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Para Nilmário Miranda está em questão a Constituição de 1988, que foi um pacto político-social. São os seus pilares que estão sendo abalados

No dia 6 de dezembro, a Polícia Federal invadiu a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), levando em condução coercitiva o reitor e a vice-reitora, em uma operação denominada “Esperança Equilibrista”, demonstrando mais uma vez que de fato o momento político é de estado de exceção. A operação visava apurar supostos desvios no Memorial da Anistia, construído pela UFMG. O secretário de Direitos Humanos e Cidadania do Estado de Minas Gerais, Nilmário Miranda, que também foi membro do Comitê de Implantação do Memorial da Anistia, se manifestou sobre as circunstâncias e contexto dessa ação.

Os pilares de nossa Constituição estão sendo abalados. Aprovaram uma reforma trabalhista que acaba com o trabalho decente. Foto: Marcio de Marco

Assim como aconteceu com a Universidade Federal de Santa Catarina, repete-se uma operação policial, agora na Universidade Federal de Minas Gerais, desta vez visando um símbolo da luta contra a ditadura, o Memorial da Anistia. Como avaliar esse tipo de ação?

O que está em jogo é o processo da justiça de transição. O Memorial da Anistia envolvia a Comissão de Anistia, que contava com pessoas com conhecimento sobre o tema e que realizavam o trabalho sem remuneração, e que acabou tendo seus membros afastados. Houve um desmonte da Comissão da Verdade que tinha o trabalho das recomendações – ninguém mais fala sobre isso. O Memorial faz parte desse processo de justiça de transição, que países como a Espanha discutem até hoje, pois de uma longa ditadura ficaram coisas pelo caminho, histórias não esclarecidas, pessoas desaparecidas. O atual governo e a Polícia Federal não querem a justiça de transição. Estávamos cobrando que o governo federal voltasse a mandar o repasse, que deixou de ser feito há mais de um ano, para terminar a obra do Memorial

O que é justiça de transição?

Justiça de transição é um processo de reparação e revisão quando se passou por uma ditadura feroz, que institucionalizou a tortura, implantou o AI-5.  Ela prevê não só a punição de torturadores, mas vai além. Há a recuperação da memória para deixar para as gerações presentes e futuras a condenação de regimes autoritários, ditatoriais, que fazem uso de crimes de lesa a humanidade. O Brasil tem um dos maiores processos de reparação do mundo, mas infelizmente manteve a impunidade dos torturadores, desde a anistia e mantida pelo STF, em 2010. É o único país do mundo que manteve o afago aos torturadores, quando há vários indicadores que revelam a condição de estado de exceção, estado policial. Agora nós estamos pagando um preço por isso. À medida que não se levaram a fundo a discussão sobre a ditadura e a responsabilização, deixou-se o caminho aberto para que retornassem as práticas da ditadura.

No caso da UFMG, o próprio Ministério Público foi contra a condução coercitiva do reitor e demais professores, uma vez que não tinha sentido, pois se tratava de uma investigação administrativa. No entanto, a mesma juíza que protegeu os mandantes dos crimes de Unaí1 autorizou a condução coercitiva. Fizeram uma operação espetaculosa, às 6 da manhã, policiais armados de metralhadora, colete à prova de bala, entraram no campus... Até na ditadura havia algum respeito ao esse espaço, cada vez que a polícia entrou em algum campus universitário houve forte reação, mas hoje virou coisa banal. Ainda deram o nome jocoso de “Esperança Equilibrista”2, em alusão à canção que Aldir Blanc e João Bosco fizeram em honra a todos os que lutaram contra a ditadura brasileira. Isso já caracteriza uma posição ideológica contrária à justiça de transição, à anistia, ao Memorial, à busca da verdade. Por que ridicularizar uma música que é um símbolo da luta contra a ditadura? Isso é um desrespeito à luta do povo pela democracia. De repente um grupo de policiais se dá o direito de jogar lama no passado, nas melhores lembranças da luta contra a ditadura.

Acho que é preciso aprofundar isso. O senador Roberto Requião batizou de Lei Cancellier o projeto de lei que pune abuso de autoridade, do qual ele foi relator no Senado e que tramita na Câmara, usando como exemplo o caso do reitor de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, que foi preso, algemado nu, submetido a exame interno vexatório e encarcerado sem processo judicial. É claro que existe abuso, a ideia da condução coercitiva por si enseja isso. E o modo como foi executada é o abuso dentro do abuso. Repetiram com o reitor Jaime Arturo Ramirez da UFMG o que fizeram com o Cancellier. A invasão ao campus e a forma humilhante como levaram o reitor.

O outro lado dessa história também deve ser olhado. A vice-reitora Sandra Regina Goulart foi a mais votada de três candidatas para eleição da reitoria. Também isso pode estar em jogo.

Isso é gravíssimo...

Sim, pois trata-se de uma universidade que tem sucessão de décadas de reitores progressistas, que defende autonomia e o ensino público, bandeiras importantes para o projeto de Nação. Isso também pode ser uma jogada para embaraçar a indicação da vice-reitora ao cargo de reitora.

Enfim, essa operação envolve várias questões. Primeiro o ataque ao Memorial, que nos é precioso, símbolo da busca da memória, da verdade e da justiça no Brasil; segundo o ataque às universidades públicas; e terceiro a interferência num processo de escolha de reitor, que faz parte da autonomia universitária.

No caso de Santa Catarina, a universidade foi pega de surpresa, as coisas aconteceram muito rápido. Mas em Minas houve uma reação imediata muito importante, todos os ex-reitores, vice-reitores se manifestaram prontamente em apoio ao reitor e à vice-reitora. A sociedade civil se movimentou rapidamente, em assembleia. O exagero da operação gerou repulsa a esse modelo de condução coercitiva, que permite o abuso, que qualquer delegado cumpra a sua maneira. Isso reforça a necessidade de aprovar o projeto de lei que o senador Requião relatou, para podermos discutir a condução coercitiva, o abuso de prisões preventivas prolongadas, deixando nas mãos de delegados e policiais tomar decisões essenciais sobre a vida de uma pessoa. E tudo sob o silêncio do STF.

Em sua opinião, juntamente com o sucateamento, o corte de verbas, ações desse tipo não poderiam também fazer parte da tentativa de privatizar o ensino superior no país?

Claramente. O relatório amplamente divulgado do Banco Mundial propõe cobrança de anuidades, ao mesmo tempo em que há redução do Financiamento Estudantil (Fies) e as políticas de acesso à universidade, como o ProUni, são taxadas de populistas. Tudo faz parte de um grande jogo. A desnacionalização do pré-sal, a saída para financiar saúde e educação. No caso da saúde, foi conquistada a atenção básica para o país inteiro, mas o avanço de especialidades médicas complexas dependia desse financiamento do pré-sal, uma vez que o capital financeiro, lucros e dividendos não pagam impostos. Com a educação é a mesma coisa. O pré-sal previa financiar a inovação, a educação em nível superior. Cortaram o Ciência sem Fronteiras, apontaram pelo caminho de estrangular as universidades públicas e atrair a universidade privada. Esse é outro modelo que está contrariando a Constituição, a educação como um direito de todos, da creche à universidade e pós-graduação, que era o caminho que o Brasil estava trilhando.

Como secretário de Direitos Humanos e Cidadania do Estado de Minas Gerais, o que é possível fazer em uma situação como essa de invasão da universidade?

Isso tudo se dá na esfera federal, mas pra mim temos de nos manifestar contra qualquer situação de violação de direitos humanos. Foi o que eu fiz como secretário, repudiei a condução coercitiva e o uso do nome da operação para ridicularizar a luta do povo brasileiro, e estou articulando para recorrermos ao controle externo da Polícia Federal, para que o MPF exerça o seu papel, investigue os abusos ocorridos, mesmo que a juíza tenha lamentavelmente autorizado a condução coercitiva. Era desse modo que ela queria que fosse feita? Por que não expediram uma intimação para que as pessoas prestassem esclarecimentos? Elas iriam, a universidade é a primeira interessada em esclarecer. Vá lá que existam problemas, mas esses são administrativos. Isso se dá em outro âmbito. Não é objeto de operação policial com espetaculosidade, carregada de más intenções, como foi essa. Se fosse com as polícias do estado, teríamos de acionar as corregedorias, a ouvidoria de polícia, que cuidam de abusos praticados por forças policiais do estado. Como militante de direitos humanos, não apenas pela função de secretário, mas pelo meu vínculo com a justiça de transição, por ter sido responsável pela primeira comissão parlamentar a tratar de mortos e desaparecidos do país na década de 1990, pela criação da Comissão de Direitos Humanos na Câmara e membro da Comissão de Anistia.

Você fez parte também da implantação do Memorial...

Participei ativamente. Como membro da Comissão de Anistia eu acompanhava o Conselho Curador para a construção do Memorial. A universidade foi encarregada de montar uma exposição para quando o Memorial fosse inaugurado.

O projeto está travado porque surgiu um problema na estrutura do local onde funcionará o Memorial, o Coleginho, uma construção do início do século 20 ligada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG e, posteriormente, ao Teatro da UFMG. A primeira empresa que trabalhou na obra fez um telhado que rachou o prédio. Foi quando se descobriu que não tinha fundação. Essa empresa quebrou e não pôde reparar o dano. Então, foi preciso nova licitação para corrigir esse problema estrutural do prédio de mais de um século. Isso encareceu a obra e recorremos a um novo financiamento do BNDES, que não chegou a se efetivar. Não há má intenção, corrupção, nada disso. Como o prédio está praticamente pronto, faríamos uma exposição de conteúdo do Memorial no prédio do anexo enquanto se resolve o problema do Coleginho.

Que perspectivas podemos vislumbrar para a luta dos direitos humanos, após o golpe de 2016?

Eu acho que está em questão a Constituição de 1988, que foi um pacto político-social entre quem deixou de apoiar a ditadura, a direita, os conservadores, que se organizavam em torno do PFL, o centro que era o MDB transformado em PMDB e forças semelhantes e a esquerda e os movimentos sociais. Foi um pacto que convergiu para a democracia em 88, depois de uma longa ditadura. São os pilares dessa Constituição que estão em jogo agora. Em seu artigo primeiro consta: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Daí fazem o impeachment sem crime de responsabilidade. Um grupo de corruptos alega corrupção e tira a presidenta eleita pelo voto direto. Segundo, há outros pilares essenciais da Constituição que foram ao chão: o trabalho decente em um país que viveu a escravidão por quase quatro séculos. Aprovaram uma reforma trabalhista que acaba com toda a noção do trabalho decente. Acabamos de constatar que grande parte dos empregos criados são precários. Temos no projeto de Nação o tripé da Seguridade, que compreende assegurar os direitos à saúde, à assistência social, que está em completo desmonte, e à previdência, contra o qual estão agindo agora. E há também o pilar do direito à educação, que corresponde ao ensino público e gratuito em todos os níveis.

Já no caso dos direitos civis, estão desrespeitando a presunção da inocência. Pode haver essas prisões preventivas prolongadas como meio de arrancar confissão? Não há desvios nessa supervalorização da delação premiada? Temos um Congresso totalmente controlado pelo capital financeiro.

Essa mesma Constituição acolheu a Declaração Universal dos Direitos Humanos e todos os seus desdobramentos, pactos, tratados internacionais. Sem respeito aos direitos humanos não há democracia.

Rose Spina é editora de Teoria e Debate