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A reforma agrária há tempos saiu da pauta dos governos e a criação de assentamentos vinha sendo mera reação governamental à luta dos trabalhadores pela terra

Os inúmeros conflitos resultantes desse processo que ocorrem em todo o país e, especialmente, no sudeste do Pará indicam que o abandono da política de reforma agrária não se justifica pela ausência de interesse dos trabalhadores em ter acesso à terra, mas sim pelas prioridades econômicas e políticas de valorização do agronegócio e da mineração, diretamente relacionados à concentração fundiária e ao pacto latifundiário que permanentemente se atualiza no país

No sudeste paraense, em 2016 houve um aumento de 53% do número de conflitos por terra Foto: Avenar Prado/Folhapress

A violência contra trabalhadores rurais no sudeste paraense, na Amazônia oriental brasileira, voltou a ganhar destaque nacionalmente nos últimos meses. O caso mais emblemático deu-se neste ano com a chacina no município de Pau D’Arco, em que uma ação conjunta de policiais e pistoleiros executou um grupo de dez trabalhadores que ocupavam a Fazenda Santa Lúcia. Esse caso não se deu de forma isolada e explicita o crescimento da violência contra aqueles que lutam pela reforma agrária.

A ofensiva política das forças conservadoras no país, que culminou com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016 e a intensificação de uma agenda contra os trabalhadores, também se refletiu no campo. Propostas de alteração na Constituição que vão desde a liberação da venda de terras sem limites de tamanho para estrangeiros até restrições na demarcação de terras indígenas e quilombolas têm tido protagonismo do Executivo e do Legislativo federal. No caso da reforma agrária, tem sido ampliada a perda de capacidade operacional do Incra para novas desapropriações, consolidando como prioridade da instituição a titulação das terras dos assentamentos que, no contexto da MP 759, significa a mercantilização das terras já conquistadas pelos trabalhadores rurais e o assédio do agronegócio nesses territórios.

A despeito da intensificação dos conflitos gerados por essas medidas, o governo atual promoveu o desmonte total da Ouvidoria Agrária Nacional (OAN), que passou a ser subordinada à presidência do órgão. Dessa forma, embora existindo formalmente, perdeu qualquer capacidade de mediar os inúmeros conflitos no campo.

Os registros de conflitos realizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) indicam que, no sudeste paraense, o ano de 2016 teve um aumento de 53% do número de conflitos por terra, alcançando 55 conflitos envolvendo 8.127 famílias. O ano de 2017 mostra tendência de agravamento, com 18 mortes já contabilizadas em decorrência desse tipo de conflito, número seis vezes maior do que os ocorridos no ano anterior. Com esses números, essa parte do território amazônico concentra 35% dos 51 assassinatos de trabalhadores rurais já registrados em todo o país.

Alguns fatos recentes ajudam a compreender esse impulso à violência no campo. A disseminação de ideias contra a democratização dos direitos dos trabalhadores, replicadas à exaustão pela imprensa conservadora, associada à ação direta do Estado para eliminar direitos conquistados a qualquer custo e coibir e criminalizar os que lutam por esses direitos levam à naturalização da violência como forma de imposição de certo projeto societário. A isso se soma a predominante certeza de impunidade dos mandantes de crimes no campo agravada pelos exemplos recentes de desrespeito às leis vigentes, que têm sido flexibilizadas e alteradas para atender interesses particulares das elites. Mais uma vez, o caso de Pau D’Arco é exemplar.

A Fazenda Santa Lúcia foi ocupada por cerca de duzentas famílias de trabalhadores rurais sem terra, em 2013, e desde então inúmeras ações de conflitos foram observadas, seja na forma de despejo, seja em ameaças e confrontos diretos promovidos por seguranças privados. Houve abertura de negociações entre Incra e fazendeiro para obtenção da área para reforma agrária, no entanto, não só o Incra não prosseguiu com a negociação da área, como a Vara Agrária, que foi criada para tratar de forma diferenciada os conflitos agrários no campo, não requereu junto ao órgão qualquer informação sobre a negociação com o proprietário do imóvel e não realizou nenhuma audiência com as partes envolvidas para solucionar o conflito.

Contrariando acordo realizado após o Massacre de Eldorado do Carajás de que ações judiciais de despejo contra acampamentos só seriam efetivadas por tropa da capital do estado, especialmente treinada para isso e mais distante da influência direta dos fazendeiros, a Vara Agrária autorizou a ação de reintegração de posse com a polícia local, o que claramente acirrou as tensões. Uma vez despejadas, as famílias deslocaram-se para uma área entre a fazenda e o Assentamento Magdalena Nicolina Rivetti. A fazenda então contratou uma empresa de segurança com o objetivo de impedir uma nova ocupação da área. A partir desse momento os seguranças passaram a realizar ameaças e ações para expulsar as famílias daquele local. Em um desses confrontos um funcionário da fazenda que estava atuando de forma ilegal como segurança foi morto.

Devido a essa morte, a polícia requereu a prisão preventiva e temporária de onze trabalhadores do acampamento. Embora todos eles tivessem endereços conhecidos na cidade, a polícia não realizou essas buscas e esperou a reocupação da área para então, com o pretexto da prisão, executá-los. Na madrugada do dia 24 de maio, 29 policiais chegaram à área, cercaram o acampamento e executaram dez trabalhadores rurais, sendo nove homens e uma mulher.

Ao caso de Pau D’Arco somam-se vários outros conflitos que ilustram essa combinação de morosidade do Incra e da justiça agrária para resolver conflitos em que os trabalhadores que lutam pela terra ficam à mercê da violência de milícias armadas no campo, agora legalizadas como empresas de segurança patrimonial, mas também da violência perpetrada pelo poder público, incluindo o Judiciário e a polícia.

Em fins de julho, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) Regional Sudeste do Pará, em conjunto com a CPT, divulgou nota denunciando o assassinato de um casal de idosos do Projeto de Assentamento Uxi, no município de Itupiranga, Manoel Índio Arruda (82 anos) e Maria de Lurdes Fernandes Silva (60 anos). O casal era assentado da reforma agrária e havia feito denúncias junto ao Incra, Ministério Público Federal e a Delegacia de Conflitos Agrários contra a aquisição ilegal de terras nos limites do seu lote. A morosidade na atuação desses órgãos levou ao assassinato do casal. Situação semelhante a que vitimou José Claudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, em 2011, no Projeto Agroextrativista Praialta Piranheira, em Nova Ipixuna. Em 2017, portanto seis anos após o assassinato desse casal, a Justiça Federal de Marabá finalmente reconheceu que as denúncias feitas pelos dois estavam corretas e determinou a retirada dos não clientes da reforma agrária dos lotes adquiridos ilegalmente no seu assentamento.

Apesar desse cenário de recrudescimento da violência, no entanto, não se pode ignorar que ela não deixou de permear a luta pela terra nas últimas décadas. Observando os registros realizados pela CPT, no período entre 2003 e 2015, sob governos federais do PT, no sudeste paraense houve ocorrência de 625 conflitos por terra envolvendo 70.520 famílias, com 117 assassinatos. Em média foram, portanto, 44,6 conflitos por ano, envolvendo 5.037 famílias e 8,4 assassinatos. Não obstante essa conflitividade na luta pela terra na região, nesse período houve poucos avanços na política de reforma agrária. Na área sob jurisdição da Superintendência Regional n° 27 do Incra, que corresponde aproximadamente ao sudeste paraense, foram criados 161 assentamentos, alocando 14.132 famílias no período entre 2003 e 2014, números bastante inferiores aos 341 assentamentos e 57.686 famílias assentadas no período 1987 a 2002. Aliás, desses 341 assentamentos, 59% deles foram criados entre maio de 1996 e dezembro de 1999, ou seja, na sequência do massacre de Eldorado do Carajás e da visibilidade política que aquele evento projetou à luta pela terra e pela reforma agrária.

No período entre 2003 e 2014, quando desagregados, os números revelam não apenas resultados totais menores, mas uma tendência de abandono da política de reforma agrária na região: foram assentadas 11.362 famílias em 131 assentamentos entre 2003 e 2006; 1.678 famílias em 21 assentamentos entre 2007 e 2010; 1.092 famílias em nove assentamentos entre 2011 e 2014. Nesse processo, houve por parte do governo federal uma mudança de prioridade da política de reforma agrária, que prevê redistribuição de terras, para a perspectiva de regularização fundiária, através do Programa Terra Legal.

A justificativa desse programa era a legalização de posseiros em terras públicas de até quinze módulos fiscais (máximo de 1.500 ha) e arrecadação das sobras para reforma agrária. No entanto, o que se viu foi um travamento da capacidade do Incra de arrecadar terras públicas griladas para fins de reforma agrária e um deslocamento da disputa judicial pela regularização dessas terras, que passou a ser centralizada em Brasília, longe da pressão política dos movimentos sociais de luta pela terra e, portanto, favorável aos grileiros. Além da perda do poder de ação sobre as terras públicas federais, o Incra assistiu ao fatiamento das políticas de implantação dos assentamentos, antes sob sua responsabilidade, enfraquecendo ainda mais o órgão e, consequentemente, a reforma agrária. Como exemplos ilustrativos tem-se o deslocamento das políticas de habitação em assentamentos, que antes eram do Incra e passaram para a responsabilidade da Caixa Econômica Federal (CEF), com a criação do Programa Nacional de Habitação Rural, além do esvaziamento dos programas de assistência técnica e extensão rural nos projetos de assentamentos e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da agricultura familiar.

Sem a referência do Incra como órgão promotor do conjunto de políticas de reforma agrária, a capacidade de pressão política dos movimentos sociais foi reduzida, fazendo com que os persistentes conflitos tivessem poucos desdobramentos em conquistas efetivas de terras e implantação de assentamentos. Os que lutam pela reforma agrária através das ocupações de fazendas na região, na maior parte das vezes localizadas em áreas públicas griladas, foram ficando à mercê da força violenta do latifúndio e da criminalização por parte do Judiciário.

Em contrapartida, a região viu-se como um dos focos do avanço da mineração e do agronegócio. Os investimentos na expansão da mineração de Carajás, o impulso à ampliação de novas áreas de pesquisa e lavra e toda a infraestrutura logística associada à exploração mineral, desde duplicação de ferrovias, abertura de estradas e construção de barragens hidrelétricas, geraram novos conflitos com comunidades indígenas e tradicionais e até com assentamentos de reforma agrária já conquistados na luta pela terra. Como exemplo, tem-se o emblemático caso da Mineração Onça-Puma, da Companhia Vale, que promoveu a desestruturação quase total do Projeto de Assentamento Campos Altos, em Ourilândia do Norte, e parte do Projeto de Assentamento Tucumã, no município de São Félix do Xingu, afetando aproximadamente 3 mil famílias de trabalhadores assentados, para implantação de projeto mineral.

O impulso geral ao agronegócio e as novas facilidades logísticas na região também serviram como atratores para grupos econômicos que entraram na disputa pela terra. Houve, nesse processo, expansão da soja no extremo sul da região e na sua porção leste, intensificação da pecuária nas porções mais centrais, inclusive com a implantação de grandes frigoríficos nessas localidades, e a expansão de fronteira pecuária para a porção oeste, especialmente São Félix do Xingu e Novo Repartimento. Os conflitos gerados nessa expansão do negócio agromineiro na região, desde meados da década de 2000, levaram a um processo de apropriação de terras pelas grandes fazendas e manutenção da concentração fundiária, além dos problemas ambientais decorrentes dos desmatamentos para formação de pastagens.

As análises aqui apontadas indicam que a reforma agrária há tempos saiu da pauta política dos governos federais, e a criação de assentamentos vinha sendo mera reação governamental à iniciativa dos próprios trabalhadores de lutar pela terra. Os inúmeros conflitos resultantes desse processo que ocorrem em todo o país e, especialmente, na região aqui tratada indicam que o abandono da política de reforma agrária não se justifica pela ausência de trabalhadores interessados em conseguir acesso à terra, mas sim pelas prioridades econômicas e políticas de valorização do agronegócio e da mineração, diretamente relacionados à concentração fundiária e ao pacto latifundiário que permanentemente se atualiza no país.

Esse quadro geral e persistente tem se agravado com a ofensiva recente dos setores mais conservadores que têm ampliado a retirada de direitos dos trabalhadores rurais e comunidades indígenas e tradicionais no campo. No entanto, sua reversão só poderá ocorrer com uma mudança mais profunda nas políticas de distribuição de terras e de desenvolvimento agrário, que deveria ser pauta prioritária de qualquer governo que pretenda restabelecer a democracia.

Fernando Michelotti é docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), com sede em Marabá

Airton dos Reis Pereira é docente da Universidade Estadual do Pará (Uepa), com sede em Marabá

José Batista Gonçalves Afonso é advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT)