Sociedade

O golpe parlamentar, no que diz respeito aos direitos indígenas, apresenta-se como uma espécie de “vingança de classe” com relação à Constituição de 1988

O Congresso Nacional tornou-se um campo de caça aos direitos dos povos indígenas, o que ficou evidente na CPI da Funai e Incra, que buscou criminalizar suas lideranças e seus aliados no Estado, no Ministério Público, nas igrejas e nas ONGs, além de propor a extinção da própria Funai e medidas que buscam inviabilizar as demarcações e os direitos dos índios

O Congresso Nacional tornou-se um campo de caça aos direitos dos povos indígenas. (Foto: Celso Maldos)

 

Os povos indígenas estiveram sempre presentes na história do nosso país, cujo Estado nasceu e respectivo território se desenvolveu sobre as instituições e territórios milenares dos povos originários. São 517 anos de história nacional sobreposta e em conflito permanente com 12 mil anos de diferentes histórias de centenas de povos. Documentos da Colônia, do Império e da República são testemunhos dessa tensão contínua e das tentativas cíclicas de se construir uma convivência, prevista juridicamente e de fato, entre sociedades e culturas diferentes. Resultado de uma convivência entre sociedades muito desiguais em poder de exploração econômica e destruição letal, de uma estimativa de cerca de 6 milhões de pessoas pertencentes a mil povos em 1500 temos hoje, pelo Censo Geral do IBGE de 2010, 817.963 indígenas, de 305 povos, falantes de 274 línguas.

Durante a última ditadura civil-militar (1964-1985), a burocracia estatal chegou a levantar a possibilidade de uma “solução final”, com a extinção completa dos povos indígenas no Brasil. Embora tais planos não tenham sido levados à prática, os grandes projetos econômicos e de infraestrutura na região amazônica, principalmente, foram a causa do extermínio e do genocídio que incidiram sobre inúmeros povos. A luta contra a ditadura também teve o protagonismo indígena, na forma de assembleias e mobilizações regionais e nacionais em torno da defesa do direito ao território, as quais ensejaram inclusive um processo organizativo para dar conta de uma agenda de denúncias e reivindicações.

O acúmulo de experiências de luta, de construção de propostas políticas e de criação de alianças entre os diferentes povos, e destes com segmentos da sociedade nacional, permitiu que os povos indígenas, através de centenas de representantes, tivessem uma participação significativa no Congresso Constituinte, acompanhando subcomissões, comissões, sessões plenárias e audiências públicas, e que ao final contribuíssem de maneira determinante para a consolidação dos direitos indígenas nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988.

O texto constitucional é uma vitória histórica, pois muda a orientação da relação do Estado nacional com os povos indígenas, superando a perspectiva integracionista para uma perspectiva de respeito aos seus territórios, culturas, línguas, tradições e modos de ser, viver e se reproduzir como povos etnicamente diferenciados. Além de ser um texto em sintonia com avanços nos acordos internacionais, a nova Constituição tornou-se referência para as lutas indígenas na América Latina e um novo patamar para a construção de políticas públicas específicas em saúde, educação, meio ambiente, produção e gestão ambiental e territorial.

Com base na Constituição Federal foram desencadeados novos processos de reconhecimento, identificação, demarcação e homologação das terras indígenas, que se caracterizam por serem bens da União de usufruto exclusivo dos diferentes povos. Durante os anos 90, ao longo dos governos dos presidentes Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, com o apoio de recursos internacionais da ONU, avançou-se na demarcação das terras indígenas na região amazônica, principalmente do Território Ianomâmi e de muitos outros, sempre com a participação das próprias comunidades e organizações indígenas locais. Um episódio marcante ocorreu em abril do ano 2000, em Porto Seguro, Bahia, quando das comemorações pelos 500 anos do Brasil. Os povos indígenas, com 3.600 representantes de cerca de 180 povos, ocuparam a região com as contracomemorações chamadas “Brasil, Outros 500” e, juntamente com quilombolas e movimentos sociais de todo o país, exigiram um novo modelo de desenvolvimento, baseado nos direitos dos povos indígenas, dos quilombolas e da classe trabalhadora do campo e da cidade. A repressão brutal do governo FHC que se abateu sobre os milhares de participantes daquela mobilização acabou por revelar uma sociedade ainda fortemente excludente e autoritária, teve amplo impacto negativo na mídia internacional e despertou para a luta pela demarcação dezenas de povos indígenas do sul da Bahia e de toda a região Nordeste. A partir desse evento traumático e com grande carga simbólica, as lutas indígenas e as alianças dos povos indígenas com segmentos excluídos da sociedade nacional ganharam um novo impulso e novas perspectivas.

