O deputado federal Waldir Pires (PT/BA) tem uma longa trajetória política. Aos 24 anos, foi secretário de Governo do Estado, na Bahia, na administração Régis Pacheco (1951-55), onde permaneceu até 1953. Aos 28 anos, eleito deputado estadual, foi líder da bancada do governo Antonio Balbino. Em 1958, deputado federal, exerceu a vice-liderança da maioria no governo Juscelino Kubitschek. Foi consultor-geral da República do governo João Goulart, uma espécie de ministro sem-pasta. Disputou pela primeira vez a candidatura ao governo da Bahia em 1962. Nos seis anos de exílio, passou o primeiro no Uruguai e os demais na França.
Voltou ao Brasil em 1970 e permaneceu no Rio de Janeiro, onde participou da luta pela restauração democrática e trabalhou no setor privado, até 1979. Com a conquista da anistia e a revogação do AI-5, recupera os direitos políticos e retorna à Bahia. Após a queda do regime militar, é nomeado ministro da Previdência por Tancredo Neves, em 1985. Em 1986 concorreu ao governo da Bahia pelo PMDB, sendo eleito com 1,5 milhão de votos de frente. Deixou o governo em 1989, depois de perder, com estreita diferença, para Ulysses Guimarães, na Convenção Nacional do PMDB, a candidatura à Presidência da República, para com ele compor, na qualidade de vice, e por unanimidade, a chapa do PMDB ao governo do país.
Em 1990 voltou ao Congresso Nacional, eleito deputado federal pela Bahia. Em 1994, a fraude eleitoral impediu sua diplomação como senador da República. A batalha judiciária para a recontagem dos votos durou seis anos e a recontagem nunca foi obtida. Ficou, para sempre, a suspeita da fraude, marcando a reputação do TRE da Bahia. E a complacência, também, pela negativa simplesmente formal da apreciação dos fatos, nos tribunais superiores.
Qual a sua origem?
Nasci em Acajutiba, em 1926 e me criei em Amargosa, dois municípios baianos. Meu pai, José Pires de Souza, e minha mãe, Lucíola Figueiredo Pires, lutaram muito para assegurar, a todos os filhos, a educação que nos abriu os horizontes. Comecei a trabalhar aos 15 anos como datilógrafo. Formei-me em direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia em 1949. Menos de dois anos depois, me casei com Yolanda, que me deu cinco filhos. Agora somos avós de dez netos.
Como membro do primeiro escalão, qual é sua avaliação do governo Goulart?
O ano 1963 havia começado bem para Goulart. Um plebiscito decidiu, em janeiro, se deveria ou não continuar o parlamentarismo que lhe havia sido imposto, para que ele pudesse assumir a Presidência em setembro de 1961, logo após a renúncia de Jânio Quadros, do qual era vice. O parlamentarismo foi fragorosamente derrotado: quase 10 milhões de brasileiros disseram sim ao presidencialismo e apenas um milhão confirmariam o parlamentarismo. A direita, no entanto, não se conformava e articulava a derrubada do presidente. Os sinais mais claros da confrontação foram dados no segundo semestre de 1963. O governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, golpista conhecido, concedeu uma entrevista agressiva ao Los Angeles Times, afirmando que Goulart iria ser deposto, que havia uma conspiração militar em marcha, e criticou duramente alguns chefes militares leais ao governo. Goulart reuniu-se com seus ministros e concluiu que a saída para reprimir as tentativas golpistas, e inclusive prender Lacerda, seria a instituição do estado de sítio. No dia 4 de outubro, Goulart pediu a decretação da medida ao Congresso Nacional. Logo depois, foi obrigado a retirar a proposta porque lideranças importantes como Miguel Arraes e Leonel Brizola (governadores do Pernambuco e Rio Grande do Sul), além das forças de direita, opuseram-se à idéia.
Por quê?
Arraes achava que, instituída uma situação como a pretendida por Goulart, ele também poderia ser atingido. Mas pouco antes o presidente estivera em Recife, dando-lhe demonstrações de grande apreço. Goulart pretendia reprimir os golpistas, entre os quais Adhemar de Barros, governador de São Paulo, outro dos envolvidos em articulações contra o governo constitucional. Lacerda e Adhemar saíram fortalecidos do episódio e com eles todas, e não eram poucas, as forças empenhadas no golpe. Os dois lados, então, eram o do governo, com a proposta de reformas de base, e o da direita, que pretendia não só manter o status quo como acrescentar exigências feitas pelos EUA de abrir, ainda mais, o país ao capital estrangeiro, e sobre ele exercer a tutela política e econômica, que o período da Guerra Fria ensejava.
