A crescente disputa comercial entre Estados Unidos e China e os possíveis desdobramentos nas relações internacionais talvez só possam ser clarificados com o entendimento do grau de desenvolvimento de cada uma dessas nações e de seus objetivos quanto ao mundo.
Nos Estados Unidos, a partir dos anos 1970, as grandes corporações industriais, comerciais e de serviços foram unificadas e hegemonizadas pela fração financeira do capital. Sua indústria perdeu dinamismo e foi, em grande parte, relocalizada em países de mão de obra mais barata. E parcela insignificante de sua população centralizou a maior parte da riqueza nacional, enquanto a maioria dessa mesma população passou da condição de classe média ou de classe trabalhadora empregada para a condição de excluída da riqueza e do mercado de trabalho.
A introdução de robôs e da inteligência artificial, inerente ao desenvolvimento do modo de produção capitalista, elevou a produtividade e a apropriação da mais valia gerada pelo trabalho humano. Ou seja, fez com que mais de 80% das empresas aumentassem a concentração de mercado, reduzissem a capacidade de criar empregos e destruíssem milhões de postos de trabalho de baixa e de alta qualificação.
Com isso, os Estados Unidos passaram a se confrontar com massas populacionais crescentes vivendo abaixo da linha da pobreza. O American way of life, segundo o qual todos estavam fadados a enriquecer, transformou-se em pesadelo de pobreza, miséria e desencanto. E os defeitos da decantada democracia americana permitiram sua exploração fraudulenta, propiciando a vitória de Trump para a presidência do país.
Representando principalmente os interesses das frações financeira e armamentista de seu capitalismo, explorando os sentimentos erráticos de frustração e prometendo America First, mesmo na base de ódio e guerra, Trump se dispõe não só a destruir as poucas políticas internas de assistência social praticadas anteriormente como a desfazer os acordos e tratados internacionais que permitiam relações civilizadas entre os países.
Para resolver a disparidade entre os preços dos produtos americanos e de vários outros países, embora a produtividade americana seja maior e teoricamente possa permitir preços menores, Trump decidiu elevar a taxação dos importados. Assim, aumentou a pressão não só sobre a capacidade competitiva das empresas nacionais dos outros países, mas também sobre as corporações empresariais norte-americanas que atuam no mercado global.
Em outras palavras, Trump decidiu morder na jugular da inovação indispensável à concorrência capitalista. O que também pode explicar as mudanças nas taxas e custos das universidades norte-americanas, que parecem em guerra contra a ciência, assim como as medidas repressivas contra a imigração, que sempre representou uma fonte de importação de talentos e inovações.
No caso da taxação de produtos chineses, essa política afeta a rentabilidade das empresas norte-americanas e de outros países estrangeiros localizadas no território chinês em joint venture com empresas locais, responsáveis por 86% dos computadores e produtos eletrônicos, 63% de equipamentos eletrônicos e componentes e 59% de maquinaria mecânica exportados para os Estados Unidos.
Assim, em vez de lutar com o problema da redistribuição interna da renda, diante da centralização patrimonial e do efeito das novas tecnologias sobre o trabalho, Trump pretende reviver um capitalismo movido internamente pela diversidade e externamente pelo poder monopolista, cujos canhões decidiam o destino de povos e nações.
A China, por seu turno, desde a adoção da política de abertura e reforma, em 1978, conformou uma sociedade socialista de mercado. Nos quarenta anos posteriores, e apesar das crises capitalistas globais e regionais, apresentou um crescimento econômico médio de 10% ao ano, reformulou os padrões de comércio global, retirou da pobreza mais de 800 milhões de chineses, liquidou as endemias e se tornou a maior economia mundial pela paridade de poder de compra e a segunda maior pela produção global.
Apesar da crise global iniciada em 2007-2008, a China manteve um crescimento econômico superior a 6% e uma participação acima de 10% nas exportações globais. Elevou o mercado doméstico, investiu na modernização econômica e deu novo salto na infraestrutura de transportes, telecomunicações, energia renovável, reflorestamento, saneamento e moradia. Seus trens de alta velocidade já rodam por 22 mil quilômetros e a produção de energia solar é uma das maiores do mundo.
A China também deixa de ser um país de mão de obra barata. A produtividade crescente de sua indústria se baseia cada vez mais nas ciências, tecnologias e na organização de cadeias produtivas integradas, tendo como carros-chefes sistemas de inovação internamente produzidos. Suas empresas estão empenhadas em superar a geração 4G, ingressar na geração 5G de redes móveis e transformar a China, até 2020, em nação inovadora, até 2030 em líder na inovação internacional, e até 2050 em casa de força da inovação científica e tecnológica mundial.
Tudo isso com o apoio do crescente número de graduados nas universidades chinesas (de um milhão em 2001 para mais de 12 milhões em 2016), da elevação dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, da obtenção de novas patentes e do número de chineses estudando pós-graduação e doutorado em países estrangeiros (inclusive nos Estados Unidos). As redes móveis da China já estão ombro a ombro com os Estados Unidos na capacidade para a guerra cibernética.
Porém, o que parece realmente estar por trás das ações provocativas dos Estados Unidos à China é o fato de seus avanços no acesso a terras, águas, energias, ciências e tecnologias estarem relacionados com o papel do Estado. O Estado socialista chinês, através de seus instrumentos econômicos, sociais e políticos, concorre com os setores privados e demonstra papel decisivo no desenvolvimento.
Para as classes dominantes americanas parece um exemplo indigesto que os planos desse Estado de socialismo de mercado englobem não só metas econômicas, científicas, tecnológicas e ambientais, mas também metas sociais, de crescimento com enriquecimento de todos em ondas, umas puxando as outras. E, mais ainda, que sua estratégia de desenvolvimento, antes voltada às exportações ao mercado internacional, passe a ser baseada na produção para o mercado doméstico, significando que o enriquecimento doméstico já permite que a população chinesa seja a base para o crescimento futuro.