Durante os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a questão indígena teve avanços em alguns aspectos, principalmente no que diz respeito à participação dos povos indígenas na construção e monitoramento das políticas públicas específicas, mas poucos avanços na questão territorial. Uma polêmica que marcou esse período foi a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que foi motivo de uma ação junto ao Supremo Tribunal Federal. Nessa ação era contestada a demarcação da terra indígena de forma contínua; era contestada a demarcação em faixa de fronteira “por ameaçar a segurança nacional” e “por criar a possibilidade de um separatismo indígena” e era defendida a “alta produção agrícola” dos invasores da terra indígena. O STF reconheceu a constitucionalidade da demarcação feita pelo presidente Lula e determinou a retirada dos invasores, embora tenha definido dezenove condicionantes, válidas apenas para Raposa Serra do Sol, que constrangeram os indígenas por serem limitadoras ao usufruto pleno das comunidades do seu território original.

Durante o governo Lula os povos indígenas avançaram na interlocução com o Estado brasileiro, com a realização da I Conferência Nacional dos Povos Indígenas em 2005, com a criação da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) em 2006, com a criação da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) em 2010, com a criação do Programa Nacional dos Territórios Etnoeducacionais, com o estabelecimento de cotas (com programas de acesso e permanência) para indígenas nas universidades públicas e programas de acesso das comunidades a diversas políticas públicas, como proteção ambiental e produção de alimentos. A questão territorial, no entanto, permaneceu com poucos avanços, devido ao forte lobby das forças conservadoras dentro do próprio governo federal, assim como com a judicialização dos processos de demarcação e homologação das terras indígenas. Nesse período, por exemplo, pouco avanço teve a demarcação do Território Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, cujo drama humanitário permaneceu e se agravou a cada ano, fazendo com que esse povo se transformasse no mais atingido em seus direitos humanos com assassinatos e ameaças de morte às lideranças, agressões às comunidades, suicídios e atropelamentos dos indígenas obrigados a viver nas margens das estradas.

Durante o mandato e meio da presidenta Dilma Rousseff, os avanços foram ainda mais tímidos, novamente com destaque para a participação indígena em espaços de interlocução com o Estado e de controle social e muito pouco avanço na agenda de demarcação e homologação dos territórios. Nesse sentido é importante destacar a transformação da Comissão em Conselho Nacional de Política Indigenista em 2015, agora um órgão de Estado, e a criação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI) em 2012, além da realização da I Conferência Nacional de Política Indigenista em 2015. Um forte motivo de tensionamento entre o governo federal e as lideranças, povos e organizações indígenas foi a edição da Portaria no 303 da Advocacia-Geral da União (AGU), que internalizava as dezenove condicionantes de Raposa Serra do Sol nos procedimentos da AGU, inclusive para os procuradores da Fundação Nacional do Índio (Funai), sendo que tais condicionantes ainda estavam sob embargos declaratórios no STF.

Essa portaria inviabilizou, inclusive, as tentativas do governo federal em regulamentar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre o direito à consulta prévia e informada, que significaria certo empoderamento dos povos, comunidades e organizações indígenas frente ao planejamento e realização de empreendimentos que atingissem seus territórios ou frente a decisões administrativas e legislativas que impactassem seus territórios ou suas culturas. Os indígenas se recusaram a construir uma regulamentação da Convenção 169 enquanto a Portaria no 303 não fosse revogada, o que nunca ocorreu. Um outro fator de forte tensão dos povos indígenas com o governo Dilma foi o planejamento e implementação das hidrelétricas na região amazônica, a começar pela hidrelétrica de Belo Monte e as hidrelétricas do rio Tapajós, em contraste com uma quase paralisia dos processos de reconhecimento territorial, dos processos de demarcação e homologação das terras indígenas.

