Nacional

A vitória de Lula representa uma revolução cultural na mente de grandes massas. Se a esquerda não compreender essa dimensão, dificilmente adotará estratégias e táticas que acumulem força e aproveitem a virada revolucionária da cultura popular

Tolstoi sugeria a Gorki ouvir os mujiques, a esmagadora maioria do povo russo de então, e escrever de modo que eles o entendessem. Embora nem sempre a maioria esteja com a razão, saber o que os brasileiros pensam e esperam do governo Lula é chave para a esquerda orientar-se após a vitória popular.

A maioria popular sabe que não fez nenhuma revolução política, econômica ou social. Mas, depois de anos negando-se a votar em alguém igual a si própria, decidiu sufragar Lula. “Óia nóis lá” não constata uma simples mudança de opinião. Representa uma revolução cultural na mente de grandes massas.

Se a esquerda não compreender essa dimensão, nem quem somos “nóis” (o que exige a definição de quem são “eles”) e qual a correlação de forças, dificilmente adotará estratégias e táticas que acumulem força e aproveitem a virada revolucionária da cultura popular.

Os fatores da vitória popular

É preciso reconhecer o fraco entendimento das modificações conjunturais após a crise financeira de 1999. Em geral, não se detectou a amplitude dos resultados das políticas neoliberais, tanto sobre as grandes massas populares, quanto sobre a média burguesia e parcelas da grande. Estes segmentos, ao também serem profundamente atingidos, deram à questão nacional a dimensão de uma invasão do Brasil por potências estrangeiras. No âmbito popular, essa situação gerou um movimento de oposição e mudanças que, mesmo desprovido de grandes lutas, enxergou na candidatura Lula a possibilidade de derrotar o neoliberalismo e introduzir transfor­mações. No âmbito da burguesia, que sustentava o governo FHC, um movimento procurou introduzir mudanças tópicas através do próprio grupo dominante. Como o núcleo duro do governo, constituído pelo PSDB, foi inflexível, impôs Serra como candidato e o continuísmo como política, parte dessa burguesia viu-se sem candidato e sem projeto.

As visões parciais sobre essa evolução conduziram, no campo da esquerda, a pelo menos dois tipos de análise. Uma, a daqueles que não consideravam a divisão na burguesia, ou a tinham apenas como tática diversionista, desprezando-a como elemento importante para golpear o domínio neoliberal. Outra, a daqueles que captaram a divisão como o elemento chave para a vitória eleitoral, desconsiderando o sentimento mudancista que grassava, sem muito ruído, entre as grandes massas populares.

Os que desprezavam a divisão da burguesia insurgiram-se contra a incorporação de reivindicações burguesas ao programa eleitoral do PT e contra as alian­ças que apontavam para a constituição de uma frente única. Ficaram descrentes da possibilidade de vitória e não foram poucos os que, frustrados, quiseram votar nos candidatos do PSTU e do PCO. Os que subestimavam a capacidade do movimento popular prepararam-se para realizar uma campanha idêntica às de 1994 e 1998, sem mobilização massiva, centrada na conquista da burguesia e das classes médias.

A prática da campanha modificou essas tendências. A crescente pressão popular oposicionista e mudancista manteve alto o patamar das preferências por Lula, obrigando a guerra de desgaste entre os demais candidatos, em virtude disso, forçando o deslocamento da oposição burguesa para a candidatura Lula. Em outras palavras, a frente única foi positiva, criando as condições para a atração dos setores burgueses descontentes com FHC-Serra. Mas, o fator decisivo da vitória foi o engajamento popular, principalmente depois que a campanha ganhou massividade, a partir de agosto de 2002.

As forças sociais e políticas

Criou-se, dessa forma, uma conjuntura totalmente nova, na qual conformaram-se, na sociedade brasileira, quatro sistemas de forças sociais e políticas.

O primeiro, o sistema corporativo empresarial, reúne as grandes burguesias estrangeiras e nativas associadas. Ele perdeu social e politicamente, mas continua sendo o sistema econômico e ideológico dominante. Perdeu socialmente porque sua periferia, constituída pela média burguesia e alguns setores burgueses relativamente grandes, transitou para a oposição. E perdeu politicamente porque não conseguiu impedir que parte da burguesia se colocasse sob a hegemonia do PT, nem que o povo guindasse ao governo central, pela primeira vez na história do Brasil, como diz o senador Sarney, “um representante do trabalho”. Entretanto, este sistema não morreu, nem foi destruído. E, apesar de não possuir um projeto palatável em substituição ao destrutivo neoliberalismo, quer manter seus mecanismos de hegemonia ideológica e domínio sobre a sociedade. A força desses mecanismos lhe permite influenciar parte considerável dos outros sistemas, podendo eventualmente recompor sua periferia e sua força política.

O segundo, o sistema intermediário burguês, é composto pela média burguesia e pelos setores dissidentes da grande burguesia, rurais e urbanos. Faziam parte do sistema corporativo como periferia, mas sofreram um violento processo de desestruturação em virtude do rearranjo do pacto de dominação da economia, por meio do qual os capitais estatais foram quase totalmente alienados e eliminados, os capitais privados pequenos e médios foram sendo alijados do processo de acumulação e os grandes capitais privados tiveram que se associar aos grupos estrangeiros corporativos ou correr o risco de serem sufocados. Fazendo parte do governo, suas reivindicações e expectativas estão relacionadas com o crescimento das atividades produtivas, proteção governamental contra a competição selvagem das grandes corporações, abertura de mercados internos e internacionais, redução dos custos de mão-de-obra e dos tributos e participação nas decisões. Não tendo força social e política sufi­ciente para se contrapor ao sistema corporativo, quer mudar, através da frente única, apenas aqueles pontos da política neoliberal que o prejudicam.

O terceiro, o sistema microempresarial, formal e informal, é constituído de pequenos proprietários rurais e urbanos, às vezes também assalariados. Compre­en­­dendo milhões de famílias e indiví­duos, foi também submetido a um violento processo de fragmentação e destruição econômica e social, de rebaixamento de seus padrões de vida e de proletarização. Pretende mudanças que possam elevá-lo à posição da média burguesia. O que inclui a melhoria do poder aquisitivo da população, expansão do mercado interno, proteção contra os oligopólios, abertura de linhas de crédito, redução dos encargos tributários e flexibilização das relações de trabalho. É, pois, um sistema capitalista periférico, mas que procura avidamente democratizar o capital.

O quarto, o sistema popular, constitui a maioria, tendo como núcleo os assalariados urbanos e rurais e as grandes massas marginalizadas como sua periferia. Os trabalhadores assalariados sofreram uma brutal dispersão e fragmentação (pelo desemprego estrutural e conjuntural), ampliando as já extensas massas marginalizadas em processo de degradação. Suas reivindicações e expectativas estão relacionadas fundamentalmente com alimentação, trabalho, emprego, renda, moradia e segurança.

As forças sociais dos sistemas que sustentam o governo Lula são relativamente fracas, se comparadas às forças relativamente fortes do sistema corporativo. Este é o problema estratégico da esquerda: transformar as forças sociais democráticas e populares relativamente fracas em relativamente fortes, e as forças sociais relativamente fortes do sistema dominante em relativamente fracas.

Possíveis estratégias e táticas

Essa inversão estratégica da correlação de forças exige, pelo menos, três grandes táticas: 1) isolar o sistema corporativo e desmontar a ideologia e a política neoliberais; 2) manter o segundo sistema burguês na frente única; 3) transformar o terceiro e o quarto sistemas em poderosas forças econômicas, sociais e políticas.

A relativa fraqueza da frente única sugere evitar confrontos decisivos prematuros com o sistema corporativo. Isto torna necessário negociar ponto por ponto. Por exemplo, induzindo-o a abrir mercados internacionais para o que produz e, ao mesmo tempo, aumentar a proporção, nesses produtos finais, de bens intermediários fabricados aqui. Ou seja, é necessário tentar seu enquadramento paulatino nas necessidades e regras brasileiras, entre outras coisas chamando as corporações a contribuírem, por meio do Programa Fome Zero, para o resgate da dívida social.

Por outro lado, não se deve dar trégua à ideologia e às políticas neoliberais. Os intelectuais poderiam ser instados a realizar uma avaliação profunda do país herdado, em seus aspectos produtivo, financeiro, científico, tecnológico, educacional, cultural, militar e do cotidiano da vida social. E, pelo lado afirmativo, levantar os valores de solidariedade, honestidade, persistência, resistência e luta do povo brasileiro nestes anos. Com isso, aprofundarão a investigação histórica, ampliarão a educação e a cultura populares e encontrarão no próprio povo os caminhos para um desenvolvimento alternativo. Mesmo porque tal desenvolvimento não pode ter por base o crescimento dos primeiro e segundo sistemas. Embora as médias empresas do segundo sistema devam ser apoiadas e estimuladas para escapar da concorrência destrutiva das corporações empresariais, elevar sua inserção nos mercados externos e aumentar as taxas de crescimento da economia, isso só poderá ser realizado com o aumento de sua eficiência, produtividade e competitividade. Portanto, o principal aspecto desse apoio consiste em evitar que o segundo sistema retorne ao regaço do sistema corporativo dominante. Seu crescimento se fará com pouca absorção de mão-de-obra, sem contribuir decisivamente para rebaixar o desemprego.

Um desenvolvimento que combine crescimento, aumento do emprego, melhoria da distribuição de renda e redução da pobreza e da fome só pode ser alcançado, nas atuais condições brasileiras, se as experiências de resistência e sobrevivência dos micros e pequenos produtores rurais e urbanos se tornarem massivas. O crescimento massivo desse sistema é o único capaz de transformar grandes contingentes de desempregados e marginalizados em trabalhadores efetivos e de garantir uma distribuição mais eqüitativa da renda, instrumentos fundamentais para erradicar a fome e a miséria.

Para isso será necessário quebrar os gargalos da comercialização, construir redes de cooperativas de crédito e de fomento, de incubadoras de empresas e de transferência tecnológica e democratizar ao máximo o capital. Do ponto de vista estritamente econômico, isso pode representar a construção progressiva de um modelo alternativo e concorrente aos primeiro e segundo sistemas, dando livre curso a diferentes formas de propriedade (inclusive solidárias), ao desenvolvimento das forças produtivas e da produção e à massificação do mercado doméstico.

Embora isto represente o reforçamento capitalista do terceiro sistema, nas atuais condições esse é o caminho possível para superar a fragmentação popular. Só ele pode ampliar de forma acentuada o número de assalariados e criar novas condições para sua orga­nização e mobilização como classe. A criação de um modelo econômico alternativo consiste na transformação do terceiro e do quarto sistemas em poderosas forças econômicas, sociais e políticas e na sua consolidação como a base da aliança de sustentação do governo Lula e das mudanças estruturais populares e democráticas.

A governabilidade e o rumo do governo dependerão, em grande medida, da força social dessas classes hoje relativamente fragmentadas e fracas, da manutenção da divisão da burguesia e da vitória na disputa de hegemonia ideo­lógica e política contra o neoliberalismo. É fundamental que a esquerda volte a entender que aliança não é apenas união, é também luta. E que a luta não é apenas combate isolado, também comporta alianças. Dentro da atual frente única que sustenta o governo, a luta deve ser desenvolvida no sentido estratégico de reforçar a aliança contra o sistema dominante, tendo o programa comum como parâmetro e a transformação das suas forças sociais fracas em fortes.

Os setores neoliberais vão realizar intrigas e provocações para romper a frente única. E alguns setores aliados vão acompanhá-los. Então, será preciso responder cada golpe com um golpe, mas tendo como argumento a razão e, como limite, a necessidade de isolar o sistema corporativo dominante e manter o segundo e o terceiro sistemas na aliança com o sistema popular.

O povo brasileiro fez uma escolha. E só dando o melhor de si para efetivá-la, a esquerda se manterá como referencial. Sobre ela, da qual o PT é a maior expressão, não pode pairar qualquer dúvida de que faz tudo para concretizar as reformas e mudanças demandadas. Terá que estar carregada de razões políticas se os inimigos das reformas democráticas e populares tentarem impedi-las e impor um outro caminho. O que só será possível se tiver uma pauta que esclareça as condições em que está lutando e as estratégias e táticas que deve empregar.

Wladimir Pomar é jornalista, membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.