que não pode esperar tanto. A pergunta que se mantém vigente é: qual será a proposta mais profunda e digna para a sempre pendente modernização das relações trabalhistas em um Chile que pretende estar à altura dos tempos?

A discussão de fundo, a saber, a transformação ou revogação do Plano Trabalhista de Pinochet e a gestação de um Novo Código Trabalhista sob a democracia, ficou no saldo negativo do balanço até hoje.

O movimento sindical chileno – e, em particular, a CUT – atravessa uma grave crise de representação e de credibilidade, como nunca observada desde o retorno à democracia. Essa situação tem um ponto de início, qual seja, a necessidade de definir um novo papel para o sindicalismo chileno, com o objetivo de fazer dele um sindicalismo moderno e genuinamente democrático. Uma organização que ofereça serviços para seus filiados, com capacidade técnica, política e econômica, e com uma permanente gestão de capacidade trabalhista e sindical para suas organizações partes. Nesse cenário, é necessário repensar o papel do sindicalismo para esse novo período e suas projeções político-sociais.

A direita e o empresariado chilenos dão, mais uma vez, mostras de defender a qualquer custo um sistema econômico que está em decadência ao não compreender que é preciso fazer reformas profundas para alinhar o Chile aos padrões de economias e sociedades avançadas. As reformas em discussão, tanto a trabalhista – que já foi promulgada – quanto o que se espera de uma reforma da Previdência, são absolutamente necessárias para modernizar o país nos marcos do sistema capitalista, mas de um sistema capitalista maduro.

Tradução: Celina Lagrutta 

Jaime Ensignia é sociólogo, doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade Livre de Berlim, ex-diretor sociopolítico da Fundação Friedrich Ebert no Chile. Atual diretor do Programa Internacional e de Relações Trabalhistas da Fundação Chile 21. Colaborador do Barômetro de Política e Equidade, especialista em política internacional e relações trabalhistas. Autor de vários artigos e livros