Nas eleições de 2018 as esquerdas e os segmentos democráticos sofreram uma derrota eleitoral e uma derrota política. A eleição da maior bancada na Câmara dos Deputados pelo PT e a duplicação da bancada do PSOL; as grandes manifestações de massas e a mobilização das militâncias partidárias e sociais no segundo turno mostraram que não foi uma derrota sem luta. Isso é importante, principalmente para a resistência ao novo governo e às investidas da direita. Contudo, não é suficiente para sustentar a tese de derrota eleitoral e vitória política, porque não leva em conta quem ganhou e como ganhou, seu programa, sua base social e a tentativa de impor um novo pacto social e um novo modus operandi do Estado, que ameaça direitos civis, sociais e econômicos dos trabalhadores e da cidadania.
Da derrota eleitoral
A votação somada das candidaturas presidenciais da esquerda e centro-esquerda (Haddad/Ciro/Marina/Boulos/Vera/João Goulart) alcançou 43,41% dos votos válidos contra 46,03% do principal candidato da direita; e no segundo turno, a candidatura Haddad/Manuela atingiu 44,87%, apenas 1,46% a mais do eleitorado já conquistado no primeiro turno pelas candidaturas de esquerda e centro-esquerda. Perdeu por pouco no Norte e venceu no Nordeste, reduto lulista.
Nas eleições parlamentares, a esquerda e a centro-esquerda (PT, PSB, PDT, PROS, PSOL, PPL, PCdoB, Rede, PV) elegeram 146 deputados federais em 2018 contra 173 em 2014; e, no Senado Federal, após eleições, ficaram com quatorze senadores quando tinham 25 em 2014. A onda bolsonarista conquistou dezesseis governadores contra nove de esquerda ou não aderentes e ao mesmo tempo reduziu o principal partido da direita institucional, o PSDB, à condição de partido de porte médio, desfigurado do seu discurso democrático pela adesão a Bolsonaro.
A direita quase ganhou no primeiro turno, com Bolsonaro atingindo 46,03%, e venceu no segundo turno com 55,13% dos votos válidos, com um programa econômico neoliberal e discurso a favor da ditadura militar e contra os direitos humanos; contrariando teses e expectativas dos partidos de esquerda, intelectuais e lideranças sociais independentes, que julgavam impossível um candidato a Presidência ganhar eleição com essas posições.
Da derrota política
A derrota política foi maior e mais diversa que a derrota eleitoral.
Sua primeira dimensão foi a desmoralização da principal força política de esquerda, o PT e o Lula, como ladrões e corruptos, tentando desqualificá-los enquanto agentes políticos legítimos. Esse é um processo acumulativo que vem desde 2006 com o “mensalão” e atinge seu auge na esfera policial-judicial com a Lava-Jato desde 2014, com a condenação de Lula, sua prisão e impedimento da de sua candidatura à Presidência da República. A novidade qualitativa é sua expressão popular nessa campanha de 2018. Por detrás disso está o não reconhecimento da classe trabalhadora enquanto agente político autônomo, o que vai atingir, por outras formas, outros partidos e lideranças de origem popular.
A segunda diz respeito à negação de qualquer projeto de desenvolvimento nacional autônomo, identificando-o ao chavismo e ao comunismo, o que é uma vitória da classe dominante brasileira que almeja um lugar subalterno na nova ordem econômica e política global (demonstrando, mais uma vez, quão ilusória é a tese de um projeto de desenvolvimento nacional sob a liderança ou suporte da burguesia brasileira).
A terceira é a desqualificação do Estado enquanto agente para promoção do desenvolvimento e, o que é mais grave, como agente para superar as desigualdades e iniquidades sociais. É a defesa do Estado mínimo, do mercado, do individualismo e da meritocracia.
Na esfera ideológica forjou-se uma corrente de direita, com uma fração fascista, que combate não somente a esquerda, mas quaisquer ideias libertárias; chegando mesmo a posições de desrespeito, intolerância e agressão a quem pensa diferente; ameaçando criminalizar os movimentos sociais e identitários; não lhes faltando características racistas, homofóbicas e misóginas. Do discurso de ódio se passou à ação, ainda de forma localizada, sinalizando que pode se generalizar e criar um clima de terror.
Das razões da dupla derrota
A esquerda perdeu o discurso da crítica da crise econômica e social, especialmente o PT e aliados, com seu programa rebaixado à memória dos bons tempos dos governos Lula; e, o que é pior, perdeu o discurso da crítica ao Estado falido e a seu sistema de representação corrompido pela burguesia, colocando-se numa posição defensiva que facilitou sua identificação com o status quo, com o sistema, com tudo que está aí.
Duas questões que estavam e estão na boca do povo não foram enfrentadas adequadamente pelo programa e pela candidatura do PT e seus aliados: a corrupção (por fuga ao tema) e a segurança pública (por um discurso acadêmico). Essas duas questões se tornaram centrais na campanha vitoriosa da direita, cujas propostas e linguagens dialogaram direto com as massas, ainda que não concordemos com seus conteúdos e métodos.
Dois processos importantes interferiram nas eleições e não foram devidamente considerados pela esquerda e principalmente pelo PT: a) a onda internacional de direita que já se iniciara no período do presidente Obama e ganhou nova dimensão com a eleição de Trump nos Estados Unidos e que intervém intensivamente nos processos eleitorais de outros países, especialmente da América Latina, e b) as novas relações interpessoais e as potencialidades políticas das chamadas mídias sociais (via internet), que alavancaram a campanha de Bolsonaro ao final do primeiro turno.
Conclusão
A vitória eleitoral de Bolsonaro e dos seus aliados representa a unificação da classe dominante sob um programa neoliberal mais radical do que o promovido pelo golpe de 2016 e do governo ilegítimo de Temer. Com a legitimidade do voto popular e alguma capacidade de mobilização de massa, usará do Executivo, com apoio do Congresso Nacional e tolerância da Justiça, para jogar o ônus da saída da crise econômica sobre as costas dos trabalhadores e do povo. E o novo governo civil-militar pode ser tentado a abusar do poder policial do Estado, além de tolerar a violência de grupos radicalizados de direita.
Enfim, reconhecer a derrota política e decifrar as políticas e métodos do futuro governo de direita são fundamentais para se traçar a estratégia e as táticas da resistência democrática.
Gilney Viana é militante do Núcleo do PT da UnB
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