Política

Caso Bolsonaro seja eleito, entraremos em um período parecido com os primórdios do regime fascista italiano, quando ganhou força uma violência difusa de inspiração fascista

A questão é saber qual o grau de desenvolvimento e a capilaridade do fascismo no Brasil hoje. Foto: Rovena Rosa/ABr

Antes de avançarmos, precisamos limpar um pouco o terreno. Falar sobre fascismo como um fenômeno político atual é falar exatamente sobre o quê? Líderes carismáticos? Multidões coreografadas? Mobilizações espetaculares e cerimoniais de purificação? Racismo? Há um mínimo de características para que determinado fenômeno político seja enquadrado nesse conceito? Falarmos sobre o fascismo nesses termos, e somente nesses termos, pode ser agradável e reconfortante. Nesse sentido, o fenômeno é facilmente identificado como a ação de uma horda bem organizada, guiada por algumas ideias-chave (por exemplo, nacionalismo ou racismo) e que irrompe no céu azul da normalidade política e econômica do capitalismo, geralmente instigado por um suposto radicalismo da esquerda – seja da social-democracia alemã, ou mesmo do Partido dos Trabalhadores. Assim, os coniventes, indiferentes ou cúmplices dos fascistas, quando estes ganham vida e uma agenda próprias, podem muito bem tirar seu corpo fora e afirmar que, na verdade, tudo aquilo é muito estranho e diferente de suas contumazes e bem-educadas práticas sociais. Como afirma Gramsci,

A maior parte deles, porém, perante fatos consumados, prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a falta de qualquer responsabilidade.

Como se as forças políticas agrupadas no autoatribuído centro político, uma vez que perderam a direção política do anti-esquerdismo, não tivessem qualquer responsabilidade pelo atual cenário político. Como se a derrota ou os compromissos que vão viabilizar a vitória eleitoral do fascismo fossem o suficiente para sufocar um movimento que vem sendo, ora silenciosamente, ora escandalosamente, construído pelo menos desde 2005. Nada existe de novo com o respaldo do fascismo pelas camadas mais abastadas e instruídas da população brasileira.

A verdade é que o fascismo está firmemente ancorado no governo, na sociedade e na economia vigentes. Ele é uma ação estabilizadora da ordem, “disfarçada em cruzada milenar de vitalismo heroico”, nas palavras de Arno Mayer. O fascismo é uma ação política e uma rede de relações. É uma técnica de mobilização, pura tática e, portanto, extremamente flexível e capaz de violar repetidamente seus próprios princípios. A inconsistência é a sua natureza ideológica, já que seu programa é o de mobilizar as massas, grupos extremamente heterogêneos, estratos sociais em crise altamente diversificados, além de atrair e tranquilizar os poderosos fiadores da ordem social. O fascismo, assim, é uma mobilização radical em defesa da ordem. Nas palavras de João Bernardo, é a Revolta da Ordem. Uma revolta impulsionada pelo desejo de transformação radical das condições de vida do indivíduo sem colocar em causa os fundamentos da estrutura social responsável por produzir essas péssimas condições de vida.

Como afirma Paxton, o fascismo surge de uma estreiteza de horizontes, fruto de um senso de crise catastrófica, cuja solução está muito além do alcance das vias tradicionais de resolução. A essa forma de percepção da crise somam-se os sonhos de grandeza produzidos por duas experiências psicossociais características do capitalismo. Em primeiro lugar, o desejo de melhorar de vida da classe trabalhadora, que surge de um dado concreto que são as péssimas condições de vida. Em segundo lugar, o medo da proletarização da classe média, realidade concreta produzida pelo processo de centralização e concentração de capitais, resultado inerente ao processo de reprodução ampliada do capital. Contudo, como nos recorda João Bernardo, essas duas experiências, apesar de serem a matéria-prima do fascismo, não necessariamente o produzem. O desejo de melhoria da qualidade de vida é o que impulsiona os trabalhadores a se organizarem e buscarem a emancipação política. Lutar por questões concretas, como a melhoria dos salários, cria coesão social, senso de comunidade e revela para o próprio trabalhador o seu lugar na estrutura social e seu poder enquanto grupo organizado.

O medo da proletarização por parte dos setores médios também pode ter um aspecto progressista. Resultado da impossibilidade de ascender na hierarquia social e de seguir acumulando símbolos de distinção social, o empobrecimento relativo pode revelar para essas classes como muitas de suas convicções e valores não passam de ideologias e preconceitos, como, por exemplo, a meritocracia. Esse medo pode desvelar para a classe média que a sua comunidade de destino dentro das atuais condições de reprodução social está mais próxima aos de baixo que aos de cima.

