Sociedade

Durante a trajetória do PT, novas formas de resistência emergiram, duas delas chamam atenção por seu ineditismo: as caravanas e os acampamentos

Os acampamentos de resistência à perseguição penal a Lula e ao PT convocaram contingentes muito heterogêneos de militantes e simpatizantes de diferentes locais do pais. Créditos: Gilbran Mendes/Fotos Públicas

Quais são os efeitos do julgamento do ex-presidente Lula na vida social e política do Brasil? – perguntava-me uma entrevistadora da TV estatal chinesa, em Porto Alegre. Era o dia 24 de janeiro e estávamos participando dessa jornada de quatro dias de mobilização perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que iria julgar o ex-presidente Lula, por delitos de corrupção que nunca foram comprovados. Estávamos em Porto Alegre, uma das cidades mais populosas da região Sul, que durante os governos do PT implantou uma experiência social significativa em termos de práticas democráticas: o orçamento participativo. Foi também a cidade que realizou o Fórum Social Mundial, outra experiência inovadora de contra-hegemonia, que continua congregando movimentos sociais e resistências em escala global.

Com a brevidade exigida respondi à entrevistadora sobre as grandes perdas para os trabalhadores e os retrocessos inimagináveis das instituições democráticas que vinham ocorrendo. Isso foi em janeiro de 2018, e desde então muitas coisas mudaram. Desde o dia 7 de abril o ex-presidente Lula está preso, e a destruição das instituições democráticas se foi abrindo como um precipício. Entretanto, as ações de resistência foram também se intensificando. Por isso, gostaria de retomar a pergunta da entrevistadora, tentando capturar agora algumas marcas dessa reconstrução, o avesso do golpe e da instauração de um Estado neoliberal-colonial tardio, que vem se impondo também em outros países da América Latina.

Também na Argentina, como disse o intelectual Horácio González1, “esse labirinto, que chamamos povo, pode ser destruído, desagregado e massacrado”. São os laços de identificação política e de organização popular os que mais uma vez se tentam desmontar, só que a máquina de deslegitimação atingiu agora tal intensidade que foi capaz de inverter afetos e identificações políticas. Porém, o texto de Horácio, que se intitula Reconstrucción del pueblo argentino, alude ao avesso desse processo, à permanente recomposição dos laços sociais, porque “não há vida política sem apelo ao povo”, e Lula, antes da prisão, também explicitou isso quando disse que o povo estava saindo de um “estado de letargia”.

Segundo o teórico Ernesto Laclau, tanto a construção como a desagregação do popular são efeitos de um deslocamento de significantes, e esse pode ser um bom ponto de partida para compreender a dilaceração a que foram submetidos os significantes “Lula” e “PT”. Isso acontece nos corpos, nas memórias e nas formas de organização da resistência, que possuem diferentes configurações e genealogias.

Sobre a construção e a desconstrução das formas de resistência há toda uma memória política a ser elaborada, toda uma genealogia com percursos descontínuos a ser interpretada, na qual evidentemente se deve incluir a trajetória do sindicato, que esteve presente na formação do Partido dos Trabalhadores. Foi a sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo o lugar escolhido para Lula falar ao povo antes da prisão decretada pelo juiz Sérgio Moro. O sindicato retorna então, embora com sentido transformado, como um lugar simbólico de refundação.

Entretanto, durante a trajetória do PT, novas formas de resistência emergiram, e é sobre isso que vamos nos deter, pensando principalmente sobre duas delas que nos chamam atenção por seu ineditismo, embora remetam a múltiplas referências: as caravanas e os acampamentos.

Uma invenção política, segundo o próprio Lula, as caravanas se iniciam antes de seu primeiro governo. A primeira foi em 1993, depois do impeachment de Collor e durante a presidência de Itamar Franco, quando o PT criou a figura do Governo Paralelo. A caravana levou Lula, acompanhado de um grupo de dirigentes políticos, jornalistas e intelectuais, a adentrar na realidade da pobreza extrema. Percorreram de ônibus sessenta povoados e cidades, em sete estados, visitaram grotões pobres e esquecidos – uma viagem ao “Coração do Brasil”, como intitulou o escritor Zuenir Ventura, que na época participou do que foi em suas palavras uma “incrível experiência jornalística, de acompanhar Lula durante 24 dias por bolsões de miséria que não dispunham de progresso e cidadania, às vezes nem de água e comida”2. Foram 24 dias em um ônibus, refazendo a trajetória que Lula havia feito quando criança, acompanhando sua mãe e seus sete irmãos, quando saíram do interior de Pernambuco rumo a São Paulo. Portanto, uma maneira de ressignificar sua própria biografia e a de milhões de trabalhadores, que também migraram do Nordeste rumo a São Paulo.

