Cultura

Um blockbuster que não tem a dimensão de obras como "Malcolm X" e "I Am Not Your Negro", comoventes e provocadoras, que retratam as lutas e as glórias dos afro-americanos com comprometimento

O Pantera Negra do cinema é uma antítese dos Black Panthers da vida real, afinal ele quer fazer parte do sistema e não transformá-lo. Foto: Reprodução

Sucesso absoluto de público no mundo inteiro, Pantera Negra tem acumulado, desde o seu lançamento, no começo de 2018, uma infinidade de críticas elogiosas na imprensa internacional. Com um orçamento de US$ 200 milhões, esta superprodução hollywoodiana já arrecadou até agora quase cinco vezes o valor de seu investimento original. Não podemos esquecer, contudo, que este é um filme para adolescentes, feito pela grande indústria cinematográfica norte-americana, com um roteiro linear e esteticamente muito parecido com outros trabalhos do gênero.

Alguém poderá dizer que é difícil agradar a todos. É verdade. Mas quando uma fita é exaltada pelos extremos do espectro político, de militantes progressistas a comentaristas conservadores da grande mídia corporativa, temos de desconfiar...

Vale recordar que há diferenças entre o personagem dos quadrinhos criado por Stan Lee e Jack Kirby, em 1966, e aquele retratado na telona. Nos gibis, foram muitos os desenhistas e roteiristas que, ao longo das décadas, deram vida ao herói. Os câmbios seriam variados: desde mudanças no visual do uniforme até mesmo a alteração, por um breve período, do próprio nome do protagonista (os editores, preocupados com possíveis repercussões desfavoráveis, não queriam que houvesse qualquer conexão com o Black Panther Party (BPP) e seu ideário “radical”). Seja como for, nenhum personagem de ficção é estático e pode, por certo, ser modificado para se encaixar no perfil do público de cada época... ou dos executivos da indústria de entretenimento. A atual adaptação da HQ não foge à regra. E nela podemos encontrar diversos indicativos do pensamento cultural hegemônico contemporâneo.

Lembremos que a história se passa no reino fictício de Wakanda: segundo a versão “cinematográfica”, em um passado distante, um meteorito feito de vibranium (aparentemente “o metal mais poderoso do universo”) atingiu aquela região da África Oriental, afetando a natureza à sua volta. Muito tempo depois, cinco “tribos” se estabeleceram na área. Após lutarem encarniçadamente pelo cobiçado material proveniente do espaço sideral, quatro delas seriam unificadas por um guerreiro que ingeriu uma erva “em forma de coração” (planta esta que havia absorvido as características dos elementos encontrados no astrólito, dando-lhe imediatamente poderes sobre-humanos). Ele seria o primeiro de uma linhagem de “Panteras Negras”...

Wakanda acabaria sendo controlada por uma monarquia “isolacionista”, na qual uma casta nobre permaneceria no poder até a atualidade. Lá, ao que tudo indica, não existe uma verdadeira democracia: o povo local não escolhe seus líderes e aceita passivamente o status quo social. Será que há algum interesse por eleições naquelas plagas? A população já ouviu falar, por acaso, de uma urna de votação? Esse não é um ponto que interessou aos roteiristas. Nem ao público que vai aos cinemas... A aceitação ao sistema estabelecido é total, pelo menos nesse filme. Por isso Wakanda pode permanecer em sua bolha existencial, sem qualquer preocupação com o mundo exterior.

A história da humanidade parece não estar entre as principais preocupações dos dirigentes daquele misterioso país que, por causa do vibranium, tornou-se altamente desenvolvido. Apesar de aparentar ser uma nação essencialmente agrícola e atrasada, é, na prática, um dos lugares mais modernos da Terra em termos tecnológicos: sua capital (escondida das vistas de todos) é uma cidade enorme, vibrante, com edifícios altíssimos, onde máquinas voadoras futuristas transitam de um lado ao outro. Os equipamentos médicos mais avançados do planeta estão lá; as armas usadas por seus exércitos e forças de segurança, as mais poderosas de que se tem notícia; e o monarca, um homem com força e agilidade descomunais (mesmo cercado de guerreiras e cientistas do sexo feminino, o que poderia indicar maior centralidade no papel das mulheres, quem controla o poder e decide tudo, em última instância, é um homem). Ainda assim, os wakandianos preferem se acantoar. A fome, a miséria, as guerras e a escravidão de seus irmãos africanos por vários séculos não foram motivos suficientes para que eles movessem um dedo sequer na luta por sua libertação. Os líderes locais sempre preferiram manter-se distantes dos horrores do colonialismo em vez de enfrentá-lo...

