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As instituições estão a serviço do golpe e de suas finalidades espúrias. O direito, a política, nossos destinos dependem, cada vez mais, do que formos capazes de fazer, do “sentimento constitucional” dos trabalhadores e do povo!

O pleno do STF ao julgar o HC de Lula deu um “show” pirotécnico, produziu um espetáculo pavoroso, quase inverossímil. Foto: Carlos Moura/STF

A ideia de Estado de direito, surgida no século 17 das lutas do liberalismo político contra as ordens absolutistas dos monarcas, funda-se na prevalência das normas de tutela dos direitos e garantias do indivíduo contra a razão de Estado. Ao longo dos tempos, como resultado da dinâmica das lutas sociais, incorporou novos conteúdos e dicções hermenêuticas, mas sem nunca perder a reverência ao valor da liberdade, da isonomia e da racionalidade de seus postulados. Podemos afirmar, sem medo de errar, que as premissas do Estado de direito – pelo menos no plano formal, retórico – firmaram-se como um conceito intangível, insuscetível de refutação, consolidando-se como exigência indeclinável daquilo que se costuma chamar de “via civilizatória”. Mesmo em relação àqueles que, a despeito de reconhecerem sua importância, abordam criticamente sua efetividade no espaço concreto das relações de poder, de força estabelecidas entre as classes sociais no interior do Estado.

Entretanto, vários autores clássicos brasileiros já tematizaram fartamente acerca da precariedade em nosso país da validade do Estado de direito, como da democracia e dos direitos humanos. Entre tantas causas, sobreleva as determinações oriundas da dominação de classe exercida por nossa burguesia, posto que esta – foi e é – incapaz de vertebrar um desenvolvimento econômico, social, político, cultural pautado na cidadania, na distribuição generalizada de bens às maiorias, no acesso amplo das pessoas ao mercado interno. Daí a persistência autocrática, o apelo recorrente ao Exército, a constante reiteração do arbítrio contra “as classes perigosas”, valendo-se do insidioso e faccioso discurso da mídia do capital. Na verdade, nossa história desvela de maneira tristemente “pedagógica” a clivagem estrutural no funcionamento das instituições, em que o Estado de direito – a condição de cidadania – vê-se estendido a poucos; enquanto a maioria é objeto do uso da força, do despotismo, da privação de direitos e garantias as mais singelas. O ineditismo do Estado de exceção é a centralidade atribuída à magistratura, já que anteriormente tal protagonismo era das Forças Armadas, ou dos aparatos repressivos policiais.

A “judicialização da política” que assistimos no Brasil ganha força com a estratégia de debilitamento dos governos Lula e Dilma, impelido pelo deslocamento de forças e energias das classes dominantes, para o nicho das burocracias judiciárias, menos infensas às demandas das maiorias populares. O aprofundamento da lógica “decisionista” dos juízes, de suas cúpulas, devidamente acompanhado de uma visão fascista, totalitária que divide o campo do direito entre “amigo” e “inimigo”, torna-se evidente, num espetáculo de insurgência contra a Constituição e o princípio da separação dos poderes, dissolvendo, assim, a normatividade das regras em argumentação frouxa, completamente aberta à construção de juízos discricionários, subjetivistas. O moralismo devora o direito, inverte suas garantias, interdita e suspende direitos. Pior, o direito público, constitucional, vê-se toldado pelo “imperalismo” do penalismo de exceção, do crime de autor, afastando-se dos padrões de impessoalidade, universalidade que marcam a noção do Estado democrático de direito. Cabe aos juízes agora, mais do que a outras autoridades instituídas no âmbito do golpe, dizer quem é “o inimigo” a ter seus direitos e prerrogativas suspensos pelo próprio direito, sua aplicação, em plena consonância com as lições do jurista do nazismo, Carl Schmitt.

O recente julgamento do Habeas Corpus 152.752 (Luiz Inácio Lula da Silva X STJ) é mais uma peça do rearranjo institucional promovido pelo golpe dado em 2016, voltado para a criminalização das classes populares e de seus agentes políticos e sociais, como parte de demarcação de um novo ciclo acumulativo entre a burguesia especulativa internacional e a nacional, no bojo do qual os trabalhadores precisam ser marginalizados, contidos, expropriados de seus direitos e dignidade. Tal decisão denegatória do “remédio heroico” pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é, por si só, emblemática, quanto mais se nos detivermos nos argumentos dos ministros que a defenderam, absolutamente chocantes pelo tom desabridamente alheio aos fundamentos constitucionais das liberdades.

Afinal, o que estava em questão era de uma clareza incontroversa, o sentido literal, inequívoco, do Princípio da Presunção de Inocência assegurado pelo Art. 5º inciso LVII da Constituição Federal de 1988, que define como comando expresso, insuscetível a dúvidas interpretativas, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória”. Trânsito em julgado que designa, como sabe até o “mundo mineral”, aquelas decisões judiciais que não podem mais ser objeto de recurso, dada sua definitividade, o que evidentemente não é o caso do exemplo em exame. O fato de o STF em julgamento anterior ter relativizado a questão, admitindo, em tese, a possibilidade de execução de decisão condenatória em segunda instância, tem o condão de comprovar a situação de excepcionalidade da conduta do STF no golpe. Alega-se, ainda, que mesmo tal decisão anterior, fundada em pretensão de legislador constituinte do STF, pois atribui novo sentido a texto expresso da lei maior, numa afronta aos limites circunscritos da figura da “Mutação Constitucional”, não autoriza a interpretação acerca de uma hipotética aplicação geral desse entendimento a todos os casos sob análise, mas apenas de sua possibilidade num caso concreto fortuito. Decisão do STF que, diga-se de passagem, foi urdida às pressas, em razão de pressão midiática voltada, exclusivamente, para ser utilizada contra Lula, a pedido do Torquemada de toga da Globo, sr. Sérgio Moro.

Comecemos pelo exame teratológico do voto do relator do HC de Lula, Edson Fachin, eivado de particularismos estranhos ao sentido garantista da Constituição, esta que é a lei que consagra a principalidade dos direitos fundamentais sobre os aspectos formais, procedimentais do direito. Fachin “impressiona”, primeiro pelo grau de “transformismo” revelado, ao deslustrar toda sua história pregressa de compromissos com os movimentos sociais, com o MST; segundo pela “ousadia” insólita de sua “hermenêutica”, calcada em malabarismos argumentativos fragilíssimos.

Fachin chega ao ponto de aludir a jurisprudência da Corte Interamericana de Justiça sobre Direitos Humanos para racionalizar a pressa hiperpunitivista dos atos de Moro e do TRF-4 contra Lula, alegando, paradoxalmente, que as condenações sofridas pelo Brasil em decorrência da morosidade dos julgamentos feitos pelo Judiciário em desfavor de suas vítimas seriam razão para negar o HC ao ex-presidente. Menção a tal sofisma vexatório, que recebeu a repulsa pública de juristas e entidades de direitos humanos, como a ONG Terra de Direitos, dada a feição “criativa” exarada no voto de Fachin, de tentar usar a jurisprudência em prol dos direitos humanos para, justamente, “flexibilizá-la”, relativizando uma garantia fundamental do cidadão contra o arbítrio estatal.

Outro voto que destacou-se pelo flerte inacreditável com a barbárie foi o de Luís Roberto Barroso, hoje sem dúvida a figura mais ameaçadora aos valores garantistas da Constituição em relação à esquerda e aos movimentos sociais. Seu discurso enfronhou-se ao rés do chão do mais abismal senso comum, esgrimindo dados estatísticos de maneira oportunista para legitimar o viés hiperpunitivista de sua conduta e do Judiciário nativo em tempos de Lava Jato. Mandou “às favas os escrúpulos”, investindo contra a tradição da defesa do habeas corpus inaugurada por Rui Barbosa, numa constrangedora apologia do pragmatismo autoritário de cunho penalista. Nada, talvez, tenha sido mais acabrunhante do que sua manipulação argumentativa dos princípios, sem nenhuma mediação concretizadora com as demais normas, buscando esvaziar o âmago protetivo do sistema de direitos fundamentais, notadamente do Princípio da Presunção de Inocência, este indispensável para a preservação do núcleo do Estado de direito e de seus valores estruturantes, como os princípios da legalidade, da ampla defesa, do contraditório, da prévia fixação dos tipos de delito e tantos outros com ele relacionados sistemicamente, completamente, teleologicamente.

Destaca-se ainda, como ponto alto da sessão teratológica do “julgamento” do HC de Lula, o voto confuso, contraditório, débil, covarde e lamentável da ministra Rosa Weber, proferido com voz titubeante, tremelicante, e que foi objeto da sanha da narrativa midiática e da manifestação explicitamente golpista do general Villas Boas. Um voto em que a ministra “dançou” de um lado para outro, forcejando por equilibrar-se em meio a razões antinômicas, mas que culminou por uma menção salvacionista, por uma rota de fuga, ao apontar para a “tábua” argumentativa da “colegialidade”. “Colegialidade” abstrata, timorata, mero escudo vil para reproduzir o voto anterior do pleno do STF, já que a “colegialidade” só pode ser compreendida como resultante institucional, unidade concreta do pluralismo de entendimentos manifestada por cada um dos ministros sobre a Constituição, seus princípios e regras.

Vileza e covardia que foram arrematadas com o voto da presidente do STF, Cármen Lúcia, expedita porta-voz da “opinião publicada” via mídia e responsável maior pela crise de credibilidade de uma corte inabilitada até para cumprir suas funções ordinárias de controle judicial da constitucionalidade, como fez ao impedir que entrasse na ordem do dia do pleno do STF o exame das Ações Diretas de Constitucionalidade 43 e 44 sobre a conveniência da prisão de condenado em segunda instância, antes de exauridas as vias recursais de um processo. Mesmo as advertências feitas por Marco Aurélio, Lewandowski, Celso Mello, Gilmar Mendes não foram suficientes para que aquela sessão fosse pautada no devido e esperado rigor do cumprimento das funções institucionais que se aguardam de uma Corte Constitucional.

Enfim, o pleno do STF ao julgar o HC de Lula deu um “show” pirotécnico, produziu um espetáculo pavoroso, quase inverossímil, posto que desabonador do nível de degradação a que o golpe levou as instituições, notadamente as judiciais, em que, sequer, as aparências são mais salvaguardadas. Não é à toa que a comunidade jurídica internacional tem ficado estupefata com o papel desempenhado pelo STF, por suas ações e omissões eloquentes, como as que concederam um poder expandido a Sérgio Moro, transformando-o em espécie de juiz universal das causas contra petistas e Lula, até a legitimação das medidas cautelares tornadas “definitivas”, com o expediente de tortura de presos no intuito de fabricar provas contra os acusados, num retorno ao sistema penal inquisitório medieval, ou mesmo o acatamento da teoria do domínio do fato e tantas outras “excentricidades” anticonstitucionais, consideradas usuais.

Há tempos enveredamos pela desobediência civil, pelo levante “dos de cima”, conjurados destruidores da Constituição de 1988, de seus direitos individuais, sociais, difusos, bem como dos fundos e políticas públicas. É mais do que urgente que o PT, demais partidos, organizações populares e democratas mobilizem as ruas, pois é delas que dependem nosso presente e futuro. As instituições estão a serviço do golpe e de suas finalidades espúrias. O direito, a política, nossos destinos dependem, cada vez mais, do que formos capazes de fazer, do “sentimento constitucional” dos trabalhadores e do povo!

Newton de Menezes Albuquerque é professor de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade de Fortaleza