Internacional

Chilenos reconquistam o direito à educação pública gratuita subtraído pela ditadura, o que é um estímulo à luta dos movimentos sociais na América Latina

O projeto de lei sobre a educação superior é a última das reformas do setor apresentadas pelo governo de Bachelet. Foto: Alex Ibañez/PR Chile

Foram necessárias décadas de intensos protestos para que os(as) estudantes chilenos(as) reconquistassem o direito à educação gratuita desmantelada durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). De negócio lucrativo, o ensino voltará a ser um direito dos chilenos. A histórica decisão acontece a poucas semanas de Michelle Bachelet transferir o comando do país ao direitista Sebastián Piñera. É uma conquista e tanto, não só do governo como também da sociedade civil. Nesses tempos de regressão política e social, ela representa um alento para as esquerdas latino-americanas. Além de reverter um sistema reconhecidamente perverso e injusto, a conquista das estudantes e dos estudantes chilenos representa um estímulo à luta dos movimentos sociais em outros países da América Latina. Ela recoloca a questão da educação pública e gratuita no centro da disputa entre modelos antagônicos pela região. E, como sabemos, nem todos creem nisso...

Antecedentes

O sistema de ensino implantado pela ditadura se perpetuou depois da redemocratização com a Lei Orgânica Constitucional da Educação (Loce), aprovada no último dia do governo Pinochet. Além de estabelecer critérios de mercado para a oferta do ensino, a Loce impôs a descentralização da educação pública, o que acabou comprometendo a qualidade do ensino no país. Ao mesmo tempo em que fragmentou a oferta do ensino primário e secundário, transferindo a sua responsabilidade para as municipalidades, a Loce concedeu incentivos e subsídios às escolas privadas, produzindo uma concorrência assimétrica com o claro objetivo de acabar com o ensino público.

No ensino superior, a lei estabeleceu os mesmos critérios privatistas. Até 1980, as universidades do Estado cobriam entre 65% a 70% das matrículas dos jovens universitários. Com as reformas econômicas dos Chicago Boys, o financiamento do ensino superior praticamente desapareceu. O custo da educação foi transferido para as famílias. Desde então, os chilenos passaram a pagar pelo ensino. Para isso, tiveram que recorrer a empréstimos e financiamentos, o que causou o crescente endividamento das famílias. O sistema foi mantido praticamente inalterado durante vinte anos de governos de centro-esquerda da Concertación (1990-2010), apesar das críticas de professores e estudantes.

A Revolução dos Pinguins

As primeiras manifestações contrárias à Loce aconteceram em 2006, durante o primeiro governo Bachelet. Desde então, doze anos de protestos se passaram até a aprovação da reforma que estabelece o fim do ensino pago no país.

Convocados pelos centros de alunos dos colégios, os protestos se estenderam de abril a setembro daquele ano e ficaram conhecidos como Revolução dos Pinguins, em alusão à forma como são chamados os secundaristas, por conta de seus uniformes escolares. Cerca de 600 mil estudantes, de mais de quatrocentos estabelecimentos, aderiram à greve nacional convocada pelas associações de estudantes secundaristas. As passeatas se tornaram diárias e exigiam a derrogação da Loce, o fim da municipalização do ensino, o passe escolar gratuito, entre outras reivindicações relativas à melhoria da qualidade do ensino.

A presidenta Michelle Bachelet, empossada dois meses antes do início das manifestações, lidou muito mal com a situação, permitindo que a violência dos carabineiros se abatesse sobre os estudantes. A criminalização do movimento ensejou a radicalização dos estudantes, provocando as primeiras ocupações das escolas. Em poucas semanas, centenas de estabelecimentos de ensino foram tomados e ocupados pelos estudantes, que passaram a contar com amplo apoio social, especialmente dos professores, servidores e familiares.

A Revolução dos Pinguins foi o marco na luta contra o modelo privatista de ensino herdado da ditadura e mantido pelos governos de centro-esquerda. Outras manifestações ocorreriam nos anos seguintes. Elas foram decisivas para a mudança do regime educacional agora em curso no país. Além disso, aquelas manifestações históricas propiciaram o surgimento de novas lideranças políticas que contribuem para a renovação das esquerdas chilenas, como é o caso de dirigentes dos partidos políticos, dos movimentos sociais e dos coletivos militantes que hoje integram a Frente Ampla. A maioria desses jovens é oriunda daquelas jornadas que empolgaram o país na luta em defesa do ensino público e gratuito.

A reforma educacional

Para o governo Bachelet, a reforma da educação é um projeto que busca fazer transformações de fundo na educação por meio de uma série de iniciativas e projetos de lei que foram elaborados a partir de 2015. De acordo com o portal do Ministério da Educação, a reforma se destina a “lograr uma educação de qualidade, que seja um direito garantido a todas e todos os estudantes”. Ela está articulada em torno de quatro eixos prioritários: 1) institucionalidade que garanta o acesso à educação e a seguridade às famílias; 2) educação pública de qualidade; 3) uma profissão docente moderna, digna e mais bem remunerada; 4) uma educação superior gratuita e de qualidade.

O que agora se aprovou na Câmara dos Deputados foi o projeto de lei sobre a educação superior, a última das reformas do setor apresentadas pelo governo de Michelle Bachelet. Dentre os objetivos do projeto aprovado destaca-se a busca por consolidar um sistema de educação superior que garanta a “gratuidade para os estudantes de seus estudos mediante o financiamento público das instituições de educação superior que cumpram certos requisitos e obrigações”. A gratuidade universal não é automática, mas as condições legais para alcançá-la foram estabelecidas pela nova legislação.

Além da consolidação do princípio da gratuidade, o projeto determina a acreditação obrigatória dos cursos superiores e estabelece tarefas e procedimentos da Superintendência de Educação, órgão responsável pela fiscalização e cumprimento das novas normas por parte dos estabelecimentos privados. Para a deputada Camilla Vallejo, do Partido Comunista do Chile (PCCh), ex-dirigente estudantil, o que se aprovou significa um avanço. “Se não se aprovasse hoje o projeto”, observou, “iríamos à comissão mista e deixaríamos ao futuro governo a tramitação da iniciativa, com um ministro que já sabemos que não crê em nada disso.”

Comentário final

No ano em que se comemora o centenário da Reforma Universitária de Córdoba, essa conquista das estudantes e dos estudantes chilenos torna-se ainda mais significativa. Nada mal que a reforma educacional tenha sido aprovada agora, criando as condições para a superação de um dos modelos educacionais mais iníquos da América Latina. No entanto, é de se lamentar que esse direito tenha demorado tantos anos para ser restabelecido. Obviamente, as forças de centro-esquerda que governaram o Chile da Concertación (1990-2010) e da Nueva Mayoria (2014-2018) são responsáveis por isso, uma vez que deixaram de fazer as reformas estruturais no modelo herdado da ditadura enquanto era tempo. Meno male que o projeto de gratuidade tenha sido aprovado agora e convertido em lei. Em 11 de março, um presidente que também não crê em nada disso assumirá o comando do Chile. Piñera presidirá os chilenos, mas não estará acima da lei. Haverá que respeitá-la, portanto, pois se trata da educação!

Renato Martins é professor da Unila e presidente do FoMerco