“Essas primeiras caravanas eram mais para ouvir o povo” – disse Lula. “Havia uma curiosidade muito grande, as pessoas queriam conversar, estar próximas. Ouvíamos as pessoas ao invés de elas apenas ouvirem os oradores.” Assim, uma das características dessa forma: a questão da escuta na construção do sujeito político. As caravanas criavam a possibilidade de escutar as demandas e discutir os problemas locais quando se detinham nesses povoados. Por essa razão, alguns autores associam a caravana a “uma espécie de paradigma da sociedade civil”, precisamente por esse caráter local e assembleístico, que está na origem de políticas públicas abrangentes posteriormente implementadas.

Mais do que isso, a caravana operou também como significante da construção de um novo sujeito político. O PT representava a articulação das demandas dos trabalhadores organizados e o sindicato era a matriz dessa construção. As primeiras caravanas anunciavam, entretanto, novos laços políticos: “A gente não tinha discurso para os excluídos, milhões e milhões de brasileiros” – disse Lula. Com as caravanas, a pobreza entrou em cena e isso foi o que elas prenunciaram, um sujeito político que foi se construindo no próprio ato do deslocamento, da aproximação que deu visibilidade a populações denegadas das regiões mais pobres do Nordeste. Essa população pobre, sem sindicatos, sem direitos e sem consumo não era um sujeito político constituído ainda, mas sim um sujeito político por vir, algo que se anunciava: “Eu achava – disse Lula – que só era possível acabar com a fome se incluíssemos os pobres na política, se conseguíssemos fazer com que eles começassem a entrar no orçamento da União, porque as pessoas que passam fome não têm sindicato, não têm partido, às vezes não têm nem igreja, não se manifestam, não vão a Brasília, não vão à Paulista, não carregam bandeira... Era quase como estender a mão a essas pessoas. E eu sabia que não era um deles”.

Assim, as caravanas eram a forma de enunciação de um sujeito político por vir, que, como observou Derrida nos Espectros de Marx, sempre aparece atravessado por fantasmas. Nesse caso, tratava-se da mística do sertão nordestino, que tanto impactou Zuenir Ventura: “Assisti a cenas como a de sua entrada (da caravana) triunfal em Nova Canudos, acompanhada de uma chuva torrencial após três meses de seca inclemente. O povo foi para a praça celebrar Lula e a chuva, agradecendo a dádiva divina. No reino místico de Conselheiro, de Padim Ciço, de Lampião e de Glauber Rocha, aquilo não era acaso. Só podia ser milagre”.

A construção desse sujeito político deve ser lida, portanto, a partir dessa mística profética da cultura popular, tão pouco compreendida pelas leituras liberais do populismo.

Não por acaso, a retomada das caravanas por Lula em 2017, iniciando uma vez mais pelo Nordeste, foi a estratégia escolhida para recompor sua força política e do PT após a ofensiva da direita. Também, não por acaso, a última, que percorreu os estados de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, pouco antes de ser decretada a prisão de Lula, foi atacada com violência armada em diversos trechos do percurso. A caravana circundou a cidade de Curitiba, o coração da operação Lava Jato, e foi a Santana do Livramento, cidade limítrofe com Uruguai, onde se organizou um ato político com a presença de Pepe Mujica, Dilma Rousseff e Rafael Correa. Celebrava-se assim o legado dos governos latino-americanos de esquerda das quase duas décadas do início do século 21. Deteve-se também em São Borja, um local muito significativo do mito de origem do trabalhismo. Nesse município nasceram Getúlio Vargas e João Goulart e foi também sepultado Brizola, que retornou do exílio por São Borja. Assim, Lula se agregava a uma cadeia de significantes que incluía Getúlio Vargas, Jango e Brizola, como o elo mais recente dos governos populares no país, em um contexto em que o golpe implodia as leis trabalhistas.

Com a prisão de Lula são também todos esses espectros dos excluídos que se tenta conjurar. É difícil prever se haverá outras caravanas, pois como diz Chico Buarque no disco de mesmo nome (As Caravanas), “deixam em polvorosa a gente ordeira e virtuosa, que apela pra polícia despachar de volta o populacho, pra a favela, ou pra Benguela, ou para Guiné”.

Uma outra forma de resistência no contexto atual têm sido os acampamentos. A forma-acampamento, como denominou a antropóloga Ligia Segaud ao referir-se às ocupações dos movimentos sem-terra. A pesquisadora notou que essa lógica do acampamento era um fato bastante novo na história da luta pela terra no Brasil e chamou atenção para as particularidades dos laços sociais que se construíam nessas ocupações. Os acampamentos se tornariam na década de 1990 a principal forma de ação dos movimentos sem-terra e isso implicava a capacidade de consolidar em um território precário e nômade a permanência de um coletivo, por meses e às vezes até por anos. A autora faz referência a diversos aspectos do “tempo do acampamento”, como a montagem dos barracões, a distribuição dos espaços em comum e a organização da reprodução material, que envolve a produção agrícola, a educação de crianças e adultos, a alimentação das famílias, cursos de formação política, dentre muitos outros aspectos.

