Nessas eleições, Piñera se saiu melhor do que quando eleito em 2010, Guillier, por sua vez, ficou abaixo do percentual alcançado por Frei há sete anos, e muito longe dos 62,1% atribuídos a Michelle Bachelet, em 2013. Em apenas quatro anos, o progressismo chileno passou de 62% a 45% dos votos
O direitista Sebastián Piñera derrotou neste domingo, 17 de dezembro, o candidato da centro-esquerda, Alejandro Guillier, e governará o Chile pelos próximos quatro anos (2018-2022). Apurados 99,8% dos votos, Piñera obteve 54,5% dos votos válidos contra 45,4% de Guillier. Em 2010, ao derrotar o governista Eduardo Frei, Piñera se elegeu com 51,6% dos votos, em um pleito muito mais disputado do que agora.
Nas eleições desse domingo, Piñera se saiu melhor do que naquela ocasião, conquistando o apoio de eleitores da Democracia Cristã (DC) e vencendo em treze das quinze regiões eleitorais do país. Mas o presidente eleito não terá vida fácil, pois não obteve maioria em nenhuma das duas casas do Congresso Nacional. Será obrigado a negociar com a centro-esquerda cada um de seus projetos.
Guillier, por sua vez, ficou abaixo do percentual alcançado por Frei há sete anos, e muito longe dos 62,1% atribuídos a Michelle Bachelet, em 2013. Em apenas quatro anos, o progressismo chileno passou de 62% a 45% dos votos.
Que a derrota não lhes suba à cabeça, como sói acontecer com certos setores da esquerda, e os ajude a repensar os limites da democracia de consenso que governa o país desde a redemocratização. Em nome da governabilidade – mas também do pragmatismo e do apego ao poder –, os partidos tradicionais de esquerda, especialmente o Partido Socialista do Chile (PS), foram se afastando dos valores mais caros ao socialismo. Reféns da Constituição de 1980 e de seus enclaves autoritários, eles se converteram em prisioneiros da jaula de aço do neoliberalismo.
Com efeito, há muito tempo os partidos que integram a Nueva Mayoria – que não é outra coisa senão a velha Concertación acrescida do Partido Comunista (PC) – se afastaram da classe trabalhadora. Agora perderam parcela significativa da classe média, e terão enorme dificuldade de recuperá-la se não mudarem.
Mas, ao contrário do que aconteceu nas eleições passadas, quando o bipartidarismo ainda vigorava, agora o jogo político se tornou mais imprevisível. De um lado assistimos ao ressurgimento de uma extrema-direita cavernosa e fascista, que obteve expressivos 7,9% de votos, despejados no candidato da direita no segundo turno. O endurecimento de Piñera em relação a temas como migrações, transgêneros, aborto e casamento gay se explica por aí.
De outro, vimos a ascensão da Frente Ampla (FA) à condição de terceira força política do país, com uma bancada de 23 parlamentares (um senador e 22 deputados) e o prefeito de Valparaíso, transformada numa espécie de laboratório da nova esquerda chilena. Acabou-se a zona de conforto da centro-esquerda tradicional. Se não quiser passar à intranscendência, terá que se mexer.
Não faltaram oportunidades para isso; agora será mais difícil. A Democracia Cristã, um dos pilares do modelo político chileno, assumiu posições erráticas no governo Bachelet, votando contra várias de suas propostas de reforma. Nessas eleições, lançou candidato próprio e alcançou um resultado sofrível. Apesar de uma bancada parlamentar expressiva, sofreu forte desgaste político.
O PS, de Enrique Escalona, há muito tempo se tornou um partido pragmático e sem alma, que em nada lembra o socialismo dos tempos de Allende. Agora ele terá que dialogar com a Frente Ampla, que vem tomando algumas de suas bandeiras e conta com o apoio das ruas para implementá-las. A reforma universitária ilustra as diferenças entre eles. Enquanto a reforma de Bachelet prevê benefícios em forma de bolsas para os estudantes mais pobres (que acabam nas mãos das universidades privadas), a FA segue lutando pela universalização do ensino público e gratuito. Eles também combatem a previdência privada que existe desde a ditadura. Mas, como diz Carlos Ruiz, um dos intelectuais da FA, “não podemos seguir culpando Pinochet por tudo o que se passa no país”.
Outro desafio é o diálogo com os novos setores da classe média. De nada adianta acusá-los de consumistas e individualistas. Eles são o produto da sociedade chilena, rica, injusta e desigual. Veem no consumo um meio legítimo de diminuir a brecha que os separa das classes abastadas, transpondo o abismo que caracteriza a desigual estrutura social chilena. Menosprezados pela esquerda, esses setores médios tornam-se presas fáceis das promessas de progresso econômico e crescimento individual formuladas pela direita populista. E Piñera sabe disso.
O fato é que se iniciou com essas eleições no país vizinho um período de incertezas, distinto do que conhecemos desde a transição nos anos 1990. É cedo para fazer afirmações assertivas. Tudo indica que Piñera não terá vida fácil e será obrigado a negociar com os partidos de oposição – o que não é do seu feitio. A FA terá que combinar as redes e as ruas com as suas novas responsabilidades institucionais. Desafio que interpela os partidos de esquerda desde sempre. E os partidos da velha Concertación, que criaram o Chile moderno, terão que fazer o ajuste de contas com o passado, e definir os novos rumos que pretendem adotar. A permanecer como estão, têm pouco chance de sobrevivência.
Renato Martins é professor adjunto de Ciência Política e Sociologia na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e presidente do Fórum Universitário Mercosul (FoMerco)