Qual foi sua participação na discussão sobre o papel do capital estrangeiro?
Direta. Pela Consultoria-Geral da República passavam todas as propostas do governo, que necessitavam de controle prévio de constitucionalidade. Em janeiro de 1964, Goulart assinou o decreto que regulamentava os investimentos de capitais externos no país e disciplinava a remessa de lucros em lei. Isso foi apressado por conta da queda de braço travada entre o Brasil e os EUA quanto à encampação de empresas norte-americanas de energia elétrica e de comunicações, já que estas não respondiam às necessidades da população e do desenvolvimento brasileiros. Naquele instante, vivia-se no Brasil uma conjuntura diferente da de hoje. Era evidente a ineficácia das empresas estrangeiras que prestavam serviços públicos. E, ainda por cima, por diversos mecanismos, de sub ou superfaturamento, as multinacionais sangravam o país, enviando para o exterior um volume de dinheiro muito desproporcional ao investido. O decreto que regulamentava a Lei de Remessa de Lucros foi redigido pela assessoria do ministro da Fazenda, Carvalho Pinto, e revisto juridicamente pela Consultoria-Geral. Pude sentir de perto a audácia dos representantes do governo dos EUA, especificamente do então embaixador Lincoln Gordon.
Que tipo de pressão ocorreu?
Ainda no segundo semestre de 1963, recebi um recado do meu chefe de gabinete, que me soou estranho. Disse que o embaixador Lincoln Gordon precisava falar-me e me convidava para ir à Embaixada tomar um drinque às 17 horas. Dei-lhe instruções para que informasse à Embaixada americana que eu estaria à disposição, e que poderia tomar um café com ele em meu gabinete. No horário sugerido, o embaixador se fez anunciar. Como era professor de Direito Constitucional da UnB e coordenava os cursos de direito, Gordon, que fora professor da Universidade de Harvard, iniciou a conversa pelo território acadêmico. Comentou que não entendia como eu podia conciliar os encargos administrativos e universitários. Contei que cumpria uma jornada diária de 10 a 14 horas de trabalho e, por vezes, até comia de marmita na própria Consultoria. Discorri sobre a UnB e o novo desenho que Darcy Ribeiro havia feito para ela, pensada como um laboratório de reflexões para a construção nacional.
E como o embaixador americano tratou da remessa de lucros?
Quando entrou no assunto, eu o interrompi. "Este é um assunto que não conversarei com o senhor. Peço que procure o presidente da República ou o ministro das Relações Exteriores. Não converso com o senhor, nem com embaixador de país nenhum". Por inúmeras vezes, Gordon esteve com Goulart naquele segundo semestre de 1963, sempre tentando interferir na regulamentação da Lei de Remessa de Lucros. Até um dia antes da assinatura, o presidente ainda me pedira que examinasse se havia a possibilidade de mexer no decreto, preservado o interesse nacional – tentando encontrar alguma saída para as sucessivas propostas que lhe chegavam. Nunca, no entanto, Goulart determinou, por conta das pressões, mudanças no decreto, que acabou sendo assinado como originalmente foi pensado, assegurando os interesses nacionais e a justa remuneração ao capital estrangeiro efetivamente investido.
Os EUA se comportaram de que maneira?
Para os americanos, era um claro sinal de endurecimento. Para nós, era simplesmente o exercício da soberania do Estado brasileiro. A atividade intervencionista da Embaixada dos EUA no país era impressionante. Em 1962, foram gastos mais de 20 milhões de dólares para, por meio do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), financiar a eleição de parlamentares comprometidos com as teses da colaboração submissa. No golpe se viu o quanto isso foi importante. Numa madrugada de 1963, fui acordado por um telefonema do presidente. Convidava-me para, no dia seguinte, um sábado, seguir com ele para uma de suas fazendas, em Goiás, para discutir o problema do Ibad. Na fazenda, comecei a rabiscar a minuta do decreto de fechamento do Ibad, que se efetivou na mesma semana.
De que forma a esquerda enfrentava esse acirramento da atividade subversiva dos EUA?
Se à direita o cenário era de intensas articulações contra o governo constitucional, à esquerda a temperatura esquentava. Em setembro de 1963, sargentos do Exército e da Aeronáutica tomaram suas guarnições em Brasília, prenderam o ministro mais progressista do Supremo Tribunal Federal, Vitor Nunes Leal, ocuparam os correios, o aeroporto e a base aérea. Eles manifestavam-se contra a decisão da Justiça que lhes negara o direito de serem eleitos. O governo sufocou a revolta que, no entanto, forneceu mais munição ideológica aos que vinham organizando o golpe. Goulart, apesar disso, nunca se sentiu tentado a qualquer atitude golpista. Nunca chamou os generais mais fiéis para qualquer movimento contra as instituições.
Como Jango pretendia enfrentar a situação?
Eu sentia nele a convicção de que era possível chegar às reformas pelos caminhos democráticos. Sabia, no início de 1964, que era a hora de evitar indecisões, e a assinatura do decreto de regulamentação dos investimentos estrangeiros e da remessa de lucros era parte dessa atitude. Goulart acreditava no seu esquema militar – o que se revelaria uma crença sem base real. Recorreu às massas populares para apoiar as reformas de base. As mais de 200 mil pessoas que lotaram a Praça da Central do Brasil, no Rio, no dia 13 de março viram um presidente determinado anunciando, no palanque, o decreto de encampação das refinarias privadas de petróleo, a declaração de interesse social para fins de desapropriação de uma faixa de 500 metros ao longo das estradas, ferrovias e patrimônios públicos de acumulação de água, além de diretrizes para uma reforma urbana que garantisse moradia à população mais pobre.
Como eram as relações do presidente com os setores tradicionais?
Goulart perdera as ilusões com os setores mais conservadores. Ao apelar à mobilização popular, ele estava querendo dizer que a luta do governo pelas reformas era irreversível. Mas continuava acreditando que tudo pudesse ser feito pelas vias democráticas e, por isso, insistia na negociação constante, destinada a atrair o centro e a isolar a direita mais reacionária. O deputado Santiago Dantas, em janeiro, orientado pelo presidente, havia tentado organizar um movimento amplo de apoio ao governo, que unisse as forças de esquerda, mais o Partido Social Democrático (PSD), do qual uma das maiores expressões era Tancredo Neves. Não conseguiu. A radicalização crescia. Em Minas Gerais, o governador Magalhães Pinto era o epicentro do golpismo.
De que forma?
Ele articulara-se com o oficialismo americano. Essas revelações, em detalhes, me foram feitas pelo presidente no exílio. O governador mineiro montara um secretariado com perfil de secessão – ou seja, ele estava disposto não só a deflagrar o golpe como a se separar do Brasil, se necessário, para uma hipótese de resistência mais prolongada, com o apoio dos EUA. Com este objetivo, teria nomeado Afonso Arinos como secretário para a tarefa dos contatos com o exterior.
Mas Goulart tinha convicção de que poderia realizar as reformas?
Sim. No dia 15 de março, ele enviou a Mensagem Presidencial ao Congresso. Nela, ele comunicava que a Lei de Remessa de Lucros iria ser cumprida imediatamente, anunciava a implantação da Embratel e da Eletrobrás. Propunha a adoção do princípio de que todo eleitor é elegível, a legalidade dos parti (...) (...)ronáutica, golpista, dera ordens para interceptar o avião presidencial, era necessário um avião a jato que voasse mais alto que os caças da FAB. O presidente ficou quase uma hora aguardando dentro do avião Coronado, que não decolou. Fora sabotado. Eu e Darcy estranhamos a demora. Observamos que o general Fico estava pálido e começamos a desconfiar dele. Por fim, o presidente partiu em outro avião, de dois motores, da Presidência, um Conver, arriscando-se a ser alcançado por caças da FAB. A conspiração já alcançara Brasília. Com o presidente, seguiram, entre outros, o ministro da Saúde, Wilson Fadul, o ministro do Trabalho, senador Amaury Silva, e o chefe da Casa Militar, general Assis Brasil. No Rio Grande do Sul, o presidente encontrou Brizola e, apoiado pelo general Ladário Teles, acreditava poder organizar e liderar a resistência.
O que aconteceu então?
Darcy e eu voltamos para o Palácio do Planalto, logo que o presidente decolou. Tratava-se de garantir que o Congresso não declarasse o seu impeachment. Havia sido acertado com o comando militar de Brasília que o Exército se manteria dentro dos quartéis. Isso permitiria a continuidade da mobilização de centenas de pessoas concentradas no Teatro Nacional, que não queriam que o Congresso votasse tal medida. Se os parlamentares tentassem fazê-lo, os manifestantes ocupariam o plenário. Quando nos aproximamos da Esplanada dos Ministérios, retornando do aeroporto, as tropas já ocupavam tudo, inclusive as imediações da Praça dos Três Poderes. As luzes acesas do Congresso denunciavam que o impeachment estava a caminho, e sob a proteção das baionetas.
Qual foi o mote do impeachment?
O argumento dos seus promotores era o de que Goulart fugira do país. Quando soube disso, pelo deputado Doutel de Andrade, do PTB, redigi aquela que seria a última mensagem do governo Goulart, assinada por Darcy Ribeiro, como chefe da Casa Civil. Era dirigida ao presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, e comunicava, em nome do presidente da República, que este se encontrava em Porto Alegre, no uso pleno de suas atribuições constitucionais, assumindo, lá, o comando da resistência contra as manifestações criminosas, disposto a garantir o respeito à Constituição. Doutel foi à tribuna, leu a mensagem e entregou-a a Auro. Era, aproximadamente, uma hora da manhã de 2 de abril. Moura Andrade leu o documento, disse que não era verdade, que o presidente não se encontrava em território nacional, declarou vago o cargo e convocou o presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzilli, para assumir o posto. Desligou os microfones e as luzes, antes do que foi possível ainda ouvir os gritos de revolta, principalmente vindos de Tancredo Neves.
Aí o senhor esvaziou suas gavetas?
Sim. Mas antes que a comitiva proveniente do Congresso chegasse para tomar o poder, vi o general Fico chegando, e o interpelei: "General, o que aconteceu? o senhor traiu o presidente? Não iria manter o Exército nos quartéis?" O general puxou do bolso um telegrama que determinava que o Exército assegurasse o funcionamento dos três Poderes, assinado pelo general Costa e Silva, já se autonomeando ministro da Guerra. Em seguida, me passou o telegrama de resposta: "Comunico prezado chefe que os vários poderes estão com seu funcionamento assegurado". Ele havia viabilizado o golpe. Naquele momento, chegou Darcy, lhe mostrei os telegramas e ele encarou o general como se tivesse feito uma grande descoberta, exclamando: "o senhor está com pêlos, cheio de pêlos, pêlos crescendo por toda parte. O senhor é um macaco". Saímos do Planalto, antes que Ranieri Mazzilli chegasse para ocupá-lo.
Para onde vocês foram?
Combinei com Darcy encontrarmo-nos dali a meia hora no aeroporto. Passei em casa, beijei meus filhos Cristina, Waldemir, Vivian, Lídia e Francisco. A mais velha, Cristina, tinha 11 anos, e o caçula, Francisco, 2. Beijei Yolanda e lhe expliquei que iria para Porto Alegre para tentarmos a resistência. Ao chegar ao aeroporto da Base Militar, procurei o avião que deveria levar-nos. Um major da Aeronáutica me reconheceu e advertiu que não haveria avião. Brasília já estava inteiramente na mão dos golpistas.
Na madrugada do dia 4, após reunião noturna na véspera, definindo rumos, com o deputado Rubens Paiva na coordenação da operação, saímos do Brasil. Eu e Darcy nos despedimos de nossas esposas, demos um abraço em Rubens e fomos com ele para a cabeceira da pista previamente escolhida, onde nos escondemos deitados em meio às moitas do mato ralo, à espera do Cessna monomotor que deveria levar-nos, a partir da abertura do horário de vôos, até uma fazenda em Mato Grosso, perto da fronteira com a Bolívia. Na hora mais ou menos prevista, o avião, que pedira autorização para viajar para Anápolis, taxiou até a cabeceira da pista, e eu e Darcy subimos. Quando o Cessna decolava, os operadores da torre de controle pediram que ele retornasse. O piloto, que não tinha qualquer conhecimento da operação em que estava envolvido, ensaiou dar meia-volta. Um grito de Darcy, enérgico, o fez prosseguir. O avião desceu na fazenda prevista, que era de João Goulart. Começamos assim um longo exílio. Que não fora previamente imaginado.
Mas vocês não iam ao encontro de Goulart?
Quando descemos na fazenda, na manhã de 4 de abril, tínhamos como certo que viria um outro avião, trazendo combustível para chegarmos até São Borja. Ainda durante a manhã, soubemos pelos empregados que fazendeiros na região começavam a se movimentar para saber que avião tinha pousado. Estariam armados, dispostos a defender suas terras e o golpe militar.
Decidimos que, face à perigosa movimentação, o piloto procuraria algum outro ponto de pouso nas redondezas, e voltaria no dia seguinte. Como o outro avião não chegara, o combustível único possível seria gasolina de caminhão mesmo, sugerida pelo piloto. Nessa noite, ouvimos pelo rádio de pilha que o presidente chegara à tarde no aeroporto de Montevidéu e pedira asilo político ao Uruguai. No dia seguinte, levantamos muito cedo, já com outro plano na cabeça.