É verdade que estudiosos ocidentais fazem alarde do que chamam crescimento dos conflitos trabalhistas na China. Supõem que as relações de trabalho (capitalistas), as desigualdades sociais, os problemas ambientais e os casos de corrupção, todos ainda presentes, teriam potencial para provocar instabilidades sociais e políticas no país. No entanto, comparados aos problemas de quarenta anos atrás, os atuais são muito menos significativos. A luta contra eles comportou evitar que o desenvolvimento aprofundasse as desigualdades sociais, tornou o combate à corrupção um vetor permanente da política estatal e fez com que a recuperação ambiental se tornasse uma prioridade política.
Se essas políticas se restringissem ao território chinês, talvez a classe dominante americana não se alarmasse tanto. No entanto, as reformulações da economia e da sociedade chinesa incluem não só a manutenção e o crescimento de sua capacidade de exportar mercadorias, mas também uma crescente capacidade de exportar capitais e investir no exterior, sendo crescente o número de empresas chinesas, incluindo estatais, com investimentos no resto do mundo, inclusive nos Estados Unidos.
Além disso, a China decidiu desenvolver projetos de cooperação econômica e social internacional de largo alcance, como as Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada (Belt and Road Iniciative – BRI, em inglês) e a Interconexão Energética Global.
O projeto Belt and Road Inciative – BRI, por um lado, dá vazão produtiva às massivas reservas internacionais e à enorme capacidade produtiva chinesa de aço, alumínio e cimento. Por outro, amplia as parcerias de financiamentos públicos e privados chineses com inúmeros países asiáticos, africanos, árabes e europeus ao ligá-los por modernas infraestruturas ferroviárias, marítimas, aéreas e de telecomunicações.
Desse modo, aliada às parcerias estratégicas da Organização de Cooperação de Shanghai, do Banco Asiático de Desenvolvimento, dos Brics e do próprio G20, a BRI tende a se tornar a maior parceria eurasiana já conhecida pela humanidade. Com ela, Casaquistão, Rússia, Turquia e Irã se tornarão elos de uma cadeia produtiva e consumidora que atingirá o leste e o nordeste da África, assim como o sul e o norte da Europa, com mais rapidez e com custos logísticos muito mais baixos do que os atuais.
Para agravar a apreensão imperialista norte-americana, a China apresentou à ONU a proposta de Interconexão Energética Global, tendo por base a utilização das energias eólica, solar, hídrica, geotérmica, oceânica e de biomassa como forma de alcançar os objetivos do acordo climático de Paris, de onde o governo Trump retirou os Estados Unidos.
Em outras palavras, a China começa a desempenhar um papel econômico muito mais positivo para superar a crise global capitalista que teve como epicentro os Estados Unidos, contrapondo-se à superada tendência imperialista estadunidense. Embora ela só tenha em vista sua projeção internacional baseada em parcerias econômicas, isso tem levado os analistas estratégicos de Trump a reações descontroladas.
Classificam a ação chinesa como um novo tipo de expansão imperial, ou como uma ameaça hostil. Reiteram que ela, a China, e também a Rússia e o Irã pretendem desafiar o poderio e os interesses dos Estados Unidos, prejudicar sua segurança e sua prosperidade, e se expandir à custa da soberania de outros países. Assim, quanto mais a China demonstra que sua economia é orientada por prioridades estabelecidas através do Estado, mais os setores capitalistas dominantes dos Estados Unidos se sentem ameaçados.
Apesar disso, setores sociais e políticos estadunidenses menos radicais do que os que apoiam Trump acreditam que a China apenas está seguindo os mesmos passos da globalização norte-americana. Concluem, portanto, que ela, com sua enorme população, estará em piores condições do que os Estados Unidos para enfrentar a crescente participação dos robôs e da inteligência artificial no processo produtivo, que fará o desemprego e a miséria atingirem massas crescentes.
Talvez tais setores se vejam embaraçados se o atual seguro desemprego chinês, que obriga o desempregado, para ter direito a ele, a realizar cursos de reciclagem profissional ou prestar serviços comunitários, for uma indicação de que a China já possui um modelo básico para um futuro de pouco emprego, mas sem miséria. A rigor, antes mesmo de chegar ao ponto em que todo trabalho vivo pode ser substituído pelo trabalho morto, a China já atua no sentido de evitar a flexibilização e/ou redução de direitos sociais, e trabalha na formalização institucional de direitos como instrumento de inclusão social e dinamização da economia.
É evidente que nada disso importa para a classe dominante americana. E que ela, em sua insana luta por manter intacto seu viés imperialista, pode apelar para a guerra como forma de impedir a China de continuar em sua trajetória de transição socialista. Para sorte de todos, porém, os projetos de cooperação econômica e energética dos chineses parecem ser mais atrativos para os aliados europeus e asiáticos dos Estados Unidos do que o apelo às armas e as ameaças de guerra.
O que não pode nos levar à conclusão de que o perigo está passando. O capitalismo dos Estados Unidos, mais do que o de outros países, se debaterá, cada mais, com as contradições inerentes ao processo de desenvolvimento de seu modo de produção. Em especial com aquelas que tendem, por um lado, a centralizar em 1% ou menos de sua população o conjunto da riqueza gerada por seus meios de produção e, por outro, a substituir o trabalho vivo pelo trabalho morto, criando empecilhos crescentes para a própria reprodução ampliada do capital. No desespero...
Wladimir Pomar é escritor e integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate