Internacional

Documento que deve ser debatido no encontro que acontece em Havana em julho aponta caminhos para enfrentar e derrotar a contraofensiva neoliberal na nossa região

XXIV Encontro Anual do Foro de São Paulo acontece em julho em Havana, Cuba. Foto: Agência Cubana de Notícias

Criado a partir de uma convocatória dos ex-presidentes Lula e Fidel Castro a partidos, movimentos e organizações de esquerda em julho de 1990, a reunião que daria origem ao Foro tinha então o objetivo de refletir sobre os acontecimentos pós-queda do Muro de Berlim e sobre caminhos alternativos e autônomos à esquerda do continente, para além das respostas tradicionais de socialistas e comunistas europeus.

Ao longo dos anos 1990, esses partidos buscaram resistir às políticas ortodoxas do modelo neoliberal e estabeleceram interlocuções importantes junto aos movimentos sociais, sindical e populares, no bojo das campanhas contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e de construção do Fórum Social Mundial. Entre o final da década e meados dos anos 2000, diversos desses partidos chegaram pela primeira vez aos governos nacionais de seus países por meio de uma série de vitórias eleitorais históricas na região.

Apesar das particularidades sociais, econômicas e políticas de cada país, em linhas gerais e com graus variados, os novos governos de esquerda, progressistas e democrático-populares, conseguiram reduzir as desigualdades históricas presentes em nosso continente por meio de uma série de políticas públicas de caráter inclusivo e aplicaram diretrizes autônomas de política externa e de integração regional, que se manifestam, por exemplo, na reorientação política do Mercado Comum do Sul (Mercosul), na criação da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).

No entanto, hoje está em curso no continente latino-americano e caribenho uma forte contra-ofensiva neoliberal que se expressa pelo aprofundamento da crise econômica por meio das manobras, principalmente, dos setores financeiros internacionais, da especulação com os preços de commodities, do petróleo em particular, e de golpes de Estado por meio dos poderes judiciários e legislativos e da mídia corporativa. Essa ofensiva vem revertendo conquistas políticas e sociais e substituindo-as por medidas neoliberais ainda mais radicais do que aquelas que enfrentamos nos anos 1990. Dessa maneira, assistimos agora a profundos ataques aos direitos sociais em vários de nossos países através de planos de austeridade e submissão política aos interesses do neoliberalismo, do sistema financeiro internacional e das grandes transnacionais.

É no contexto desse quadro que, em janeiro de 2017, o Grupo de Trabalho do Foro de São Paulo apresentou ao conjunto dos partidos-membros um novo documento, analisando nossa trajetória até aqui e lançando novos debates e proposições, o Consenso de Nossa América. Esse documento foi tomado pelo XXIII Encontro Anual, em Manágua, Nicarágua, em julho de 2017, como referência para o debate nos partidos e junto aos movimentos sociais e populares de nossa região.

As forças do capitalismo e seus principais agentes buscaram reagir de maneira intensa e destrutiva frente ao período sumamente exitoso de 1998 a 2014 de nossa região, marcado pelo desenvolvimento econômico com justiça social, mas principalmente marcado pela inserção soberana de nossa região no mundo globalizado e consequentemente pela alteração da correlação de forças com a criação da Unasul, da Celac e dos Brics por meio da participação do Brasil, maior país da região latino-americana e caribenha.

Ao mesmo tempo, o Consenso aponta que "assistimos a um momento de mudanças nas correlações de forças, que põem em avaliação e debate a projeção da proposta da esquerda latino-americana e caribenha. Desde nossos acertos e desacertos, ensinamentos e aprendizagens, consideramos que se extraem suficientes lições como para legitimar nossa luta e nossos projetos. Estamos dispostos a enfrentar e superar resolutamente e unidos este estado de coisas. É o que nossos povos esperam de nós e a isso devemos direcionar nossos esforços, correções  e perspectivas".

Esse novo documento apresenta como ponto de partida os valores que nos unem como instrumentos políticos da mudança:

  1. A igualdade, a equidade e a justiça social;
  2. A democracia e a luta pela liberdade, aprofundando seu caráter popular, direto, participativo e comunitário;
  3. A unidade de nossas forças e organizações e a indissolúvel relação com nossos povos;
  4. O rechaço a qualquer expressão de fascismo, racismo, xenofobia, machismo, misoginia e homofobia, e à discriminação de qualquer origem ou natureza;
  5. A solidariedade com outras pessoas e nações bem como a realização plena do direito à Paz;
  6. O direito de cada país a escolher o sistema político e social que seus povos democraticamente decidam;
  7. A ética, a honradez, o exercício transparente do governo e a administração dos bens públicos e coletivos e a luta sem tréguas contra a corrupção são valores das organizações de esquerda;
  8. A integração regional soberana como objetivo estratégico.

A partir de um profundo diagnóstico econômico, político e social, o Consenso de Nossa América apresenta para debate suas orientações estratégicas, partindo do pressuposto de que “as transformações necessárias para mudar e desenvolver a América Latina e Caribe, e contribuir ao ideal de um mundo melhor, ultrapassam qualquer projeto nacional e requerem desenvolver uma comunidade de objetivos e princípios gerais nos quais se deve fundar a transformação. Estes objetivos e princípios devem ser assumidos solidariamente, por todas as pessoas que estão comprometidas com a mudança, com atenção às particularidades nacionais, mas com vocação integracionista e internacionalista”.

Essas orientações estratégicas apontam caminhos para enfrentar e derrotar a contraofensiva neoliberal na nossa região. Ressaltamos algumas delas.

Na ordem econômica, é preciso construir um abarcador processo de integração econômica e social, de caráter libertador e não subordinado, na perspectiva de desenvolvimento econômico e social de Nossa América, procurando a maior complementação entre os países, aproveitando as forças econômicas como os recursos naturais disponíveis e o desenvolvimento tecnológico e científico da força de trabalho de cada zona, país ou grupo de nações. A integração regional é a chave para garantir nossa soberania, como a condição para inserir-nos em um mundo globalizado, preservando a capacidade decisória sobre nosso futuro. Deve se desenvolver um mercado interno regional que propicie a sustentabilidade do modelo econômico que buscamos desenvolver e como alternativa à instabilidade do denominado mercado externo. Isto não pressupõe isolar-nos do mundo, mas nos vincularmos a partir de melhores condições econômicas, desenvolvimento social e preservação da independência.

Ainda no âmbito econômico, o Estado deve jogar o papel fundamental de regular a atividade econômica, portanto deve garantir a distribuição justa da riqueza e implementar planos de desenvolvimento econômico e social que gozem do respaldo popular e se articulem ao processo de integração regional latino-americano e caribenho. Isso não exclui o papel de setores privados, tanto nacionais como estrangeiros, mas todos sob a orientação de um plano de desenvolvimento nacional orientado ao fortalecimento do mercado interno, a exportar valor agregado e articulado a um processo de integração regional e em cumprimento das legislações trabalhistas e ambientais, entre outras. Uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo deve pôr ênfase na direção da transformação estrutural e da mudança tecnológica, compatível com os equilíbrios macroeconômicos e centrada nos objetivos do desenvolvimento humano, da igualdade e da sustentabilidade ambiental.

Na ordem social, temos a convicção de que a distribuição equitativa da riqueza é um dos signos distintivos de um projeto de esquerda. As políticas fiscais devem se orientar e ser concebidas sob o princípio de que não existe desenvolvimento genuíno sem a maior inclusão social possível, a igualdade de oportunidades e o acesso de todos os cidadãos e cidadãs aos bens e serviços socialmente produzidos, segundo o aporte de cada qual. Assim sendo, os serviços de educação e saúde devem estar ao alcance de todos os cidadãos, pautados sob os princípios humanistas e solidários. Devem constituir preocupação constante dos Estados no exercício de suas políticas públicas a erradicação de flagelos neoliberais, tais como a pobreza e a indigência, a toxicodependência, a alienação social, o descuido na atenção a setores mais vulneráveis como as pessoas com deficiência, os anciãos e a infância; assim como os historicamente discriminados como as mulheres, os afrodescendentes, os povos originários e a comunidade LGBT.

O equilíbrio dialético entre a necessidade do desenvolvimento e os direitos da natureza é uma aspiração que se deve alcançar. Herdamos processos que durante séculos desconheceram este enfoque e agora devemos nos responsabilizar por implementá-lo; nosso desenvolvimento tem que ser sustentável.

Há que avançar no desenvolvimento, fortalecimento, divulgação e enriquecimento da riqueza cultural de nossos povos, que nos permita dar uma batalha cultural a fundo contra os valores alienantes do capitalismo; devemos trabalhar para conformar uma frente de pensamento mobilizando a intelectualidade que foi excluída pelo poder hegemônico e que seja capaz de gerar conteúdos de carácter verdadeiramente descolonizadores, que dotem as pessoas de referências culturais sólidas num mundo cada dia mais influenciado pelo consumismo e pela banalidade.

Como um documento de caráter estratégico, o Consenso de Nossa América ainda aponta para os desafios organizativos e ideológicos que essa quadra histórica nos exige, como a unidade de ação, a profunda ligação com o povo e suas organizações, a mobilização popular, a necessidade de inserir as juventudes e seus sonhos nas lutas de nosso povo.  A juventude já é protagonista principal em muitos cenários e devemos reconhecer a importância de sua participação como um dos sujeitos históricos principais, pelo que devemos lutar por impedir que o capitalismo despolitize, neutralize ou se apodere deste grande setor da sociedade.

Todo esse debate será aprofundado no XXIV Encontro Anual do Foro de São Paulo a ser realizado no mês de julho em Havana, Cuba.

Vivemos hoje imensos e complexos desafios; enfrentamos as forças mais poderosas do mundo, mas cujo poderio econômico e militar não pode ir contra o poder da razão, das ideias e sonhos, dos mais altos valores da humanidade. O Consenso de Nossa América busca contribuir nessa luta. Lutar e crescer. Lutar e vencer. Lutar até a vitória. Sempre!

Monica Valente é secretária de Relações Internacionais do PT e secretária Executiva do Foro de São Paulo