Apesar desses retrocessos, na gestão da presidenta Dilma foram realizados poucos, mas importantes, processos de homologação de terras indígenas, como a Terra Indígena Kayabi, no Mato Grosso, e processos de desintrusão (retirada de invasores), como da Terra Indígena Xavante de Marãiwatsédé, também no Mato Grosso, uma dívida histórica do Estado brasileiro, e da Terra Indígena Awá-Guajá, no Maranhão, onde vive um povo indígena em situação de isolamento voluntário e de extrema vulnerabilidade frente aos madeireiros da região. O golpe parlamentar que foi executado contra a presidenta Dilma em 2016 teve como principais agentes deputados e senadores ruralistas, articulados com os interesses do agronegócio e do latifúndio mais atrasado do país. Por essa razão, a agenda dos direitos indígenas, assim como dos direitos humanos de maneira geral, encontra-se praticamente interditada e com novos golpes que configuram um retrocesso permanente. As demarcações de terras indígenas estão paralisadas; a proteção aos povos em situação de isolamento voluntário foi desmobilizada; o órgão indigenista Funai encontra-se quase inviabilizado pela falta crônica de recursos humanos e financeiros; as desintrusões não são mais realizadas; as parcerias com organizações indígenas, com organizações não governamentais ou com outros órgãos de Estado para a defesa dos direitos indígenas, quase deixaram de existir.

O Congresso Nacional tornou-se um campo de caça aos direitos dos povos indígenas, o que ficou evidente na CPI da Funai e Incra, que buscou criminalizar suas lideranças e seus aliados no Estado, no Ministério Público, nas igrejas e nas ONGs, além de propor a extinção da própria Funai como órgão de proteção dos povos indígenas e uma série de medidas que buscam inviabilizar as demarcações e os direitos dos índios. O principal instrumento que os ruralistas buscam aprovar no Congresso Nacional é a PEC 215 que, além de retroceder em todos os direitos já reconhecidos dos povos indígenas, pretende estabelecer a revisão e anulação de todas as terras indígenas demarcadas até hoje. A PEC 215 encontra-se tramitando na Câmara dos Deputados e pode a qualquer momento ir a plenário. O golpe parlamentar, no que diz respeito aos direitos indígenas e aos direitos humanos, apresenta-se como uma espécie de “vingança de classe” com relação à Constituição de 1988, revelando que as elites não aceitaram os avanços civilizatórios daquela Carta nem seus desdobramentos institucionais em termos de criação de políticas públicas nas últimas quase três décadas, sendo este momento o da busca de anulação de tais avanços e do atendimento das exigências mais radicais do latifúndio e do agronegócio.

A defesa dos direitos indígenas hoje se coloca, portanto, na perspectiva da defesa dos direitos humanos e da defesa da própria democracia. Não existe democracia num país onde os direitos de seus segmentos mais vulneráveis não estão garantidos; nesse sentido, o respeito ou não aos direitos indígenas são, ao lado dos direitos dos quilombolas e dos povos tradicionais, os melhores indicadores do nível de democracia alcançado pela sociedade brasileira. Povos que preexistiram ao Estado e à sociedade nacionais, a eles não pode ser dado o mesmo tratamento que foi dado pela metrópole à colônia séculos atrás, baseado no genocídio, no etnocídio e na incorporação forçada de territórios à lógica mercantil.

Povos resistentes, sobreviventes de ditaduras, de ciclos de violência do Estado e das frentes de expansão econômica, são sujeitos de direitos e protagonistas políticos, portadores de culturas e modos de ser e de se relacionar, dentro das comunidades e com a natureza, que podem se constituir em novos paradigmas para a sociedade brasileira. Suas histórias milenares nos enriquecem como povo e nos tornam mais aptos para a construção do futuro, no sentido inverso das características socialmente disruptivas e suicidas da nossa cultura atual e da lógica, esta sim selvagem, do capitalismo financeiro na sua fase neoliberal.

A defesa dos direitos indígenas deve estar articulada com um projeto de país democrático e respeitoso de sua sociodiversidade. Trata-se de não voltar atrás em nenhum direito humano e em nenhum direito indígena reconhecido, pelo contrário, devemos avançar e aprofundar nas regulamentações constitucionais, nas medidas legislativas, nas políticas públicas e nas decisões administrativas que garantam o direito fundamental à terra, ao território e à autonomia dos povos indígenas na participação política no presente e na construção de seu futuro. Foi o protagonismo indígena no Brasil que garantiu que centenas de povos milenares chegassem até os dias de hoje, com suas identidades e com sua imensa riqueza cultural. Esse mesmo protagonismo deve ser reconhecido e fortalecido pela luta democrática do conjunto da nossa sociedade por um novo país livre, justo e igualitário, pois estes povos têm muito a nos ensinar sobre liberdade, justiça e igualdade.

Paulo Maldos é psicólogo, conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP), trabalhou com povos e organizações indígenas de todo o país; foi secretário Nacional de Articulação Social da Secretaria Geral da Presidência da República (2010-2014) e secretário Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (2015-2016)