O fascismo, portanto, é todo aquele movimento político que capitaliza de maneira reacionária essas duas experiências psicossociais características do capitalismo. Quando há um descrédito nas visões de futuro otimistas e progressistas, lança-se um descrédito sobre as possibilidades de uma solução universal para os seres humanos – seja por via do mercado, seja por meio da destruição deste. Ganha força a ideia de um retorno a um período áureo, quando os conflitos que estão em evidência, em decorrência da crise, supostamente não existiam. Conflitos que, segundo as técnicas de mobilização dos fascistas, não foram provocados pela forma como está organizada a sociedade, mas por agentes conspiradores e maculadores, quase sempre em cooperação com o estrangeiro. A visão conspiratória, ao contrário da visão crítico-analítica da história, é fundamental para a mobilização dos setores amedrontados, especialmente de extração média. Oferece aos jovens pessimamente formados por sistemas apostilados voltados aos concursos públicos e aos vestibulares uma explicação simples, coerente e plausível de uma crise que coloca em xeque suas ideologias/preconceitos fundamentais. Possibilita que os “humilhados” salvem seu amor-próprio, desviando de sua vista o verdadeiro problema – a ordem econômica e social – para supostos grupos que estariam sendo beneficiados, lá judeus, aqui supostos comunistas, mas também LGBTI, negros, mulheres, alunos ingressantes pelo sistema de cotas e bolsistas de qualquer espécie. Estes grupos são os inimigos e devem ser eliminados da sociedade.

Contudo, é preciso reconhecer que esses discursos são muito comuns. Há quanto tempo Olavo de Carvalho escreve seus livros? Quem em sã consciência duvida do racismo e do machismo como estruturas fundantes e de longa duração de nossa sociedade? O que deve nos preocupar, portanto, são as condições nas quais esses discursos ganham não apenas uma suposta coerência, mas, principalmente, adeptos. O fascismo nunca se transformou em um movimento relevante na história antes da derrota de um movimento revolucionário ou da adesão dos partidos de esquerda à ordem (dois principais fatores para o refluxo da politização das massas). O fascismo ganha terreno justamente ali onde a esquerda nada com a corrente. Equilíbrios orçamentários, a matematização econômica entendida como verdadeiro conteúdo do concreto, a contabilidade como a arte da resolução e harmonização dos conflitos antagônicos de classe. Frente à redução do horizonte utópico da esquerda ao equilíbrio fiscal, o fascismo triunfa. Assim, as crises econômicas transformam a revolta dos trabalhadores em um desejo violento de ascensão individual, e o medo da proletarização se traduz não em um ideal coletivista que compreende de maneira unificada a comunidade de destino dos setores médios e das classes populares, mas em um coletivismo adequado aos preconceitos de classe (nós que trabalhamos, que pagamos impostos, que estudamos etc.).

Tendo em vista tudo isso, a principal questão não é se o bolsonarismo é fascismo ou não, mas qual o grau de desenvolvimento e a capilaridade do fascismo no Brasil hoje. Alguns elementos já mostram que a coisa anda em um estágio mais avançado do que imaginávamos: apoio aberto de setores empresariais, penetração no movimento dos trabalhadores (greve dos caminhoneiros), consolidação de um partido e de uma representação parlamentar com relativa autonomia dos partidos da ordem tradicionais e, por fim, indivíduos e facções adeptos da Revolta da Ordem dentro do Estado, sobretudo de grupos e funcionários cujos laços familiares, sociais e econômicos são com aqueles setores médios em crise, a saber, a polícia militar e o baixo e médio clero do poder Judiciário.

Epílogo

Dois caminhos se abrem a partir de 2018. Caso Bolsonaro seja derrotado, a eleição pode ser nosso Putsch da cervejaria. Uma vitória de Pirro das forças progressistas, mas que se transforma em um mito fundacional e que pavimenta o triunfo para o fascismo no curto ou médio prazo. Por outro lado, caso ele seja eleito, entraremos em um período parecido com os primórdios do regime fascista italiano, quando uma violência difusa de inspiração fascista ganhou força e era respaldada por instituições em pleno processo de fascistização – que, aliás, com certeza já foi a marca desse segundo turno. Entre o Putsch e a Marcha sobre Roma, são esses os horizontes colocados.

Fernando Sarti Ferreira é doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo

Referências

BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo – Na encruzilhada da ordem e da revolta. Porto: Edições Afrontamento, 2003.
GRAMSCI, Antonio. “Os indiferentes”. In: Convite à Leitura de Grasmci, org. Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Pedro Piccone. Rio de Janeiro: [s/d].
MAYER, Arno. A Dinâmica da Contra-revolução da Europa – Uma estrutura analítica. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1976.
PAXTON, Robert O. A Anatomia do Fascismo. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2007.