Os acampamentos da “vigília democrática” nas jornadas de Porto Alegre e o atual acampamento em Curitiba, próximo ao local onde o ex-presidente Lula está preso, possuem, entretanto, outras características. São acampamentos ampliados, de resistência à perseguição penal contra Lula e o PT, que convocaram contingentes muito heterogêneos de militantes e simpatizantes de diferentes locais do país.

O acampamento de Porto Alegre foi antecedido pela marcha dos sem-terra, que partiu de um trajeto da BR-116, próximo ao rio Guaíba, atravessou a ponte e percorreu sete quilômetros até chegar à avenida da Legalidade, no centro de Porto Alegre, uma marcha em fila indiana em duas colunas, característica da épica de resistência dos sem-terra, essas marchas coletivas a pé, de quilômetros, que remetem às resistências camponesas em diferentes regiões. A marcha, disciplinada, longa e incansável, com convicção ideológica e forte ritualística, comunicava a potência de um sujeito político. Terminou no centro da cidade, e então as pessoas dos diferentes movimentos se dirigiram ao local para montar o acampamento que iria receber para a vigília democrática os diferentes contingentes na véspera do julgamento.

Durante quatro dias este congregou diferentes gerações, categorias profissionais, grupos sociais e referências identitárias, excedendo assim a forma originária. Assim, passava a ser a inscrição de uma heterogeneidade acordada e situada no “tempo do acampamento”. Esse foi um aspecto que nos chamou atenção: o acampamento como experiência política de convívio de heterogeneidades em um território. Durante os quatro dias ocorreu também na cidade uma série de eventos: palestras, plenárias com a presença de partidos e organizações de esquerda de América Latina e Europa, o impactante ato das Mulheres na Praça da Matriz, e o grande ato político na Esquina Democrática, tradicional local de manifestações da capital gaúcha, com a presença de Lula e lideranças de partidos de esquerda, que afirmaram a partir desse momento a candidatura de Lula à Presidência da República, apesar da possível prisão.

O acampamento foi montado no Anfiteatro Pôr do Sol, às margens do Guaíba, no mesmo espaço onde aconteceu outrora o Fórum Social Mundial, um espaço descampado, com centenas de barracões, identificados pelas bandeiras de diferentes organizações e partidos – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), Marcha Mundial das Mulheres, Central dos Movimentos Populares, Central Única dos Trabalhadores, Levante da Juventude, Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, PT, PCdoB, dentre outros. Havia também barracas nas quais se preparavam as refeições para uma multidão de pessoas e outra para atenção médica.

Foi nesse grande acampamento onde sugeri à equipe da entrevistadora chinesa me encontrar, mas preferiram um local mais “neutro”, sobre a esplanada, tendo como fundo o TRF4. Nesse momento, pensei sobre o “neutro”, sobre como esse significante político se extraviara de seu referente e da própria ideia republicana de um Poder Judiciário autônomo, de um juiz imparcial e de uma mídia neutra.

Eram dias de calor muito intenso, mas as pessoas transitavam entre as barracas conversando com espontaneidade flutuante, encontravam facilmente motivos para falar e serem falados pela política. Nesse trânsito conversamos com um assentado, de uma região da fronteira do Rio Grande do Sul, que disse estar preocupado porque há muito tempo vivia se deslocando com sua família; conversamos com um educador de um assentamento, que contou como se tornou de esquerda em uma família de cinco irmãos muito conservadora; conversamos com estudantes do Levante da Juventude, que vinham de São Paulo; com um outro assentado, do estado do Paraná, que nos falou sobre o êxito que tinham alcançado com a formação de uma cooperativa de comercialização do milho e feijão. Percebíamos que o acampamento ampliado era uma possibilidade de atravessar as especificidades de posições e problemáticas sociais, uma experiência de atravessamento muito singular.

Reformulemos agora a pergunta da jornalista chinesa: quais são os efeitos da prisão do ex-presidente Lula nas dinâmicas de resistência? Houve regressões de todo tipo, quebra de laços sociais, mas também a emergência de novas formas de resistência e a reconstrução de sujeitos políticos, que articulam a transição que hoje se apresenta entre o imprevisível e o impossível, entre a prisão e a Presidência.

Javier Alejandro Lifschitz é professor adjunto da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Unirio