Essa questão pode parecer forçada à primeira vista, especialmente se analisarmos Pantera Negra apenas como uma película de ação e entretenimento para jovens. Mas ela já foi colocada pelos próprios artistas que levaram o “paladino” às páginas dos gibis. A partir de 1973, pelas mãos de Don McGregor, algumas dessas perguntas instigariam os leitores em vários comic books que tinham T’Chala como destaque. A ideia de um potentado africano que passava a maior parte do tempo fora de seu território convivendo constantemente com os imperialistas forâneos assim como a própria natureza do sistema político daquele domínio seriam temas abordados pelo famoso roteirista da Marvel (ele, por sinal, foi o responsável por colocar o Pantera Negra no sul dos Estados Unidos para combater os membros da Ku Klux Klan (KKK) em The Panther vs. The Klan). Em outras palavras, McGregor “politizou” a narrativa daquele indígete. Já o filme...

No começo da década de 1990, o rei T’Chaca viaja até a Califórnia para “desmascarar” seu irmão N’Jobu, que lá vivia e realizava, secretamente, negociatas para fornecer vibranium ao traficante Ulysses Klaue. A traição é corroborada por Zuri, “supostamente” amigo e homem de confiança do príncipe, mas que se revela, na verdade, um agente enviado para espioná-lo. No fim das contas, o abjurante é executado a tiros por T’Chaca, que esconde o homicídio pelo resto da vida, perpetuando a mentira de que seu mano havia fugido e nunca mais fora visto.

É aí que entra o menino N’Jadaka (também chamado de Erik “Killmonger” Stevens), o filho de N’Jobu, que crescerá nos guetos de Oakland (a cidade natal do diretor Ryan Coogler e, por “coincidência”, onde foi fundado o Partido dos Panteras Negras). Na época do crime contra seu pai, ele era apenas uma criança. Ficará sozinho, testemunhando e sofrendo as injustiças e as desigualdades do capitalismo da “América” durante toda a infância. Passará a vida remoendo sua raiva e se preparando, como um soldado de operações especiais, para, algum dia, reclamar o trono de Wakanda.

O próprio T’Chaca será assassinado num atentado em Viena: seu herdeiro T’Chala imediatamente o sucederá. O chefe dos Jabari (a única tribo das cercanias que não aceitou se submeter ao mando regional daquela monarquia), entretanto, decide desafiar o futuro soberano pelo trono. Essa, uma das poucas formas de conquistar o poder: o parentesco ou a força bruta... Ao perder o combate, contudo, ele aceita, sem discutir, o destino que lhe reserva... E T’Chala é finalmente confirmado como o novo Pantera Negra.

Mal sabiam os wakandianos que Killmonger reapareceria, algum tempo depois, para exigir e provisoriamente tomar o cetro... Seu objetivo é usar todos os recursos da moderna nação africana (especialmente o vibranium) para apoiar a luta de libertação dos povos negros e oprimidos ao redor do mundo (o mesmo desejo de seu progenitor, muito tempo antes). Apesar disso, ele é retratado como o vilão da história!

Não custa recordar que o enredo se passa nos dias de hoje e que N’Jadaka tem muitas das características de um ativista político radical que cresceu tendo todos os meios de informação de massa à sua disposição. Ainda assim, ele é movido somente pelo ódio, sem fazer qualquer mediação com as múltiplas experiências de conflitos sociais ou com o arcabouço bibliográfico sobre a questão racial produzido desde o pós-guerra. Ele não menciona em nenhum momento o processo de descolonização da África, Patrice Lumumba, Kwame Nkrumah, Frantz Fanon, Amílcar Cabral, a revolução cubana, a luta pelos direitos civis... Algo, sem dúvida, muito estranho para alguém com seu grau de conhecimento, num país onde há abundância de informações... Não há uma tentativa sequer de construir uma luta política mais ampla, de se fazer qualquer elaboração teórica sobre a realidade global nem de convencer os wakandianos da nobreza e importância de seus objetivos.  Killmonger parece querer apenas vingança e destruição. Assim, o filme “despolitiza” o personagem mais interessante da trama e o transforma no exemplo a não ser seguido. Na verdade, ele precisa ser destruído. Seu discurso deve ser substituído por outro, mais moderado, suave e aceitável. E a pessoa ideal para levar adiante a mensagem apaziguadora de Hollywood é ninguém menos que T’Chala, o Pantera Negra! Mas ele não está sozinho nesta empreitada. Para acabar com tal ameaça inominável, Wakanda pode contar com seu amigo mais fiel e aliado de confiança: Everett Ross, um agente da CIA, representante legítimo de uma das mais abomináveis instituições dos Estados Unidos!

No final do longa, T’Chala vai até Oakland, onde vê um menino negro jogando basquete no mesmo bairro pobre onde Killmonger viveu quando garoto. O “rei”, como sinal de sua “magnanimidade”, então, diz o que fará para resolver aquela situação: patrocinará um programa social comunitário de apoio a jovens marginalizados, dando todas as condições para que pudessem estudar, praticar esportes e se tornar bons cidadãos... A resposta para as aflições de nosso tempo: o “assistencialismo” institucionalizado. A questão é saber quantos daqueles meninos, a partir desse tipo de política assistencial, conseguiriam, de fato, chegar ao trono de um reino (ou às mais altas esferas dos meios políticos e econômicos dos EUA) e se tornar “majestades” (ou “presidentes”) como o “bondoso” benfeitor estrangeiro. E se este deveria ser o caminho almejado para realizar os câmbios estruturais necessários... Temos, nesse caso, quase a reedição do velho mito de Horatio Alger e de tantos outros ideólogos do American Dream, agora sendo levado aos espectadores através de mais um personagem de Hollywood. Um blockbuster, portanto, que não tem a dimensão e a profundidade de obras como Malcolm X (Spike Lee), Selma (Ava DuVernay), Black Panthers: Vanguard of the Revolution (Stanley Nelson Jr.) e I Am Not Your Negro, de Raoul Peck (que, por sinal, recentemente também levou às telas O Jovem Karl Marx), todos comoventes e provocadores, com diretores e elenco majoritariamente de negros e que retratam as lutas e as glórias dos afro-americanos com integridade, honestidade e comprometimento. Os verdadeiros “heróis”, portanto, são os homens e mulheres de carne e osso, os “trabalhadores” da cidade e do campo, e não membros da realeza usando máscaras e fantasias...

Para completar, T’Chala fará um discurso para os delegados das Nações Unidas, afirmando que seu governo estaria pronto para cooperar com o resto da humanidade. É a vitória do “colaboracionismo” em escala mundial... A suposta “grandeza” do gesto, neste caso, seria estender as mãos aos seus opressores seculares e superar quaisquer ressentimentos históricos, em nome da amizade entre os povos.

O Pantera Negra do cinema, portanto, parece ser a antítese dos Black Panthers do mundo real. Afinal, ele não quer mudar o sistema, mas sim fazer parte dele. Por isso, a capa de uma recente edição britânica da GQ Magazine (uma publicação focada em “fashion, style, and culture for men”) com a foto do ator Michael B. Jordan (que interpreta Killmonger na trama) vestido como militante do BPP (com direito a jaqueta de couro e boina preta na cabeça) parece mostrar como a história pode ser torcida, ressignificada e transformada em mais um produto de consumo de massa...

Luiz Bernardo Pericás é professor de História Contemporânea na USP, doutor em História Econômica (USP) e pós-doutor em Ciência Política pela Flacso (México) e pelo IEB/USP. Autor de Caio Prado Júnior: uma Biografia Política, em 2016 ganhou o Prêmio Juca Pato, intelectual do ano, concedido pela União Brasileira de Escritores (UBE)