Política

Olhando em retrospectiva, podemos dizer que foi o acontecimento mais marcante da Era Moderna, pois definiu a política, a economia e a cultura de todo o século

Qualquer projeto futuro de uma agenda política de esquerda terá de considerar, de forma honesta, os erros e os acertos daquela geração que levantou e consolidou as sete décadas do experimento soviético. O fato é que seu legado é inquestionável

A tentativa de construir uma ordem social mais igualitária e civilizada teve bons frutos. Foto: Mikhail Voskresenskiy/Reuters

Há uma cena interessante no filme Rosa Luxemburgo, da cineasta alemã Margarethe von Trotta, de 1982. Os líderes do Partido Social-Democrata Alemão (K. Kautsky, E. Berstein, K. Liebknecht e a própria Rosa) estão numa festa de Réveillon entre 1899 e 1900 quando o seu presidente August Bebel pede a palavra e diz: “Este século que acabou foi o das esperanças. O próximo será o das realizações!”. De fato, mesmo com a falência da II Internacional uma década depois e a explosão da Grande Guerra, o século 20 teve em seu início um fato extraordinário, carregado de expectativas: a vitória da primeira revolução proletária de caráter socialista da história, em 1917, na Rússia. E, desse modo, a frase que abre o Manifesto Comunista de Marx e Engels parecia se concretizar: o fantasma do comunismo rondava e amedrontava a velha Europa.

Olhando em retrospectiva, podemos dizer que foi o acontecimento mais marcante da Era Moderna, pois definiu a política, a economia e a cultura de todo o século passado, até seu fim melancólico em 1991. Quase sempre se fala do papel da União Soviética na resistência ao nazifascismo durante a Segunda Guerra, ou da Guerra Fria e a ameaça nuclear que marcaram as quatro décadas que sucederam o conflito mundial findado em 1945. Mas a verdade é que o legado da Revolução de OutubroUnknown Object vai além desses eventos de caráter bélico, ainda que fundamentais para compreender sua história. Vamos destacar, brevemente, algumas dessas influências do legado soviético.

Política

Apesar de evidente, merece ser destacada: a vitória do Partido Bolchevique, sob a liderança de Vladimir I. Lenin, apontou os caminhos que as organizações de esquerda deveriam seguir a partir de então. Não que a fórmula adotada pelos comunistas russos fosse de aplicação universal: ela só pode ser compreendida sob as circunstâncias históricas em que se desenvolveu. A Rússia dos czares, apesar de ter alguns núcleos urbanos industrializados de aspecto ocidental, trazia ainda muitos elementos da tradição feudal. A abolição da servidão ocorrera apenas no final do século 19, e o país era, em grande medida, rural. Ainda assim, os comunistas souberam aproveitar a crise do czarismo, acentuada pelo fracasso militar na Primeira Guerra, para ganhar a hegemonia do processo político. Como eles foram proscritos e perseguidos pelo regime, adotaram uma forma de organização extremamente disciplinada e militarizada, que foi fundamental na resistência e posterior vitória em 1917.

Mas essa peculiaridade russa estava em consonância com um fenômeno que já chamava a atenção das nascentes Ciências Sociais: o processo de burocratização. Autores como Max Weber e Joseph Schumpeter já haviam identificado a Modernidade como um processo social que exigia maior dominação “racional-legal”. Em outras palavras, maior burocratização para fazer valer códigos legais e procedimentos operacionais. E esses dois autores, mesmo não sendo simpatizantes do socialismo, reconheciam que as propostas de planificação eram condizentes com os novos tempos. Weber olhava com especial interesse para a social-democracia alemã, que havia se tornado a primeira grande organização proletária do Ocidente, com gráficas, jornais, crescente bancada parlamentar e forte presença sindical. Dessa perspectiva, os bolcheviques não eram uma exceção, mas uma tendência.

Contudo, eram uma organização comunista que atuava junto a uma classe operária numericamente inferior ao campesinato, e soube usar o descontentamento com a guerra para se aproximar dos camponeses e dos soldados, criando uma nova via para o socialismo: a teoria leninista dos “elos débeis” do sistema capitalista. Dessa forma, a luta contra o imperialismo (que teve em Lenin um de seus principais intérpretes) poderia ser impulsionada por lutas nacionais contra o centro do sistema. Assim, a forma partidária disciplinada e a luta imperialista influenciaram os comunistas na periferia capitalista, como o Brasil. A forma como os comunistas brasileiros, quase inexistentes no final do século 19, ganharam a hegemonia política diante dos mais numerosos anarquistas imigrantes só pode ser explicada por essa influência, em especial a arregimentação de Luís Carlos Prestes à sua causa, facilitada precisamente pela proposta de um partido quase militarizado, inspirado nos bolcheviques.

De acordo com Eric Hobsbawm, em seu livro Era dos Extremos, só é possível compreender a saga heroica pessoal de figuras como Prestes, sua companheira Olga Benário e muitas outras, se considerarmos o que representava a ideologia comunista naquele início de século: uma proposta generosa, de uma nova humanidade, uma causa pela qual valia a pena se sacrificar. E as vitórias contra o nazifascismo, além da Revolução Chinesa de 1949, apenas reforçaram esse sentimento, que só seria abalado após as denúncias de Kruschev contra Stalin no XX Congresso do Partido Comunista da URSS, em 1956. Mas de todo modo havia ali um legado econômico nada desprezível.

Economia

O desafio dos bolcheviques era imenso, não só porque a Primeira Guerra havia destroçado a economia, mas porque logo após a Revolução de 1917 iniciou-se uma guerra civil que durou de 1918 a 1921, com as forças reacionárias internas (exército branco) auxiliadas pelas nações capitalistas ocidentais. O assassinato de Rosa e Liebknecht e o fracasso da Revolução Alemã em 1919 isolaram a Rússia comunista, que tinha pela frente a tarefa hercúlea de desenvolver as capacidades produtivas em um país industrialmente atrasado. O caminho foi adotar técnicas de gestão copiadas do Ocidente (o fordismo, ou “americanismo”, como chamou Antonio Gramsci) e permitir mecanismos de mercado para dinamizar a economia em um curto espaço de tempo. A Nova Política Econômica (NEP) levou a uma rápida recuperação da atividade rural, mas criou um gargalo na oferta de bens primários à necessidade de expansão industrial. A ascensão de Stalin ao poder no final dos anos 1920 levou ao fim da NEP e à política de coletivização forçada e de forte centralização estatal da economia, com o I Plano Quinquenal. Constitui-se numa boa agenda de pesquisa analisar até que ponto a NEP soviética influenciou a abertura econômica da China a partir dos anos 1980 e seu espetacular crescimento desde então.

É bastante notória a crítica que se faz à condução stalinista desse processo, que gerou expurgos (inclusive de comunistas históricos) e a desorganização abrupta do mercado até então reconstruído, com sérias consequências de desabastecimento de gêneros essenciais. Mas é inegável que essa “acumulação primitiva socialista” sob Stalin gerou as condições para a acelerada (porém brutal) industrialização no final da década de 1930, indispensável para os esforços de guerra que foram exigidos quando a Alemanha nazista avançou sobre a URSS. Os planos quinquenais, iniciados em 1928 e organizados até o fim do regime soviético, foram copiados não só pelos novos países socialistas, como China e Cuba, mas também (ainda de que forma bem menos dirigista) pelo Ocidente, que passou a fazer planejamentos plurianuais, nos órgãos públicos e nas grandes corporações privadas, sob a égide keynesiana. Exatamente como previra Weber e outros analistas.

O fato é que, mesmo parcialmente isolado do resto da economia mundial, o bloco soviético experimentou do mesmo crescimento econômico que os demais países que viveram os “trinta anos gloriosos” (1945-1973), e isso se refletiu nas condições de vida dos trabalhadores. A geração que viveu a infância ou nasceu na URSS após a Segunda Guerra chegou à idade adulta gozando de um padrão de vida pouco mais modesto que o da classe média ocidental, mas bem mais confortável que o de seus pais e avós. E a corrida espacial fazia essa percepção de otimismo aumentar: o lançamento do satélite Sputnik I e o envio da cadela Laika ao espaço em 1957, além do voo do cosmonauta Yuri Gagarin em 1961, confirmavam a superioridade tecnológica espacial soviética frente ao Ocidente. Além disso, o “espantalho comunista” foi fundamental para aumentar o poder de barganha dos sindicatos e partidos de esquerda ocidentais, que deu as linhas gerais do Welfare State, parcialmente desmontado somente na ofensiva neoliberal dos anos 1980. De todo modo, a superioridade tecnológica espacial não foi capaz de engendrar a mesma revolução tecnológica microeletrônica que os EUA promoveram para combater a crise de produtividade do final dos anos 1960, e é uma hipótese razoável identificar aí uma das causas do colapso do sistema, duas décadas depois. Mas, a despeito disso e da ausência de uma efetiva democracia socialista no bloco soviético, chegavam nas últimas décadas do século passado alguns ecos da arte libertária que cresceu nos primeiros anos do processo revolucionário.

Cultura

O movimento de contracultura dos anos 1960 não era um raio em céu azul, mas em boa parte o resgate das promessas da Modernidade daquela virada do século 19 ao 20 descrito no início deste texto. Marshall Berman, em seu excelente livro Tudo que É Sólido Desmancha no Ar, indicou como as elites artísticas estavam rompendo tradições e convenções no último século do segundo milênio. As artes plásticas, a música, a literatura, o cinema, os comportamentos, tudo foi colocado sob contestação. E boa parte dessa vanguarda estava no Leste Europeu, e encontrou na nascente União Soviética um local de experimentalismos, antes do regime stalinista. O cinema de Sergei Eisenstein, a dramaturgia de Bertolt Brecht, a poesia de Vladimir Maiakovski, os construtivismos russo e alemão e seu enorme impacto na arquitetura e nos meios gráficos – a ideia mestra era que a arte deveria servir às necessidades concretas e intelectuais da sociedade, e não ser uma mera forma abstrata apartada do mundo. Esse mesmo espírito cultural possibilitou também a ascensão do forte protagonismo feminista neste período, com a construção de grandes creches, lavanderias e restaurantes públicos, de modo a livrar as mulheres dos grilhões do trabalho doméstico imposto pelo patriarcalismo.

Ainda que o realismo socialista do stalinismo após os anos 1930 e o cultivo das formas tradicionais da arte tenham sido a marca dos anos posteriores, a influência dos primeiros anos revolucionários estava presente. Não só por meio da grande participação das mulheres na vida acadêmica e nas artes, como também por meio da adoção de elementos gráficos na sinalização de trânsito, nos edifícios etc. E o teatro e o cinema da segunda metade do século 20 são declaradamente tributários dessa influência, como podemos ver por exemplo em nosso teatro de resistência, música de protesto e outras manifestações durante a ditadura militar. Filmes como Solaris (1972), um sci-fi de Andrei Tarkovsky, são cultuados até hoje por cineastas de Hollywood.

Um balanço

Mesmo com a tônica da grande mídia, e parte da produção acadêmica, em apontar a experiência soviética como um “grande equívoco” que teria sido evitado se as elites russas fossem mais hábeis, o fato é que seu legado é inquestionável. Em que pesem todos os erros e crimes que foram cometidos em nome do socialismo, a tentativa de construir uma ordem social mais igualitária e civilizada teve também bons frutos. Qualquer projeto futuro de uma agenda política de esquerda terá que considerar, de forma honesta, os erros e os acertos daquela geração que levantou e consolidou as sete décadas do experimento soviético. Da mesma forma que o capital “ergue e destrói coisas belas”, como disse Caetano Veloso em sua Sampa, é preciso igualmente olhar para esse legado e reconhecer que muitas conquistas sociais recentes tiveram inspiração direta daquele fantasma que rondou a Europa no início do século passado.

Agnaldo dos Santos é professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp (Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília) e membro do Núcleo de Estudos d’O Capital